De Autoexame |
“... se tudo que você disse tivesse se transformado em ouro, se tudo que você sonhou fosse novo, imagine o céu bem lá no alto... (da cor do) azul do Caribe” [Caribbean Blue-Enia ]
Parte do trabalho que sempre fiz e faço é formação e sempre sou convidada por outros municípios para momentos assim com professores, conselhos escolares, conselho de educação, coordenadores pedagógicos e diretores. Certa vez fui convidada por um dos municípios alagoanos para realizar um trabalho de Avaliação da Aprendizagem para um grupo só de professoras mulheres. No relato da secretária de educação, um grupo difícil, com problemas de relacionamento, de convívio, um grupo que vivia se estranhando.
Perguntou se podia iniciar o trabalho só com dinâmicas de grupo e autoestima. Recomendei um profissional da área de Psicologia, pois, embora goste e utilize dinâmicas e outras estratégias lúdicas no meu trabalho, são sempre dentro de um contexto específico, voltadas para a questão ou reflexão em pauta. A secretária concordou comigo e providenciou o profissional adequado para aquela demanda e lá fomos nós fazer o trabalho.
Já que o profissional não se opôs, fiz questão de participar do trabalho junto com o grupo. Seria o momento ideal para nos conhecermos um pouco mais, já que ficaríamos juntas por uma semana. Muitas dinâmicas depois o grupo estava leve, descontraído.
Perto do meio-dia, o profissional colocou Caribbean Blue (Enia) no micro system e pediu para que deitássemos. Iniciou uma sessão de relaxamento, orientando a forma correta da respiração, sugerindo imagens, pensamentos. Com voz pausada, sugeriu que nos tocássemos. Mãos, braços, rosto, pescoço, seios. Do meu lado uma senhora já não tão jovem exclamou baixinho: “Sangue de Cristo!! Estou toda arrepiada!”
Precisei me controlar para não cair na risada. Percebi certo constrangimento em outras, mas essa senhora estava visivelmente apavorada com o que estava sentindo. Falei baixinho que se não estivesse se sentindo bem não precisava fazer, mas ela respondeu que tudo bem.
Minutos depois, já em círculo, o profissional pediu para que, quem se sentisse à vontade, avaliasse a atividade e se quisesse, comentasse também sobre o que sentiu da experiência do toque. Todas avaliaram, mas poucas ousaram comentar. Os risos amarelos diziam apenas “gostei muito”, “adorei”, “maravilhoso” e outros tantos elogios no gênero, mas havia nos olhares furtivos ou meio assustados um quê lúbrico, como se todas temessem a areia movediça do sentimento... Traduzi olhares de surpresa por terem ousado tanto. E mais: olhares também muito culpados por terem sentido algum prazer naquilo.
Ainda sem perceber onde o moço queria chegar, optei por defender a ideia do autoconhecimento, da importância que é conhecer nossos sentimentos, nossas limitações, nossas qualidades. A importância de conhecermos nosso corpo e nossas reações ao que nos cerca, ao que nos estimula e mobiliza. Lembrei a elas do quanto era importante esse “se tocar”, fazer o auto exame das mamas a cada mês, se olhar e se tocar para identificar qualquer alteração no corpo, salvar a própria vida.
- Tocar o corpo, para nós mulheres, é mais que prazer, é necessidade e não devemos sentir vergonha por isso – falei, passeando os olhos pelo grupo. Algumas assentiam, outras fugiam do olhar, riam encabuladas.
Aproveitei o silêncio que se fez e comentei do quanto é importante também conhecer o próprio corpo com relação ao nosso prazer, afinal não somos assexuadas, temos desejos, somos seres afetivos e se, culturalmente, nos cobram um papel passivo, receptivo, cabe a cada uma desconstruir essa imagem primeiro em nós mesmas, depois em quem conosco convive. Devíamos, sim, refletir por que se nossa educação marcadamente na versão religiosa nos inferiorizava tanto (mulher é o ser que induz o homem ao mal; tudo que se relacione ao corpo da mulher é impuro, é pecaminoso) e éramos nós mesmas a aceitar esse pensamento recorrente e a reproduzir isso nas nossas práticas como companheiras, mães e educadoras.
Finalizei citando Eduardo Galeano: “O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.” Não sei se me aprovaram, mas me aplaudiram.
O profissional aproveitou a deixa e comentou que tocar em si se aprende. Que é preciso gostar de tocar em si para gostar de tocar o outro. Se permitir apertar a mão, abraçar um amigo sem achar que isso já é “conjunção carnal”. Que na nossa cultura as relações afetivas reverenciam o toque como o gesto máximo, o coroamento do afeto e todas ali se abraçaram, acho eu, que para ratificar o que ele acabara de dizer.
Durante a semana tivemos muitos momentos de descontração. Bom demais o contato com aquelas mulheres! Na hora do cafezinho tinha sempre uma me fazendo confidências, me perguntando coisas sobre vida, relacionamento, educação de filhos. Muitas delas com muito mais idade que eu, mas curiosas como adolescentes descobrindo a vida. Voltei para casa cheia de presentes e com o coração transbordando de alegria pelo presente do convívio.
Lembrei dessa história porque, dia desses, encontrei Marta, a do arrepio, num evento, e depois do reconhecimento e do abraço de reencontro perguntei, maliciosa:
- E aí, Marta? Continua se tocando e se arrepiando? E ela, numa gargalhada:
- E apois!!!!
* Maceió, 27 de novembro, dia Nacional do Combate ao Câncer
Da série: VIDA DE PROFESSORA
Um comentário:
Não postaram nenhum comentário, porque o texto fala por si só.
ass.: Doriane Dória.
beijos.
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