Viver, sentenciava G. Rosa pela boca de Riobaldo, é negócio perigoso. A despeito disso, vive-se e, nalguns casos, até mais do que o desejável. Estatísticas dão conta de que 6 bilhões de seres humanos navegam nessa frágil casca de noz rumo ao desconhecido. É muita gente gastando perdulariamente o que não ganhou. Mas, segundo o sábio Patrick Geryl , essa farra desenfreada tem data marcada para terminar: 21 de dezembro de 2012. Nesse dia, céus e terra se fundirão, e o Armagedom sairá do mundo das profecias para materializar-se. Poucos, só os escolhidos, sobreviverão para contar a história. Quando tudo serenar, a Terra, ou melhor, o que restar dela respirará aliviada: estará praticamente extirpado “o câncer da natureza”: a espécie humana.
Antes dessa data fatídica, profetas, embusteiros e espertalhões faturam alto publicando livros com teses apocalípticas ou filmes aterrorizantes. Até onde se sabe, só os seres humanos são capazes da proeza de pagarem para sofrer. Quanto a mim, sem queixas ou mágoas, saio de cena como entrei: nu e desarmado.
A primeira vez que ouvi falar do fim do mundo, eu era praticamente virgem de pecados, a não ser do tal “pecado original”, que já trazemos embutido em nossas almas. Eu teria uns dez anos de idade, se tanto. Num início de noite, ouvi no rádio do padre Nestor Lima a trombeta do anjo vingador: “O mundo acabará em 1970”. A voz cavernosa do locutor invisível deixou-me petrificado. Aterrorizado, fiz as contas: a partir daquele instante, eu teria uns doze anos, no máximo, para realizar alguns desejos acalentados desde sempre: comprar uma bicicleta Monark, uma sanfona Scandalli, um relógio Lanco, um rádio Philco, uma espingarda Rossi, uma lanterna de três elementos, uma chuteira feita pelo Raimundo do Pedro e um frasco de English Lavander. Tudo isso, na verdade, tinha um único fito: conduzir-me ao coração de Cleonice, com quem eu teria de me casar. Para levantar a dinheirama necessária para comprar tudo isso, eu teria de ir a São Paulo onde, segundo atestava o baião de seu Luiz, “corria ouro pelo chão”. Fiz as contas e vi que não daria tempo. Sofri como um condenado...
Em 1970, eu já desistira da sanfona, do rádio, da espingarda, ou seja, da Cleonice... À época, meu coração bandoleiro errava por uma fulaninha, mais acesa que farol de milha... Conclusão: a despeito da ditadura que prendia, torturava e matava, nunca fomos tão felizes: “noventa milhões em ação” e a inesquecível conquista do Tri... Marcou-se uma nova data para o fim do mundo: o ano 2000. Voltei a fazer as contas e vi que já estava no lucro...
Manquitolando, cheguei até aqui. Como na canção de P. César Pinheiro & Baden Power, “Não fui feliz nem infeliz/ só fui na vida um aprendiz/daquilo que eu não quis”. Quanto ao fim do mundo, 21 de dezembro de 2012 ainda está longe... Até lá, a minha Estrela-guia certamente já me terá mostrado o portal do paraíso. Assim sendo, que venha o dilúvio!
Quereria um começo com a delicadeza de Fernando Sabino, em A última crônica, que cada vez que releio mais me encanta. E agora a ela retorno, em busca de ensinamentos. Algo assim como fez Henry Miller, quando decidiu tornar-se um escritor. Sem saber como começar, ele passou a andar pelas ruas de Nova York, indo parar diante da estátua de Shakespeare. Persignou-se diante dela, igual a um penitente que roga salvação para sua alma. Repetiu a peregrinação por dias e dias. Martírios do ofício, nas voltas tortuosas até se chegar à primeira frase. O que faz pensar na angústia do goleiro diante do pênalti. Ou na do seu batedor.
Foi em tais circunstâncias, a confabular consigo mesmo pelas ruas do Rio, que Fernando Sabino acabou por nos legar uma pequena obra-prima. Começa assim:
“A caminho de casa, entro num botequim da Gávea, para tomar um café junto do balcão. Na realidade, estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório, no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida”. E por aí vai ele, até sair de suas ruminações e bater os olhos num casal de negros e sua filhinha com um laço de fita na cabeça, ao fundo do boteco. Esse olhar o fez captar uma jóia de rara beleza, ainda a servir de espelho para principiantes.
Este aqui de vez em quando batia perna ao lado do mestre, nos calçadões à beira-mar, Copacabana-Ipanema-Leblon. Numa dessas vezes, ele perguntou:
- Você já leu o meu livro sobre a Zélia?
Por essa eu não esperava. Uma pedra no meio do caminho. Sinuca de bico. Cul-de-sac.
Persignando-me mentalmente diante da imagem de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, onde nasci, e dizendo-me “Nas horas de Deus e da Virgem Maria, amém”, criei coragem e respondi que Zélia, uma paixão era o único livro dele que eu jamais leria.
- Por quê? Por preconceito?
O papo foi longe. Voltei para casa contrariado, achando que o havia deixado com mais uma pedrinha no tênis. Sabia que, depois do linchamento que ele recebera na imprensa por causa daquele livro, passara a evitar a exposição pública, temendo ter de responder a perguntas maliciosas ou a se desvencilhar de ofensas, como a de mercenário, por tê-lo escrito apenas para faturar uma fortuna. Nada mais injusto. Fernando Sabino doara os direitos autorais do seu polêmico best-seller a uma instituição assistencial de menores carentes, sem se vangloriar disso.
Como bom mineiro, ficou em silêncio, remoendo a sua falha trágica ao declarar: “Zélia sou eu”. No calor da hora, a sua brincadeira não teve graça. Levaram-na a sério demais. Como se ele acreditasse, verdadeiramente, que a personagem que causara um terremoto na economia dos cidadãos, na era Collor, tivesse o mesmo status literário da heroína de Gustav Flaubert, Madame Bovary.
Mas por que, e para que o chatear ainda mais, quando privava de sua camaradagem, durante uma caminhada para desenferrujar as pernas, desanuviar a mente, e suar todas as tristezas? – eu me perguntava. Ora, ora, quem mandou Fernando Sabino tocar no assunto? Pensei que ele ia ficar zangado, a ponto de cortar a nossa relação, para sempre.
Numa manhã de domingo o telefone tocou e era o próprio, de viva voz. Disse:
- Acordei hoje com vontade de ligar para o Mário de Andrade, o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos, o Oto Lara Resende e o Hélio Pellegrino. Como nenhum deles pode atender...
Foi um começo de conversa e tanto. Ao final, convidou-me para um drinque em sua casa.
- Que tal amanhã? – perguntei-lhe.
- Ih! Amanhã não dá. Ao descobrirem que fiz oitenta anos, me empurraram para os exames médicos. Assim que me livrar dessas chateações, telefono para combinar.
Não telefonou mais. Só iria voltar a vê-lo já embalado para a última viagem, no cemitério São João Batista.
Ah, Fernando. Para começar, que falta que você faz.
Há dia que a gente acorda assim, com aquele gosto de sabão na boca, sem tino matutino e desorientado completamente sobre os rumos da vida. Bota um som na vitrola para espantar os fantasmas da noite e, em vez de exorcismo, se envolve nos acordes ressonantes e se descobre um espectro vagando entre outros espectros cuja origem remonta a tempos passados e imaginados perdidos ou, talvez, esquecidos ao longo do Tempo.
Há dia que a gente acorda assim, pensando nos que se foram e em quanto tempo ainda falta para a nossa insólita viagem. Hoje? Amanhã? Depois de amanhã? Não importa. Compramos esse bilhete de passagem com data aberta no nosso primeiro choro. Nesse trem chamado Vida, quando menos se espera, o picotador aparece para carimbar nosso passaporte, em cuja capa está impresso um botão de rosa ao qual nunca demos importância aos seus detalhes:
“Nos recôncavos da vida
Jaz a morte.
Germinando no silêncio.
Floresce
Como um girassol no escuro.
De repente vai se abrir.
No meio da vida, a morte
Jaz profundamente viva.”
(Botão de Rosa - Thiago de Mello)
Para aprofundar o cenário mórbido, hoje é dia de finados e a melancolia tem um tom fúnebre de missa de sétimo dia, embora não se conheça o defunto pranteado. Seria um morto vestido da sua importância caso não houvesse mais lugar para se sentar na igreja e os parentes chorar inconsoláveis com a perda, embora a maioria finja sua invisível dor; seria um pobre indigente se apenas o padre, o sacristão e uma viúva chorosa maldizendo a miserável vida ocuparem todo o espaço da igreja. Em ambos os casos, a importância de cada um estará ironicamente nivelada na pirâmide social dos vermes.
À revelia do meu querer, busco espairecer as idéias navegando pelos recantos em busca de um encanto para o meu dia, mas me desencanto na primeira parada quando alguém fala de falocracia sem saber direito o que é isso, misturando alho com bugalhos em arabesco literário. Tento recompor meu alento nas divas da poesia e da prosa num site chamado Recanto das Letras, mas a mão do Destino me guiou pelo caminho errado e fui jogado ao encontro do velho preconceito enraizado na alma brasileira camuflado em sutileza incubada em versos toscos que prima pela indecência da segregação regional, cuja autora lamenta profundamente não poder transformar um desafeto baiano em jumento, certamente para suprir alguma carência afetiva ou amorosa.
Em certos lugares, o jumento foi e ainda é um meio de transporte eficaz, haja vista as condições das estradas e a agudeza dos acidentes geográficos que mapeiam o lugar. O fim do mundo não fica muito longe, bastando que se tenha querer e disposição para se chegar até lá montado no lombo de um jumento, claro.
Dizia Luiz Gonzaga que o jumento era nosso irmão. Animal sagrado, por ter carregado o Menino Jesus, dizem que a cruz que tem no costado é o lugar onde Cristo fez xixi. Mas, sagrado ou não, é um animal de falo grande, descomunal, e que enrijece sem o menor pudor ao encontrar uma jumenta no cio. No arraial do Junco houve um jumento que ficou famoso pelas suas peripécias. Chamado de Jegue Barroso, foi, deveras, o jegue mais famoso de toda a história da região. Fama adquirida pela sua sanha devassa e insaciabilidade sexual. A légua de distância, ele sentia o cheiro da fêmea no cio e não sossegava enquanto não consumasse seu intento. Pulava cerca de macambira, se rasgava no arame farpado e atacava as jegas, mesmo que estivessem devidamente montadas, colocando o montador em risco de se machucar com as investidas vigorosas e insistentes do jumento. Não adiantava gritar, ameaçar ou bater. Seu instinto animal era mais forte que a dor.
Era um verdadeiro deus-nos-acuda quando surgia uma jega no cio. Ou um espetáculo para os moleques e devassos; uma vergonha para as moças de família.
- Deus nos acuda! - gritou o padre, interrompendo o cântico.
Nessa ocasião o Junco vivia um prenúncio de estiagem. O vento nordeste soprava seu hálito quente, seco, levantando redemoinho de poeira que vinha da Rua da Bomba até a Praça do Tamarindeiro. A água do Tanque Velho há muito que secara e o Tanque do Município, também chamado de Tanque Novo, fornecia suas últimas gotas. A seca rondava o sertão e os roceiros, apreensivos e angustiados, andavam em procissão, chapéu na mão, pedindo proteção ao Senhor. O padre puxava os cânticos, acompanhado por centenas de vozes graves e agudas.
Avééé, avéé; avemariiiaa! – cantavam em louvor a Nossa Senhora do Amparo, a padroeira, próximo à escadaria da igreja, quando se ouviu um relincho, dois relinchos, três relinchos, tropel de jegue a galope descendo a rua. De repente surgiu uma jega em desabalada carreira em direção ao povo, seguida do jegue Barroso, que tentava montá-la em desespero de causa, ocasionando um verdadeiro alvoroço entre os devotos. O padre, após pronunciar o apelo já citado acima, segurou a barra da batina e subiu as escadas em desespero, se enrolando no cordão batinal, se estatelando no chão. O povo, em pânico, se espremia na porta da igreja, cada um querendo a preferência e não entrando ninguém. O padre, recomposto da queda, excomungou o jegue e todos os seus ascendentes e descendentes. De quebra, amaldiçoou também o seu dono.
Uma hora depois os milicianos conseguiram demover o jegue Barroso de suas intenções libidinosas, afastando sua pretendente para bem longe. O dono do ditoso teve que arcar com o prejuízo de uma multa imposta pelo delegado e por uma penitência de cem pais-nossos e trezentas ave-marias.
Mas isso aconteceu nos tempos que se bebia Grapete e as noites eram iluminadas por lampiões de querosene. O velho arraial vestiu roupa nova e ganhou nome novo e um moderno sistema de transporte. Seca não é mais problema, pois existe um complexo sistema de irrigação e abastecimento d’água. Não é mais aquela terra que candeeiro dava choque. E se lá, hoje em dia, o jumento é peça de museu, por que uma poetisa sulista quer um baiano como jeguinho de estimação?
Os olhos verdes de Mary suspiram por outro mundo além da Ladeira Grande. Seus pensamentos cavalgam sobre as nuvens brancas que pincelam o infinito azul em vã tentativa de fazer seu corpo levitar e flutuar ao sabor do vento e desaparecer na linha do horizonte e pousar silente tal qual uma estrela cadente rasgando o céu, extasiando-se em terras alhures, onde piscam luzes de neon como uma galáxia em festa.
Em tempos passados a mesmice do lugar não era contundente porque não havia outras referências, mesmo sendo a solidão um estado de espírito permanente. A televisão, que fora considerada por alguns intelectuais como a máquina de fazer doido, passou a ser a máquina de fazer sonhos. O Tempo é real e mostra, ao vivo, outro mundo, onde as coisas acontecem e as pessoas não se limitam apenas a acordar para ver o dia passar e depois dormir com as galinhas para sufocar suas angústias e desejos.
Resignada, lembrou-se do terceiro capítulo de Eclesiastes: “Há tempo de nascer e tempo de morrer. Há tempo de plantar e tempo de se arrancar o que plantou. (...) Há tempo de chorar e tempo de rir. Há tempo de afligir e tempo de dançar”.
O Tempo, sempre ele, senhor e dono absoluto dos nossos anseios e angústias, timoneiro interativo do barco do nosso Destino. Quando seria o seu tempo de rir e de dançar?
Ventos do norte sopram, ao seu ouvido, versos do poeta americano Thomas S. Eliot, transportando-a para quatro quartetos, em outra áurea dimensional, surrupiando-lhe o alento dos versículos bíblicos:
“(...) O gênero humano
Não pode suportar tanta realidade,
O tempo passado e o tempo futuro.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente”.
Em outra estrofe, a contundência aguda dos versos é como um balde de água gelada jogado sobre seu espírito ávido por mudanças:
“No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne.
Nem de nem para; no imóvel ponto onde se move a dança,
Mas nem pausa nem movimento. E não se chame a isso fixidez,
Pois passado e futuro aí se enlaçam. Nem ida nem vinda,
Nem ascensão nem queda. Exceto por este ponto, o imóvel ponto,
Não haveria dança e tudo é apenas dança”.
Seria esse lugar em que vive e mora o “imóvel ponto do mundo que gira”? Se aqui, passado e futuro se enlaçam, que é do seu presente? Uma negação ou uma abnegação? Nada faz sentido quando afloram os sentimentos compulsivos de liberdade. Em suas divagações interiores incorpora a certeza de que veio ao mundo para ser protagonista e não para fazer figuração; nasceu para brilhar, e não para se ofuscar na clausura forçada das necessidades. Por causa desta constatação, aumentam a sua aflição e o seu temor de que a realidade seja mais pesada do que sua quimera e esmague sua plantação de sonhos como ervas daninhas em um campo abandonado pelo seu dono.
E os seus olhos marejam suspiros de resignada tristeza, evaporando no ar tal qual o orvalho da manhã sobre as folhas verdes da relva refletidas em sua retina.
Enquanto alguns paulistanos desvairados decoravam seus locais de trabalho e – pasmem – seus lares também, com toda aquela parafernália bruxolística, longe de tudo isso, em um sítio perto da represa de Guarapiranga algumas fadas se reuniam para iniciar a 1ª Convenção das Fadas Brasileiras, um movimento puramente anti-Halloween.
– Ângelus, cânticos celestiais, perfume de lavanda, cores de arco-íris, fadas, querubins e seres afins, unamo-nos contra essa festa sacana e tipicamente americana! Viva as fadas da floresta amazônica, os vaga-lumes, as selvas tropicais, as vitórias-régias encantadas, o folclore nacional!
E nesse ínterim, as fadinhas se preparavam para o evento:
– Esse negócio de Halloween já encheu os... ops! Desculpe-me essa linguagem imprópria, mas é que não aguento mais ver bruxas estilizadas, vampiros, fantasmas, esqueletos e morcegos pendurados aqui no escritório!
– Calma Vica! Estamos em pleno mês de Outubro! Isso é normal em todos os escritórios da cidade!
– Você acha normal furar uma abóbora que fica com uma cara de Dona Doida para enfeitar uma festa? E depois, Arlene, nós precisamos agir depressa, ou no ano que vem teremos novamente esse conglomerado de esquisitices que nada tem a ver com nossos costumes e tradições. Acho que vou roubar uma abóbora dessas e cozinhar com jabá!
– Não faça isso, Vica! Vamos logo para o local do encontro que no caminho eu faço uma recarga no celular e ligo para todas as outras fadas!
– Caramba Arlene! Vamos ter de ir de trem até bem próximo da represa, pois está um trânsito terrível!
– Em todos os outros países as fadas podem voar! Aqui no Brasil a gente tem de andar de trem! Que fiasco!
– Não dá para pegarmos uma vassoura emprestada, Arlene?
“Às vezes eu acho que essa fada pagodeira está se passando para o lado dos aficionados pelo Halloween!” Arlene pensou e quase deixou escapar!
– Vamos Vica! Hoje é trinta de outubro e temos que iniciar o projeto exatamente às 18:00 horas!
Sem vassouras, sem truques e sem morcegos, as fadas brasileiras iniciaram sua convenção.
Saudações iniciais foram feitas por todas as fadas: celtas, belgas, inglesas, suecas, etc.
Obviamente elas discursaram em inglês. Mas havia legenda.
Saudações das fadas brasileiras:
“Saúdo-vos Fauna e Flora do Brasil, golfinhos, vitórias-régias, ninfeáceas, araras e jabuticabeiras em flor. Acolham nossas saudações e aclamem como o Dia das Fadas todo dia 30 de outubro... Transformem-nos nesse dia em borboletas brancas para que possamos neutralizar os efeitos do Halloween em cada um dos desatinados brasileiros que não sabem nem pronunciar Réloin...”
E assim foi feito... A partir de então, todo dia 30 de outubro um panapaná de borboletas brancas segue voando por todo o Brasil, encantando pessoas e neutralizando nelas aquele olhar vidrado, meio abóbora, meio perdido.
Bailam corujas e pirilampos, entre os sacis e as fadas...
Afirma-se, com incontido orgulho, que o senso de humor, a irreverência, o escracho, a alegria e o jeitinho são os atributos que distinguem o brasileiro dos demais terráqueos. Com estardalhaço, criou-se o mito do brasileiro feliz, e a coisa vingou. Não por acaso, o poeta Maiakovski escreveu: “Dizem que em algum lugar, /parece que no Brasil,/ existe um homem feliz”. É certo que, vez por outra, aparece um louco para “desafinar o coro dos contentes”, ou um coração machucado para implorar: “Tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor”. Mas a tônica é alegria, alegria!
Confesso que a “obrigação” de andar com os dentes à fresca me deixa um tantinho incomodado. A bem da verdade, esse humor fácil e apelativo, que se exibe na TV e na internet, mais me aborrece que diverte. Para o meu gosto, não há nada mais deplorável que as “pegadinhas” e as “videocassetadas”, sucesso retumbante entre nós. Aprendi com dona Purcina que não se deve rir de quem cai, de quem sofre, de quem erra. Vamos tomar o seguinte exemplo: o garoto assiste na TV à cena de uma criança escorregando do balanço e enfiando a cara no chão. Não se mostra o choro da criança nem a gravidade da contusão; mostra-se a claque sorrindo e o apresentador berrando: “Ô meu, vai gostar de terra assim no inferno”. Um dia, esse garoto leva o irmãozinho menor ao parque e, lá pelas tantas, ele escorrega e cai. Qual será a reação daquele moleque? Vai sorrir por não entender que aquilo é um acidente e não uma brincadeira. Muito pedagógico, não?
Estamos popularizando, por todos os meios, o escracho, a grossura, a vulgaridade e o mau gosto como manifestações de humor. Agora mesmo, acabo de ver na internet um e-mail com “as pérolas do ENEM”. Trata-se de um amontoado de disparates escritos ou atribuídos aos que se inscrevem no exame. Em primeiro lugar, uma pergunta pertinente: quem “vaza” tais disparates para a mídia? Outra perguntinha inofensiva: é lícito fazê-lo? Poderíamos fazer mais uma dúzia de indagações, mas isso não nos ajudaria a entender os objetivos perseguidos com a divulgação desse material que, até onde sei, deveria permanecer sob a responsabilidade do MEC.
Não é a primeira vez que tenho acesso a essa lista infame. Num programa de TV muito popular, o apresentador diverte a plateia lendo as “pérolas” e acrescentando comentários jocosos. Sucesso garantido. Sou obrigado a confessar que me sinto profundamente incomodado com essa maldita lista. Como sou professor, cada vez que leio um disparate escrito por um aluno (que nem conheço), sinto-me um tantinho responsável por ele. Sou uma espécie de coautor. O raciocínio é bastante simples: se nós professores tivéssemos nos empenhado um pouquinho mais, talvez poupássemos esses pobres alunos de terem seus disparates expostos na mídia como objeto de chacota. Vou um pouco além: se a educação fosse levada a sério em nosso país, os governantes, a sociedade, a mídia, todo mundo começaria a perceber que alguma coisa precisa ser feita com a maior urgência. Essa molecada que escreve bateladas de bobagens é vítima de uma escola que os trata como retardados. A mídia, notadamente o rádio e a TV, encarregam-se de fazer o resto.
Para demonstrar minha indignação de forma clara e veemente, peço permissão aos meus três leitores para encerrar essa arenga com uma piada infame, que também circula na internet: “Quem acha tudo gozado é camareira de motel”.
As fotonovelas, os livros de bolso, as revistas em quadrinhos.
Por Edna Lopes
“Se a gente não tivesse feito tanta coisa, se não tivesse dito tanta coisa, se não tivesse inventado tanto, podia ter vivido um amor grand’hotel.” [Grand' Hotel Kid Abelha]
Uma das lembranças mais deliciosas da minha história de leitora é a da primeira fotonovela, porque com ela veio junto a novidade de morar na cidade, o encanto pela imagem de TV, a magia do cinema. Ao mesmo tempo passei a frequentar a biblioteca pública e nela havia mais que uma estante tosca. Havia centenas de livros esperando para serem lidos por quem gostasse da aventura de viajar pelas letras.
Tinha 12 anos e peguei de minha irmã mais velha uma GRANDE HOTEL. Achei o máximo. Eu, habituada a ler tudo que me caía na mão, ia recusar aquela beleza? Como eram bonitas as mocinhas e os galãs das fotonovelas! Cabelos incríveis, roupas elegantes... Eu queria ser Michela Roc, Katiuscia, Claudia Riveli, tão lindas com seus cabelos enormes, jeitinho de moças boazinhas, merecedoras do amor daqueles príncipes todos. Não consigo lembrar muita coisa, mas havia umas revistas coloridas lindas e umas com fotografias em preto e branco, que eram as minhas favoritas.
Foi uma revolução na minha vida de leitora. Eu, que devorava os livros e dava voltas na imaginação fantasiando cada personagem, tinha-os ali, prontinhos, inteiros, lindos, “falando”, “pensando”, abraçando, beijando, vivendo! Aquilo era mais do que eu havia imaginado com A Moreninha, com Ceci ou Iracema ou mesmo com a Escrava Isaura.
Adulta, li por aí a opinião de que as fotonovelas prestaram um desserviço às adolescentes da época, pois viviam num mundo de fantasia, sonhando com um “amor Grand’Hotel”, idealizando um príncipe que nunca chegava. Permito-me discordar. Sinceramente, me diverti muito lendo-as e não quero psicologizar nem atribuir a responsabilidade da construção do ser afetivo de quem quer que seja a leituras, a televisão ou ao cinema. Como referência, apenas a minha experiência e considero-me normal, fantasias no tempo certo, expectativas apenas de mim mesma, do que sou, do que sinto.
O engraçado é que a fotonovela parecia mesmo ser de uma dimensão unicamente feminina, pois não via homem nenhum lendo tal revista. Meninos da minha idade liam TEX, revistas de super-heróis (Batman e Robin, Super-Homem, Homem Aranha...), que eu também não dispensava, se me caíam nas mãos. Hoje muitos homens admitem que liam as fotonovelas escondidos, temerosos em por em dúvida a masculinidade, se descobertos.
Mas, do “mundo deles”, absorvi o gosto pelos livros de bolso. Lia todas aquelas séries e me lembro de algumas: Chumbo Grosso, Oeste Perigoso, Colt 45, Oeste Beijo e Bala... Hilárias estórias que me divertiam muito e, como eram baratinhos, vivíamos comprando e trocando, comentado entre nós as besteiras ali escritas. Os filmes de “western”, na TV, eram o estímulo para continuar lendo, pois as tramas eram muito parecidas e eu aprendi a amar John Wayne, Clint Eastwood, Giuliano Gema e outros que nem lembro mais.
Nesse período vi, num telão do clube da cidade, o filme Vidas Secas. Fiquei muito impressionada, muito comovida com o drama, pois descobri em Fabiano e Sinhá Vitória rostos tão meus conhecidos, tão reais e tão próximos que chorei a maior parte do filme. Passei a ler o mestre Graciliano, meu conterrâneo, e sofri muito com todo aquele universo fortemente marcado pela necessidade de quase tudo. Era a realidade que me cercava e me doía na alma. Adulta, reli algumas obras, com um olhar mais maduro, menos emotivo.
Das revistas em quadrinho, sou fã incondicional até hoje. Morro de rir com as trapalhadas do Donald e do seu vizinho Silva, adoro o Peninha e seus alter egos, o impagável Professor Pardal e tantos, tantos outros personagens que a partir daí povoaram a minha vida de leitora. Um universo fantástico que não me cansei e não me canso nunca de explorar, pois Bolinha e Luluzinha, A Turma da Mônica e todos os personagens de Maurício de Souza, serão sempre eternos parceiros de aventura de quem respeita a criança que há em cada um de nós.
Indícios da síndrome de Peter Pan ou do Complexo de Cinderela? Os dois juntos? “Hei! deixe que digam, que pensem, que falem...”