sábado, 23 de outubro de 2010

NO SERTÃO ERA ASSIM

De zabumbeiro


Apesar de o cansaço deixar seus músculos relaxados e o corpo pedindo cama desde cedo, o coronel Limoeiro não conseguia pregar os olhos, por mais carneirinho que contasse. Não bastasse os grilos escolherem sua janela para fazer sinfonia e os rasga-mortalhas piarem em prenúncio de noite de agonia, o som da zabumba no pé-de-serra chegava até seu quarto como se o zabumbeiro tocasse seu instrumento dentro de sua própria sala. Só havia um jeito de se conciliar com Morfeu:

– Zé da Bixiga!
– Inhô, patrão?
– Vá lá na casa do meu compadre Zé da Burrega e diga a ele pra parar a zabumba!
– É pra já, meu coroné!

Zé da “Bixiga” vestiu-se apressado, calçou as alpercatas de couro cru, pegou o facão, a garruncha, se benzeu e saiu em direção do forró. Uma hora depois retornou descabriado, contrariado. A zabumba continuava a toda altura.

– E aí, sêo José, o que foi que houve?
– Sabe, meu coroné, a festa tava tão boa qui tive pena de mandá pará!
– Tu não é de nada, cabra! De manhã a gente conversa. Chico Bala!
– Sinhô, coroné?
– Vá lá e dê cumprimento do mandado que esse molenga teve medo!
– Sim sinhô, coroné!

Chico Bala vestiu sua indumentária de pistoleiro, calçou as botas, colocou duas cartucheiras atravessadas nos ombros, pegou uma pistola, um punhal e uma espingarda, fez o sinal da cruz, abriu a porta e desapareceu na escuridão. Voltou mais rápido do que Zé da “Bixiga”. A zabumba continuava a ecoar caatinga adentro.

– O que é que houve, homem?
– Coroné, a festa tava tão animada qui fiquei cum pena de acabá cum ela.

– Vocês são um bando de covardes! Vou eu mesmo lá e quero ver quem vai me impedir de parar a zoada!

O coronel se vestiu a caráter, sob os protestos da mulher que temia uma rixa com seus compadres ou um tiroteio de última hora, ocasionando um mata-mata de lado a lado. Fazia anos que as famílias da região viviam em paz e o seu marido estava prestes a acender o estopim da discórdia.

Acompanhado de três capangas, o coronel desapareceu na escuridão, decidido a acabar a festa do compadre. Hora e meia depois retornou, cabisbaixo, cara de derrotado. A zabumba continuava mais alta ainda, como em provocação.

– Ôxente, home, tu num disse que ia pará a zabumba? Óia ela aí tocano...
– Mulher, tu sabe quem é o zabumbeiro?
– Num faço a menó idéa!
– É o capitão Virgulino Lampião!

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Miudezas em geral - Cineas Santos

De Flor de monturo


“Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz” 
Manoel de Barros

Certa feita, um cidadão que carregava um rei, digo, um reino na barriga me fez um elogio desmedido: “Você nunca chegará a lugar nenhum porque pensa pequeno”. Errou por pouco. Tivesse dito: você só pensa sandices e só faz coisinhas, teria acertado em cheio. Essa minha vocação por nadinha é anterior ao que a vida me acrescentou em matéria de ignorância e presunção. Não por acaso, quando publiquei um punhado de poemas cometidos ao longo da vida, pus na coletânea o título de Miudezas em Geral. O título é bem melhor que o livro.

Deixemos, porém, de filosofices, que o objeto dessa arenga é outro. Faz um tempinho que venho cevando o sonho de publicar um livro sobre as flores de Teresina. Cheguei até a pensar o título Teresina em flor. O projeto não contemplaria as flores “domesticadas”, menos ainda as importadas de outras plagas, flores transgênicas, belas e frias como peixes congelados. Eu queria (quero) um livro com as flores da Chapada, quentes, vibrantes, adaptadas à rusticidade do meio. Convidei alguns fotógrafos para a empreitada, mas não os seduzi. Um deles, com veleidades poéticas, perguntou-me: “Por que perder tempo com vaga-lumes se temos a Via Látea ao alcance das lentes?”. Respondi de bate-pronto: Porque os vaga-lumes estão à mão e eu ainda não descobri o mecanismo que os acende. Percebi que não seria fácil encontrar um parceiro. Tarefa de tal monta requer equipamento adequado, tempo, paciência e, acima de tudo, competência. Só me faltam as quatro. Pensei seriamente em desistir da empreitada.

Vai que este ano, ganhei uma máquina Sony, compacta, automática, operável por qualquer criança. É tão pequena, prática e eficiente, que poderia se fazer acompanhar do famoso reclamo das Pílulas de Vida do Dr. Rossi: “Pequeninas, mas resolvem”. Decidi testá-la nos monturos de Teresina. Ao longo de seis meses, sem me afastar mais de 10 km do centro da cidade, fotografei uma centena de flores de monturo, algumas de estonteante beleza. Com ardente paciência, saí garimpando aquelas inúteis preciosidades, com a alegria de quem descobre ouro, ainda que ouro de tolo. O Resultado aí está: a exposição Flores de Monturo – a educação do olhar. É escusado dizer que qualquer aprendiz de fotógrafo encontrará uma trezena de “defeitos” nas fotos expostas: enquadramento, foco, luz e o escambau. Isso não me tira o sono: como diria o poeta, “sou apenas um pobre amador”. O objetivo da exposição é tão somente propor uma reflexão sobre olhar e ver, realidades que, não raro, andam divorciadas. Quando nos limitamos apenas a olhar, estamos nos privando da fruição da insólita e instigante beleza dos monturos. E eu vos asseguro: o monturo é fértil.



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

DE VOLTA AO BATENTE




Era muita falta de sacanagem, desinsorte infeliz, muita falta de azar! Primeiro, passou a manhã com as mãos dentro da água gelada tentando enrijecer os nervos. Êta dor atroz! À tarde haveria revisão da junta médica do INSS e ganharia mais uns seis meses de lambança. Na primeira vez o truque da água de gelo deu certo, por que agora não haveria de dar? De seis em seis meses no benefício acabaria se aposentando de vez, com salário integral. Aí era só correr pro abraço!

Segundo, no horário marcado ela estava lá, de prontidão, mãos disfarçadas numa luva térmica para manter a frieza. Nem banho tomara, para não desfazer seu intento. Os exames eram nas mãos e não ginecológico. Podia feder à vontade que os médicos não iriam sentir. Mas, e se de repente pintasse um clima com algum deles? E se houvesse algum tarado entre eles e a mandasse tirar a roupa? Deus do céu, quanta tentação! Estava numa secura de anos, será que resistiria? Sim. Primeiro a obrigação, a aposentadoria; depois a devoção, os prazeres da carne e do espírito! Lembrou-se de um casal de portugueses que queria levar um gambá para Portugal. Mas como embarcar bicho tão fedorento sem que fosse pego pela alfândega? Maria deu a ideia:

– Resolvido o problema, Joaquim! Escondo o gambá na minha calcinha!
– E o fedor?
– Ora pois! O gambá que se cuide!

Não era o seu caso, claro, mas teve a sensação de estar pior que gambá. O calor era terrível, agravado pela quebra do ar condicionado. A suadeira era geral. Colocaram um ventilador dos tempos do arco da velha e parecia querer sair do lugar. Mas ventilava forte. Vento? Não, por favor, não! Vai derreter o gelo!

Duas horas depois foi atendida e o chefe da equipe médica achou que ela não tinha mais nada. Sua tendinite havia sarado. Os outros médicos sequer olharam para ela. A decisão já estava tomada: teria que retornar ao trabalho, dois dias depois. Maldito calor!

De retorno a casa, decidiu passar no banco. Era melhor avisar ao chefe que estava de volta. Seus colegas, quando a viram adentrar pela porta principal, esconderam a carteira pensando que ela fora ao banco atrás de mais dinheiro emprestado. Era useira e vezeiro em aplicar a facada nos colegas e, pior, não pagava a ninguém. Era muita cara-de-pau retornar para pedir mais dinheiro emprestado.

Dois dias depois se sentia radiante voltar para o batente. Parecia até o primeiro emprego, de tanta felicidade que irradiava. Sentiria falta de alguns amigos virtuais, mas isso depois ela se acostumava. Sua função no banco era caixa da gerência, só atendia os mangangões da cidade, e tomara que voltasse no mesmo posto. Era gostoso lidar com gente endinheirada. Que imenso prazer sentiria ao pegar em uma nota de cem reais! Êta tartaruguinha difícil! Quanto tempo fazia que não pegava em uma nota de cem? Isso mesmo, dois anos!

Chegou ao banco exatamente às nove horas da manhã. Bateu o ponto, beijou os colegas e procurou a gerência para saber qual caixa estava reservado a ela.

– Caixa?! Dona Vera, depois de passar o calote em todos os seus colegas, a senhora acha que somos doidos de deixar a senhora tomando conta do dinheiro dos clientes?! A senhora já viu lobo tomar conta de galinha? A sua nova função aqui dentro é servir cafezinho à gerência, bem longe dos caixas. E trate de ir logo à cozinha fazer café que estou com vontade de tomar um!






sábado, 16 de outubro de 2010

Flores em vida - Luís Pimentel









Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”
Nelson Cavaquinho


     A noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os negociantes de frutas, legumes, peixes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e assovios, cantos de galo, restinho de neblina virando poeira em direção ao aterro. O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da Rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca de Genaro, amigo desde a infância na Praça da Bandeira.
     – Melancia à essa hora, meu velho?
     – Combate a ressaca, Genaro.
     – Sai dessa vida.
     – Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim.
     Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora. 
     – Me senti um palhaço, Genaro.
     Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba que dizia assim:

"Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém

Volta, que a platéia te reclama

Sei que choras, palhaço
Por alguém que não te ama...”

     – Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum.
     A vendedora de flores também é amiga. Ela escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o passo e pega o caminho que não é de casa.
     Ia esquecendo o violão dormindo no poste, mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de fechamento do jornal e das boates da Men de Sá. 
     – Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim:

“Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha Estação Primeira
Nem sei quantas vezes subi o morro cantando...”

     Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.

– Começou a vida?

 – Maneira de dizer. Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em  Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba.

     – Ainda existe tocador de tuba?

     – Não existe mais tuba. Nem tocador.

     A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito:

     – Paga um conhaque, índio?

     Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada.

– Conhece a moça?

– A moça me conhece.

Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa:


“Não faça vontade a essa mulher
Não deixe ela fazer o que quer
Deve-se ter amizade
Mas não se deve dar liberdade...”


     – Que história é essa de índio?

     – Minha mãe era paraguaia, índia guarani. Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar?  Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir.

     – Vai, poeta.

     – Sou cantador. Poeta é o Guilherme.

     – Então canta uma das suas com ele. Pode ser Quando eu me Chamar Saudade, aquela que diz “me dê a flores em vida”?

     – Só se você prometer que não pede mais nenhuma.

     – Prometo. Mas dessa vez, com o violão.

     Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:

 

“Sei que amanhã quando eu morrer

Os meus amigos vão dizer

Que eu tinha um bom coração

Alguns até irão chorar  ...”


     Para, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos:

“Por isso é que eu penso assim:

Se alguém quiser fazer por mim

Que faça agora
Me dê as flores em vida...”

     – Me dê as flores em vida. Essa é uma obra-prima.

      – Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali.
     Pouco depois desce a 21 de Abril, de braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil.
     Mas o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência.
     É quase meio-dia e alguém sugere uma rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:

Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu sou errei quando juntei minha alma à sua...”

     Amigo tem mania de pedir música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não, não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava sendo traído”. A obra-prima tem um bom humor:
     – Vocês só gostam de música de corno?
     O índio velho tem a visão nublada e a memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre o travesseiro, também sem vida. 
     Botou no velho toca disco um 78 rotações, meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:

“Quando eu morrer, deixarei minha fama

Deixarei no mundo quem me ama
As lágrimas que rolam em meu rosto
Não sabem dizer qual é o meu desgosto...”

     Que diabo de desgosto era esse? A companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse contar para ela.


Dedicado à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O voto estético - Cineas Santos

De Vote ni mim


Irmãos e irmãzinhas, confesso - um tantinho envergonhado - que não tenho tido a necessária saúde cívica para acompanhar o horário eleitoral gratuito na TV. Eu até tento, mas são tantas as bocas dizendo as mesmas obviedades que parecem apenas vozes à procura de uma ideia. É certo que há muitos jovens, mas já parecem contaminados com os vírus da mesmice e dos clichês mastigados. Alguns apresentam como “plataforma política” nada mais que o fato de serem jovens como se juventude fosse uma conquista e não uma contingência. Pode-se argumentar, em defesa deles, que o tempo na TV é exíguo e os candidatos muitos. É verdade: dependendo da legenda, alguns mal conseguem declinar o próprio nome. Quando tentam dizer alguma coisa, comportam-se como louco comendo milho assado: mastigam nas palavras e expelem perdigotos. Um martírio.

Mas há coisas muito estranhas acontecendo. Dia desses, estava lendo um jornal quando tive a impressão de ter visto um fantasma na TV. Pensei comigo: devo ter surtado. Não é possível! Mas a figura do fantasma teimava em permanecer em minha mente. No dia seguinte, resolvi conferir. Assisti ao programa inteiro e descobri, aliviado, que não estava enlouquecendo. Lá pelas tantas, o morto apareceu e, com a voz típica dos fantasmas, fez um elogio patético a um candidato vivo, vivíssimo! Meu Deus, a quantas chegamos! À cata de votos, os políticos são capazes de tudo. Bons tempos aqueles em que um candidato afirmava que, para alcançar a vitória, seu adversário seria capaz de “pisar no pescoço da mãe”. O adversário retrucava: “Da tua”!

O tempo passa, o tempo voa, como naquela propaganda de um banco que faliu, e os vícios e as práticas antigas se repetem. Este ano, pelo país afora, há uma profusão de “ex-celebridades” tentando uma boquinha no Congresso Nacional. Há opções para todos os gostos: de boxeadores nocauteados pelo tempo a humoristas desengraçados, sem falar, naturalmente, nas mocinhas que, à falta de marido, querem ser sustentadas pelo povo brasileiro. Só de “ mulher-fruta” temos um pomar inteiro. Uma delas, a Mulher Chuchu, tem o melhor slogan da temporada: “ dá o ano inteiro”. Genial.

Entre nós, o fato novo é a presença marcante de mulheres disputando vagas na Assembleia Legislativa do Piauí. A melhor parte: mulheres bonitas, muito bonitas. Como o voto ideológico está fora de moda e o voto útil tornou-se uma excrescência, vou fazer minha opção pelo voto estético. Votarei na mais bonita, mesmo correndo o risco de encontrá-la na rua e não a reconhecer. Afinal de contas, não há beleza que não possa ser melhorada com o recurso do photoshop. Pago pra ver.



sábado, 9 de outubro de 2010

Por final, dancemos tango

De Tango

POR FINAL, DANCEMOS TANGO


Dona Maria lava a roupa todo dia. Além da rima, é uma agonia. Não foi ela a musa de Luiz Melodia, pois dispensa a quebrada da soleira. Arranja-se no fundo do quintal, entre a sombra preguiçosa da goiabeira, onde está a lavanderia de cimento, e a cozinha, onde uma vitrola em cima da mesa cantarola em hispano. Faz dueto, desafinado e incompreensível. A Língua de Cervantes não era o seu forte.

– Tango!
– Não. Júlio Iglesias – responde contrariada com a brusca interrupção.
– Tango!
– Não. Júlio Iglesias, já disse! (êta argentino burro! Além de gago, burro!) – concluiu em seus pensamentos.
– Tan golpeando la puerta! – gritou o argentino, fazendo um esforço incomum para se comunicar sem tropeçar nas palavras.
– Ah! bão! Por que não disse logo?! - lembrou-se da gagueira do argentino – Deixa pra lá!

Enquanto se dirigia à porta, dona Maria fazia suas conjecturações. Existe coisa mais incompreensível do que conversa de argentino gago? Existe. Uma assembléia internacional de gagos. Em Buenos Ayres. Será que existe assembléia de gagos? Deve existir. Hoje há fóruns, palestras, simpósios, encontros de tudo o que é classe, categoria, clube, ong, partido político e o escambau. Quem não se lembra do recente encontro dos surdos-mudos no Planalto Central? Nem no panelaço reprimido pelo general Nini Mussolini, às vésperas da votação do Diretas-Já, se viu tanto barulho. Deu nos jornais que o Presidente da República, orador oficial desse evento dos filhos do silêncio, não ouvindo nenhuma vaia da platéia, se empolgou, fez um discurso inflamado e, no final, foi calorosamente aplaudido. De pé.

Finalmente, a porta. Do lado de fora, sua vizinha, Noélia, a fofoqueira do bairro. Sabia da vida de todo mudo. Língua mais ferina ainda estava para existir. Quando morresse o corpo iria numa caixa de fósforo e a língua numa carreta. Que queria?

– Maria, me empresta meia xícara de café!
– Você quer meia xícara cheia ou meia xícara vazia?
– Sabe que eu não tinha pensado nisso. Por via das dúvidas, me dê meia xícara cheia.

Há certas coisas que não podem ser meio nem meia. Uma xícara poderia conter a metade de açúcar, de sal ou de café, a depender da precisão do vizinho, que nunca diz “me dê”, mas “me empreste”, mesmo sabendo que jamais vai devolver. Mas como se admitir ser “meio” corno? Isso não existe. Vão dizer que foi coisa que botaram na cabeça, mal-entendido, fofoca da vizinhança e coisas que tais. Mas a verdade é única e simples: ninguém pode ser meio corno, do mesmo jeito que não pode ser meio bicha, meio tarado, meio morto de fome ou meio morto empanturrado. Ou estamos com fome, ou estamos saciados. 

Às vezes dizemos inverdades e cometemos injustiças quando afirmamos que “os políticos são meio desonestos”. Não. Não são. São desonestos por completo, porque essas coisas a gente é ou não é, não pode ser apenas a metade. É como se admitir que existe meio-virgem. 
Dona Maria é invocada com esse negócio de “meio”, “meia”, o numeral fracionário, a metade. É uma incongruência, um meio para a embromação, principalmente quando se diz que “fulano tá meio ruim”. Fulano tá lá, pé na cova, e ficam arranjando eufemismos.

Essa bronca de dona Maria não é de agora. Vem dos tempos de cabaré, quando dançava à meia-luz dos spots coloridos, embaçada de fumaça de cigarro, no compasso de ritmos eróticos. Era dançarina e faturava relativamente bem, sem ter que ralar a periquita para sobreviver. Trepava com alguns clientes, mas a ela cabia o direito de escolher com quem se acasalar. E cobrava alto.

Não entendia esse negócio de meia-luz. Se a luz está acesa, é claro; se está apagada, é escuro; se fica no meio-termo, é penumbra. Onde está a meia-luz? Por que não “meia-escuridão”?

Arranjou confusão por causa de Meio Quilo, o anão que fazia o serviço de quarto no puteiro. Não concordava com a cáften quando chamava o anão de “Meia Foda”. Não por preconizar o preconceito, mas por conter uma sentença falsa: não existe meia foda. Trepa-se por completo ou fica-se na saudade. A não ser quando se é pego de surpresa por um corno brabo e a retirada estratégica é obrigatória. Aí é interrupção de coito, o que não classifica como meio-coito. No mais, é paz e amor e pau nas coxas.

A partir dessas ponderações realísticas, o anão perdeu o famoso epíteto de Meia Foda e passou a ser chamado carinhosamente de Tamborete de Puta.

Foi com as reminiscências cabarenianas que dona Maria retornou para a sala, onde Noélia havia se aboletado. Em vez de meia xícara cheia de café, levava a xícara vazando pelo ladrão. Noélia agradeceu e, antes de sair por completo, virou-se e perguntou:

– Maria, como vai aquela sua meia-irmã?
– Meia-irmã?! Você já viu meio-pai? Você conhece meia-mãe? Aquele garoto amarelo que lhe chama de mãe por um acaso é um seu meio-filho da puta? Então vá pra meia-puta que te pariu!

Bateu a porta com força, sem esperar a réplica da vizinha. Deitou-se no sofá para esfriar a cabeça. Esse negócio de meio ou meia enchia a sua paciência.

Na cozinha, o toca CD injetou no laser outro CD. Mecanicamente Julio Iglesias cedeu lugar ao tango, das lembranças lascivas de dona Maria. Lentamente o ambiente foi preenchido pelo som voluptuoso e forte do bandoneón, acompanhado de Carlos Lombardi, com sua voz calorosa e firme, interpretando Donato e Lenz em apoteótica noite de cabaré argentino: A Media Luz.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O matador de aluguel - Luís Pimentel

De matador de aluguel



Caruá, para quem não conhece, fica em região incerta e não sabida no sertão nordestino. Avessa a badalações, divulgação ou febres turísticas, a população local me pede que jamais dê qualquer pista que identifique a cidade no mapa; até porque, Caruá não está no mapa.

Eis que notório homem de terras caruarenses resolveu eliminar um desafeto, com quem vivia às turras por conta de pendengas rurais. Contratou um matador de aluguel, que atendia pelo sugestivo nome de Trabuco, e encomendou o serviço. Com uma ressalva das mais curiosas:

– Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro. Monte a arapuca, faça o serviço e venha embora, pois se cair na besteira de prosear, você desiste de cumprir a tarefa. Leve metade do dinheiro, depois do trabalho feito venha buscar o restante.

O matador partiu e o fazendeiro foi acender uma vela pela alma do futuro defunto. Depois de aguardar o tempo regulamentar combinado neste tipo de empreitada – uma semana – pelo retorno de Trabuco, que viria trazer a prova do crime e receber a outra parte do pagamento, o fazendeiro resolveu dar uma incerta no local combinado para a tocaia, à procura de algum vestígio do serviço: o corpo, sinais de luta, um cartucho de espingarda, o que fosse.

Lembram do aviso? Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro? Não deu outra. Debaixo de um pé de umbu, curtindo a sombra em volta de uma garrafa de pinga, cigarrinho de palha entre os dedos, estavam o ex-quase-futuro morto e aquele que deveria mandá-lo desta para uma melhor. A prosa parecia das mais animadas, o camaradeiro entregue à sua atividade principal, o exercício da camaradagem, e o (im)provável matador às gargalhadas, embevecido com as histórias deliciosas que ouvia.

Ao ver o contratante, pasmo e incrédulo sobre o cavalo, o contratado pegou o maço recebido com adiantamento e o devolveu, com esta pérola:

– Tome o seu dinheiro de volta, coronel. Um homem alegre desse não se mata!



sábado, 2 de outubro de 2010

O reconhecível cheiro da alegria - Cineas Santos

De English Lavender


Em mais de uma oportunidade, já afirmei que pesco as minhas alegrias em lagoa rasa com anzol de linha curta. Assim tem sido ao longo da existência. Hoje, gostaria de dividir com os meus três leitores uma pequena/grande alegria: recobrei o meu cheiro, ou melhor, o meu cheiro está de volta. Não se assustem, irmãos, eu explico. Menino, vivendo em São Raimundo Nonato, fui incumbido por um cidadão chamado Barbosa de ir buscar, na república onde ele dormia, um exemplar da revista O Cruzeiro. Na verdade, era um quartinho ordinário, com uma rede, uma mesinha e um cabide com peças de roupa. Ao lado da revista, vi uma caixinha branca com listras amarelas e cinza. No rótulo, a expressão English Lavender, intraduzível para quem mal gaguejava algumas palavras. Movido pela curiosidade - julguei tratar-se de remédio - retirei o frasco da caixa e destampei-o. A fragrância impregnou-me a alma para sempre. Naquela altura da existência, eu já havia preparado uma lista com produtos que teria de comprar quando crescesse: uma sanfona Scandalli, uma bicicleta Monark, um relógio Lanco, um rádio Philco e uma calça rancheira. Acrescentei um frasco daquele perfume suave e irresistível. Munido de tais apetrechos, estaria preparado para conquistar Cleonice, por quem errava meu coração...

Já se disse que o homem é um animal que prepara listas para pôr alguma ordem no caos e limitar seus desejos. Daquela primeira lista, só perfume efetivamente tornou-se realidade. Quando completei 15 anos de idade, comprei o primeiro frasco de English Lavender que, desde então, passou a ser o meu cheiro. São 48 anos da mais absolutamente fidelidade. Nunca nem sequer pensei em substituí-lo por outro.

Ocorre que, por algum tempo, o produto foi retirado de circulação. Confesso que bateu o maior desespero. Como enfrentar o mundo sem o meu cheiro? À época, cheguei a consultar um causídico sobre a possibilidade de processar a Atkinsons por danos à minha alma. Como viciar um cristão com um produto e retirá-lo de circulação sem aviso prévio? Imaginem a Coca-Cola fora do mercado? Seria uma grita capaz de despertar a ira do Senhor. O certo é que, sem ter a quem recorrer, escrevi uma crônica – O Inconfundível Cheiro da Velhice – na qual, pateticamente, implorava: meus amigos e minhas amigas, se, em suas andanças por aí, encontrarem o meu cheiro, comprem (é baratinho) para mim e me deem de presente no dia do professor, dos pais, dos desesperados... É com esse cheiro e vestido de azul que pretendo encarar a eternidade. Luíza Miranda foi a única a atender às minhas súplicas: deu-me um exemplar encontrado no próprio guarda-roupa. Passei a usá-lo parcimoniosamente, como quem usa água benta...

Eis que, de repente, a English Lavender, com roupagem nova, mas conservando a mesma fragrância, voltou às prateleiras dos supermercados, armarinhos e farmácias. Para evitar sobressaltos, estoquei o bastante para uns vinte anos. Amigas de meu coração, eis-me aqui, vestido e azul e exalando o reconhecível cheiro da alegria. Vinde e compartilhai.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dos factoides aos fatos

De Comprador de almas

O anedotário político conta que, passada a eleição numa cidadezinha do interior, o coronel político local dirigiu-se à zona rural para devolver os títulos eleitorais aos seus respectivos donos. Um dos eleitores, ao ter o título de volta, perguntou:

- Coronel, o senhor pode nos dizer em quem nós votamos?
- Ora, pois! Como vou dizer?! Vocês não sabem que o voto é secreto?!

À primeira vista, isso parece coisa do passado, mas, à luz do século 21, tudo isso acontece, escancaradamente, por todo o Brasil, de forma mais ladina e mais safada. E não só com a gente simples do interior, mas com os doutos citadinos e pseudos formadores de opinião que enchem nossa caixa de correio eletrônico com montagens mal feitas e notícias inventadas como se tudo verdadeiro fosse.

Ainda não sei qual o mais daninho: a compra e venda do voto em si, ou essas mensagens apócrifas que circulam na Net, encaminhadas por suposta gente do bem, que deveria, no mínimo, pesquisar a veracidade da fonte antes de passar adiante como fato consumado. A mais aberrante que vi, até agora, é uma que me encaminharam, recentemente, afirmando que Dilma havia feito um pacto com Satanás para ganhar a eleição e, um ano depois, morreria de câncer, entregando a presidência para seu vice, Michel Temer, “este sim, o verdadeiro filho do Capeta”, dizia a mensagem.

Seria cômico se não houvesse a maledicência por trás da falsa notícia. No oba-oba, os mais fracos de espírito acreditam que realmente isso aconteceu e que Dilma colocou sua alma à venda a troco de um simples ano de governo. É o desespero dos neonazistas na tentativa de se reverter a iminente derrota de Serra, um candidato sem brilho, sem proposta, e repleto de promessas eleitoreiras. Esse negócio de prometer dar aumento irreal para o salário mínimo e aposentados beira à irresponsabilidade e loucura. Como o brasileiro tem memória curta, vale a pena relembrar: no governo FHC foi a maior briga no Congresso Nacional para se elevar o salário mínimo a 70 dólares. E os trabalhadores sofreram oito anos sem aumento de salário. O atual governador de Alagoas, do partido de José Serra, vai deixar o governo sem dar um centavo de aumento ao funcionalismo público. São quatro anos de arrocho salarial e agora o representante maior do PSDB vem com promessas mirabolantes, achando que o povo é idiota.

No mês de junho as enchentes devastaram uma parte de Alagoas, matando dezenas de pessoas e desabrigando milhares. Santana do Mundaú, a cidade mais atingida, e ainda praticamente destruída, ressurgiu dos escombros para entrar no noticiário policial. O prefeito de lá, e os respectivos secretários, foram afastados do cargo por gastar quase um milhão de reais em campanha eleitoral para um candidato da coligação peessedebista. Como se não bastasse, a polícia apreendeu toneladas de doações guardadas na casa do alcaide, que só distribuía aos necessitados mediante o compromisso do voto nos candidatos do mesmo. Alguns secretários, verdadeiros ladrões, encontram-se foragidos, pois também fora decretada a prisão dos mesmos.

No mês de agosto esse mesmo prefeito apareceu na imprensa local reclamando da rigidez na aplicação das verbas federais na reconstrução das cidades atingidas pela catástrofe, que, em vez do dinheiro parar nas contas das prefeituras, fora criada uma conta sob a responsabilidade do governo estadual, cujo uso deveria passar pelo crivo do Ministério Público e Tribunal de Justiça. Dentre outras coisas, ele, o prefeito, disse: “O Governo Federal está tratando os prefeitos como bandidos.”

Diante dos últimos fatos, eis a constatação:

- E não é que Lula tinha razão!


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Plantio - Luís Pimentel



Um poema de Luís Pimentel com cheiro de infância no arraial do Junco.

De Semeando a terra

Plantio

É assim que se faz:
com uma enxada pequena
abre-se a cova, também pequena,
acumulando ao seu lado a terra retirada.
De um saco de pano pendurado na barriga
retiramos a semente - de milho ou de feijão -
e a jogamos dentro da cova.
Com o pé empurramos a terra,
que vai cobrir, aninhar, esquentar a semente
até que ela fomente, se inflame, renasça um dia
- como a cada dia em que renascemos.
O trabalho pode ser desempenhado a dois.
E é bem mais interessante quando feito
por um menino e sua avó.
Um menino, uma avó, uma enxada pequena,
uma sacola de pano cheia de sementes
- quase sempre de milho ou de feijão -
pendurado no peito murcho da avó.
As mãos da avó na enxada,
esburacando a terra com tanto carinho
que acho até que a terra nem sentia.
O pé miúdo empurrando a terra
e ordenando ao menino que fizesse sua parte.

Que era jogar com o pé a terra dentro da cova,
cobrindo a semente de milho ou de feijão
ali despejada pela avó,
completando o ritual que - como saber? quem saberia? -
ficaria para sempre na memória.



E em seguida era
torcer pela chuva e acompanhar a gravidez da terra.
E o seu parto, brotando a primeira folha,
promessa do esperado fruto,
e em todos os passos, passo a passo o caminhar da avó,
o seu silêncio do plantio à colheita,
da semente à panela,
o gosto do feijão e do milho,
o cheiro da avó que o tempo levou em covas:
foi assim que se fez.




Pétalas - Cineas Santos

De Convite - Pétalas - Cineas Santos

IRMÃOS E IRMÃZINHAS: FAZIA UM TEMPINHO QUE EU PROCURAVA UM PRETEXTO PARA REUNI-LOS E PODER ABRAÇÁ-LOS. POR FALTA DE COISA MELHOR, ENGENDREI UM LIVRINHO DE POEMAS CIRCUNSTANCIAIS E UMA EXPOSIÇÃO COM FLORES DE MONTURO. DE QUEBRA, TEREMOS A BOA MÚSICA DE JOSUÉ COSTA E UMA TAÇA DE CAJUÍNA.ENTÃO FICA COMBINADO: DIA 30 DE SETEMBRO (QUINTA-FEIRA) NA OFICINA DA PALAVRA (R. BENJAMIN CONSTANT-1400) - ÀS 20 HORAS.

FRATERNALMENTE,

VELHO ANCIÃO
(Cineas Santos)

domingo, 26 de setembro de 2010

Das Inconveniências da Fama - Cineas Santos

Adoniram Barbosa, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, era uma figura singular: sendo um dos maiores compositores da MPB, comportava-se como um cidadão comum. Meio triste, um tantinho irônico, percorria os bairros de sua predileção- Brás e Bexiga - com seu indefectível chapéu de feltro, bigodinho cafona, gravatinha borboleta e paletó de cor inescrutável. Gostava de fumar, beber e prosear com gente do povo. Foi, seguramente, o maior cronista musical de São Paulo. O sambista que deu voz aos “despossuídos”, inclusive, aos vagabundos.

Conta-se que, certa vez, a Prefeitura de São Paulo resolveu homenageá-lo por um pretexto qualquer. Armou-se um belo palco, convidaram-se intérpretes famosos, autoridades, imprensa e picaretas em geral. Meio deslocado, Adoniram recebia cumprimentos e empurrões. Lá pelas tantas, o homenageado já estava no fundo do palco. De repente, passa por ele o secretário de cultura do município. Sem levantar a voz rouca, o compositor perguntou: “Ô meu, não dá pra transformar isso tudo em...” e esfregou o indicador no polegar. O secretário sorriu amarelo, deu um tapinha nas costas do sambista e misturou-se aos notáveis. Sem ter o que fazer naquele palco estrelado, o autor de Saudosa Maloca desceu, procurou o botequim mais próximo e foi tomar sua cerveja e pitar um cigarrinho sossegado. Na hora de pagar a conta, comentou, irônico: “Tudo isso não me rendeu uma birita”.

Por que me lembrei disso? Bem, na semana passada, fui procurado por uma cidadã jovial, elegante, loquaz. Depois dos elogios de praxe, o pedido: “Professor, o senhor poderia me indicar um bom professor de português? Com essas novas regras, está todo mundo confuso. Queremos oferecer um curso básico de português aos nossos funcionários”. A cidadã é diretora de uma instituição. Provoquei-a com a pergunta: Pode ser velho? . A moça sorriu: “Claro, professor”. Fechei o diálogo: Estou à mão. Contrate-me e começaremos amanhã mesmo. A jovem senhora não escondeu o espanto: “O senhor?! Impossível: o senhor é famoso e não podemos pagar-lhe”.

Sem querer comparar-me a Adoniram: ele era um gênio; eu, um simples come-giz, repito, com outras palavras, o que ele afirmou: a minha ‘fama’ não me rende um mísero contrato temporário de trabalho. Curiosamente, sou solicitado a cada instante para proferir palestras, escrever prefácios, e “abrilhantar” festa de formatura, de batizado de cachorro, de casamento de boneca, de enterro de anão... De graça, é claro!

Minhas irmãs, meu irmãos: espalhem aos quatros ventos que sou apenas um professor; que não quero cargo, homenagens, louvações. Quero apenas que me contratem para ministrar aulas. É certo que não sei muito, mas como já errei o bastante, posso evitar que meus alunos cometam os mesmos erros que cometi. Posso ensinar-lhes, por exemplo, distinguir fama de brilhareco.


sábado, 25 de setembro de 2010

Pra não dizer que não falei de eleições - Edna Lopes


De STF



Sou do tipo que vê o guia eleitoral embora não decida meu voto por ele. Vejo porque me ajuda a confirmar EM QUEM NÃO VOTARIA JAMAIS.Mas quando vejo meu filho de 13 anos assistindo interessado, curioso, aprendendo a analisar os “discursos”, questionando posicionamentos, vejo que tem a sua utilidade.

Debates na TV e no rádio

Francamente, quando termina fico com raiva de mim mesma porque sabotei minhas horas de sono ouvindo troca de insultos. Lamento que desperdicem um tempo precioso que seria para divulgar minimamente programas de governo, aos menos nas áreas mais cruciais para o desenvolvimento de um país, de um estado: Saúde, educação, segurança, abastecimento, cultura...

Lixo eletrônico

Certamente que nenhum contato meu, amigo/a, colega de trabalho, familiares, pessoas que me conhecem apenas pelo que escrevo ou que de algum modo mantêm contato comigo recebeu ou receberá nenhuma mensagem desrespeitosa que deprecie com piada, com insultos e ofensas QUEM QUER QUE SEJA! Lamento quando abro emails de pessoas que sei que são sérias, responsáveis, repassando textos eivados de intolerância, de preconceito e de maldade. Fico imaginando se a energia e o tempo gastos com esse tipo de coisa não poderiam ser canalizados para algo realmente construtivo. Ah, concordo com você: sou uma chata!Respeito quem tem posicionamento contrário ao meu mas, não sou obrigada a gostar de baixaria, venha de onde vier.

Senso crítico

Posso parecer simplória, ingênua ou até equivocada em questões que não são do meu interesse, mas não sou alienada nem “Maria vai com as outras”. Não sou filiada a nenhum partido, mas respeito muito quem o é por convicção ideológica. Minha militância é pela vida.Tenho posicionamento, opinião e exercerei meu direito de eleitora coerente com o que penso e o que faço.Não voto em branco, não voto nulo, faço minhas escolhas consciente e meu voto não é moeda de troca. Está tudo muito bom? NÃO! Está tudo muito bem? Também NÃO! Mas não sou do tipo que acha que “pior não fica”. Fica sim e não será com a minha aquiescência e conivencia. Concluo minhas simplórias opiniões com um fragmento do poema Aos que hesitam, de Bertolt Brecht.

“Daquilo que dissemos, o que agora é falso?
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que restou,
Lançados fora
Da corrente viva?Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?
Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Antonio Torres: setenta anos de estrada

O mês de setembro, na Bahia, é tempo de se homenagear os Ibejis, representados na religião católica pelos gêmeos São Cosme e São Damião. Assim, católicos e iorubaianos se unem (e se reúnem) à mesma mesa de caruru, que deve ser acompanhado de vatapá, arroz branco, xinxim de galinha, feijão fradinho, pipoca, rapadura e rolete de cana. E muita cerveja e foguetório.

O mês de setembro, nas Alagoas, começou com um visitante ilustre que veio participar da primeira festa literária da cidade histórica de Marechal Deodoro, primeira capital das Alagoas, quando ainda tinha o nome de Vila de Santa Madalena da Lagoa do Sul: o escritor junquês Antonio Torres. Chegou aqui na tarde de sexta-feira, participou da Flimar no sábado à tarde, e, no domingo, cedo da manhã, pegamos estrada rumo à terra do Senhor do Bonfim.

Na Bahia, quem nasce em setembro comemora o aniversário à base do azeite de dendê, mas Antonio Torres não teve tempo de parar sequer numa birosca e abocanhar o pirão suculento duma moqueca apimentada, tantas foram as homenagens recebidas ao longo do caminho. Também, eu dirigindo e ele abstêmio, ficava difícil sentir o gosto duma loira gelada.

Chegado a tempo do almoço na casa do mano Raimundo, em Alagoinhas, depois de uns dedos de prosa, visitamos alguns parentes e amigos. Poucos. Os amigos dele, a maioria, morreu; os meus, fizeram como eu: debandaram da cidade. Na segunda-feira, véspera do feriado de sete de setembro, o carro não resistiu à buraqueira e os quebra-molas da estrada e “morri” na troca dos amortecedores e mais a ribombeta da parafuseta da direção. O jeito foi apelar para a solidariedade de Raimundo, que nos levou até o arraial do Junco em seu carro, depois de deixar meu velho fusquinha na concessionária da Fiat.

Queria chegar ao Junco em alto estilo, soltando fogos na Ladeira Grande, mas, na pressa, deixei os rojões na mala do carro. O jeito foi chegar discreto, como uma pessoa comum, sem alarde nem anunciação. Fomos direto para a Rádio Felicidade FM, onde estava agendada uma entrevista com o grande apresentador e campeão de audiência Arizio Torres.

Era dia de feira, muito vai-e-vem das pessoas e muitos bêbados nos botecos. Dia de segunda-feira é o único dia que vale a pena se ir ao Junco. Nos demais, é só solidão e suicídio. Alguns, insólitos, como o de sêo Bronzino que saiu de casa batendo a porta, desgostoso da vida, decidido a amarrar uma pedra no pescoço e se atirar no açude, depois de um pega pra capar com a mulher. Ao molhar a mão pra se benzer antes de cair n’água, gritou apavorado: “Vixe, Maria, mãe do Céu! Acabei de tomar café quente e ia me molhar nessa água fria!” E sêo Bronzino morreu de velhice, trinta anos depois.

Após a entrevista na Rádio Felicidade FM, procurei um balcão para molhar a garganta e jogar conversa fora com os da terra. Parei no bar de Luiz de Rouxinho, onde os pinguços da roça marcam presença. Raimundo e Tote foram forrar o estômago na casa de Nininho, onde Rita e João, outros irmãos, os esperavam. Já Nininho fez o sacrifício de me acompanhar na rodada etílica.

À tarde, Antonio Torres falou para alunos e professores no Grupo Escolar Prof. Edgard Santos, colégio onde levei muitos bolos de palmatória da Professora Serafina. Mas aprendi a ler, principalmente, escrever. A teoria da citada professora dizia o seguinte: ao bater na palma da mão, a gente gritava. Gritando, ativava a circulação. Ativando a circulação, irrigava o cérebro e assim a gente aprendia mais facilmente. Antonio Torres também estudou lá, com esta mesma professora, só que ele era cdf (lê-se: “cedêéfe) e, em vez de lapada no couro, recitava Castro Alves e Olavo Bilac.

A palestra foi mediada pela professora e poetisa Cristiana Alves, mestranda da Uneb, em Alagoinhas. Inhambupe mandou um caminhão de representantes, talvez em penitência de arrependimento pelas pedradas que recebíamos quando passávamos por lá, pongados em paus-de-arara. Foram tantas, que o Governo Federal teve que intervir, construindo um desvio da BR-110, retirando a passagem obrigatória por dentro da cidade.

À noite, muito fria por sinal, o Sr. Secretário das Finanças, Dr. Luiz Eudes, atuante nas Artes e nas Letras, promoveu um jantar em seu sítio, onde compareceram o prefeito, alguns vereadores e o presidente da Câmara, que, por um acaso, é o sogro do anfitrião. Também havia muitas loiras. Geladas, oxigenadas e naturais. Divinas e belas, “parecia que eu estava em Ipanema”, disse o escritor ao repórter do jornal A Tarde, dois dias depois, em entrevista na UEFS. Ipanema ou não, só sobrou pra nós a loira gelada servida em copo de cristal.

O escritor recebeu placa da Câmara de Vereadores, placa oferecida pelo prefeito e sua esposa, e placa da Prefeitura, em agradecimento do povo da terra ao seu filho mais ilustre. O Sr. Secretário da Educação fez um discurso emocionante, o prefeito, idem, e a cidade dormiu em berço esplêndido, sonhando com um porvir risonho. Mal o sol raiou, Luiz Eudes nos levou de volta a Alagoinhas, pois Raimundo precisou retornar no mesmo dia para pegar meu carro na oficina.

Quando chegamos na terra da laranja, era sete de setembro, dia de festa cívica na cidade. A população para nas calçadas das ruas centrais para assistir ao desfile infanto-juvenil das escolas. E do Exército e PM. E voluntários da pátria, LBV, Rotary e Clube dos Bêbados e Ligeiramente Bêbados. O último desfile que “não” assisti, foi aos dezenove anos, quando desfilei garbosamente na farda verde-oliva.
Disseram-me, antes de pôr os pés na rua para ver a banda passar, que a festa continuava brilhante tal qual nos velhos tempos; disseram-me, ao voltar desapontado, que foi o pior desfile de todos os tempos.

À tarde, carro aparentemente novo, pegamos estrada para Feira de Santana, onde o escritor passou dois dias sendo homenageado pelo povo de lá, via Universidade Estadual de Feira de Santana, a UEFS. Na garupa, Cristiana Alves, que falaria ao povo de Feira sobre os autores da sua terra e, ao voltar, daria testemunho de como o Junco é popular além da Ladeira Grande.

Mas aí já é uma outra história.



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Atendendo a inúmeros pedidos do povo do arraial do Junco, posto aqui, na íntegra, a entrevista de Antonio Torres À Arizio Torres, que foi ao ar pelas antenas da Rádio Felicidade FM, no dia 06 de setembro de 2010. Você, caro leitor deste blog, que não é do arraial do Junco, mas gosta do referido escritor, conheça mais sobre a vida deste que saiu de uma cidade que não constava no mapa do Brasil para entrar com glamour no mapa do mundo.


















Antonio Torres é homenageado no Junco.

Durante jantar na casa de Luiz Eudes, o escritor Antonio Torres recebeu homenagem da Câmara de Vereadores e da Prefeitura Municipal de Sátiro Dias, o velho arraial do Junco. O prefeito Joaquim Neto e sua esposa Vaitsa também lhe prestaram homenagem.




Antonio Torres na Roda de Prosa “O trabalho pedagógico com o livro e a leitura”, na Flimar, promovida pelas professoras Edna Lopes e Cláudia Pimentel.




Introdução da oficina de Antonio Torres na I Feira Literária de Marechal Deodoro.