sexta-feira, 1 de julho de 2011

Edna Lopes - O forró daqui é melhor do que o seu?

Encerrando a página de junho, mês de festejos do primeiro ao último dia em várias cidades do nordeste, constato que, pela primeira vez em muitos anos, sinto-me devedora em relação a minha contribuição na festa.

Por compromissos de trabalho não recebi amigos em casa no dia de Santo Antônio e meu dia de celebrar a vida, mas prometi ao Santo que o farei em dia e hora a combinar com ele e com minha agenda. Por questões de saúde descansei mais que festejei o S. João e o S. Pedro abrindo exceções aqui e ali quando o corpo permitiu.

Do visto e vivido, a sensação de que cada vez mais nos distanciamos dos festejos da forma mais saudável, das tradições que sustentou ao longo da história, nossa identidade cultural. Há quem mate e morra pelas disputas das quadrilhas estilizadas que, como espetáculo, tem seu brilho e valor, mas não me convencem como expressão do jeito de ser e viver do nordestino.

Sou chata. Atrações contratadas a peso de ouro com dinheiro público, deveriam no mínimo, obedecer ao critério, cuja apresentação devesse conter elementos que ressaltassem a cultura, ressaltassem valores éticos e de civilidade, mas, salvo exceções, muitas dessas “atrações” seriam apropriadas para um circo dos horrores, com mulheres seminuas em coreografias de sentido no mínimo duvidoso, músicas que incitam a violência e promovem o mau gosto, a baixaria. Nada contra a quem canta o que quiser e lhe aprouver, ou quem gosta de ouvir, mas com dinheiro PÚBLICO acho um acinte!

Minha chatice reconhece acertos.Pude ver e sentir que nas cidades do interior (não todas, é claro) ainda se luta bravamente para se manter algumas tradições como as quadrilhas matutas, o degustar das comidas típicas da época, a contratação de atrações ligadas aos festejos juninos, a festa nas casas das famílias, a decoração mais característica, entre outras.
Para minha alegria, visitei amigos no S. João e mesmo não tão bem de saúde, aproveitei esse clima de genuína alegria.

De volta a casa, fui ao show de Alcymar Monteiro e me emocionei com as músicas que fazem sucesso há muito tempo e os aboios cantados por ele e seus fãs a plenos pulmões...Gente simples, com filhos pequenos e talvez netos. Gente que como eu, não nega sua raiz. Minha alegria se completou quando na despedida Alcymar lembrou: “Podem trazer seus filhos ao meu show, aqui não se canta baixaria”. Nem preciso dizer o quanto foi aplaudido.

Também quero parabenizar o gol de placa que foi a festa de rua dos SERESTEIROS DA PITANGUINHA no dia 28, um grupo que ao longo de 16 anos faz resistência cultural aqui em Alagoas. Das caras festas para privilégio de poucos ao arraial com milhares de pessoas festejando, vestidas a caráter, maravilhadas com as atrações que destacavam a fina flor da música nordestina foi um salto e tanto. Além dos próprios Seresteiros, a animação ficou por conta de Chau do Pife, da cantora Wilma Araújo e de Tião Marcolino, numa canja especial. Encerrar a noite ouvindo a beleza da voz de Khristal, uma potiguar que encanta com sua apresentação personalíssima, foi um privilégio que precisamos repetir ano que vem.

Para encerrar os festejos e comemorações juninas, fui à procissão de S. Pedro na paróquia do Pontal da Barra, na tarde do dia 29. Organizada pela colônia de pescadores, já fazia alguns anos que não era realizada e mesmo na simplicidade, foi bonito ver a expressão da fé e do respeito às tradições daquela comunidade às margens da lagoa Mundaú.

Tenho plena consciência que o forró daqui NÃO é melhor do que o seu, mas a ideia de festejar de forma saudável e respeitosa as nossas tradições e costumes nas festas juninas é a minha bandeira e certamente a de muitos e muitas que, como eu, sabem que, para além da diversão, o que está em jogo numa festa dessa magnitude é a sobrevivência da nossa identidade como povo nordestino, cujas raízes rurais são fonte de inspiração para praticamente todas as expressões da arte que se faz nesse país.

O forró daqui NÃO é melhor do que o seu, mas quem sabe não chega perto?


quinta-feira, 30 de junho de 2011

A volta dos que não foram


De O blogueiro e o artista



Finalmente de volta pro aconchego. E já não era sem tempo, resmungou a cara-metade que não pôde me acompanhar nessa turnê etílica junina. Uma semana e mais alguns dias de pleno arrasta-pé pelo interior da Bahia, e mais uma parada na capital baiana pra rever os amigos. Aliás, poucos, porque a maioria, se não estava de ressaca, estendia as festas até São Pedro.

São Pedro é santo de viúva, dizia a minha mãe. E nunca acendeu uma fogueira para o porteiro do Céu, nem mesmo depois que ficou viúva. Também é padroeiro dos pescadores, mas, de onde viemos, achar água já era difícil, imagine ter pescador em procissão. A ladainha lá era rezada pra outro santo ou santa, o das chuvas, que não sei quem é.

Nos anos 60, antes de Inocêncio Oliveira se dizer o dono dele, o DNOCS andou mostrando serviço por lá e encanou a água de poço artesiano até as casas do povo. Um milagre de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira da terra, que se transformou em muitos votos para os políticos da UDN.  Mas os gestores público nunca fizeram manutenção nos poços e agora a água está salobra e o povo, em vez de matar a sede com um copo d'água cristalina, está se suicidando em câmera lenta com o excesso de sal acumulado no sangue. Não é à toa que o alcaide está se dando bem e expandido seu negócio de hemodiálise pelo sertão baiano.

Mas deixemos a água de lado que no São João o negócio é licor, de preferência, jenipapo. Infelizmente as festas juninas  no Nordeste estão perdendo a tradição graças à contratação das duplas sertanejas e das estrelas da axé music. Em vez de um pau de porteira, dança-se na boquinha da garrafa. Uma cidade baiana contratou a grande estrela forrozeira Adriana Calcanhoto para animar a festa. Voz e violão. São João, o santo mesmo, deve ter feito calo nos pés de tanto dançar.

O prefeito do Junco não fica atrás e tem verdadeira adoração por essas duplas sertanejas e dos pagodes da vida. Por ele, toda festa teria Victor e Léo de dia, e Xande, de noite. Mas este ano a banda tocou diferente. Graças a uma campanha deflagrada nessas comunidades cibernéticas que retumbou nas grotas junquesas, ele foi obrigado a se render à vontade popular e fez o São João dentro dos conformes tradicionais.

E o som da sanfona ecoou de 22 a 25 de junho, reunindo o povo no mais autêntico forró pé de serra. Coube a Dominguinhos, o maior sanfoneiro vivo do Brasil, encerrar com chave de ouro a festa na Praça, no dia 24. Aliás, minto: a surpresa ficou na canja que ele deu a uma cantora local, que fez muito sucesso nos anos setenta e oitenta cantando em banda de baile do marido e cunhados: Lia de Bispão. A multidão vibrou ao ouvir sua voz ecoar na Praça interpretando “De volta pro aconchego”, acompanhada pelo próprio autor da música, e vi muitos olhos lacrimejarem porque uma grande parte dos expectadores era de gente de volta pro aconchego da terra. 

O dia 25 foi dia de concurso de quadrilha junina, mas aí eu já estava com o pé na estrada. 

E o prefeito, depois de elogiado até por alguns da oposição, descobriu que algumas coisas boas nem sempre estão no plim-plim Global.



segunda-feira, 20 de junho de 2011

Recesso temporário do blogueiro



Comunico aos leitores deste blog que o blogueiro, depois de ler a crônica de Luís Pimentel falando do são joão na terrinha, não resistiu à tentação e,nos próximos dias, estará em turnê etílica licoreira pela Bahia e provavelmente não haverá novas postagens no blog até o dia 30 deste.

Como se diz lá na minha terra, nessa época: VIVA SÃO JOÃO!

Inté a volta.

Cineas Santos - O Homo Faber do Sertão

Num gesto de pura generosidade, a jornalista Cláudia Brandão, com a cumplicidade de Zózimo Tavares, publicou, no Diário do Povo (12/06/11), uma crônica – “O Midas do sertão” – na qual me atribui qualidades e importância que efetivamente não tenho. Comovido, agradeço-lhe o carinho, mas a verdade deve prevalecer sempre. Em relação ao Salão do Livro do Piauí, por exemplo, a iniciativa não foi minha. Na década de 80, eu realizava, praticamente sozinho, o seminário Língua Viva, tentativa de propiciar aos professores piauienses o necessário diálogo com os gramáticos e linguistas do país. Por minha conta e risco, trouxe a Teresina, entre outros, Celso Cunha, Evanildo Bechara, Celso Pedro Luft, Napoleão Mendes de Almeida e José de Nicola Neto. Cansado de malhar em ferro frio, resolvi parar. Foi aí que apareceram os professores Wellington Soares, Luís Romero e Nilson Ferreira e me propuseram a realização do SALIPI. “Emprestei-lhes” o meu nome e autorizei-os a utilizá-lo onde pudesse ter alguma utilidade. Os rapazes foram à luta e, em 2003, nasceu o Salão. Não sou, portanto, o pai da ideia. Sou,quando muito, um avô afetuoso. Além disso, o SALIPI só se mantém vivo graças ao apoio de muitos parceiros, entre eles, o governo do Piauí e a Prefeitura de Teresina, para citar apenas dois. Trata-se de um trabalho coletivo.

A Cláudia acertou em cheio quando falou da minha paixão pelos livros, pela educação, pela cultura. Não respiro bem onde não exista efervescência cultural. Creio que o título da crônica estaria mais adequado se fosse O homem faber do sertão. Ao longo da vida, tenho sido apenas isto: um fazedor. Sofro de uma saudável inquietação que me impele a fazer sempre, independentemente das dificuldades a serem enfrentadas. Em 1969, quatro anos após chegar a Teresina, eu já estava à frente de um magro grupo de teatro, mambembando pelos sertões do Piauí e do Maranhão. Desde então, como professor, editor e produtor cultural, tenho realizado muitas atividades, coisas pequenas, mas que, no conjunto, constituem um lastro de certa expressão. Entre as realizações, faço questão de destacar a criação do grupo A Cara Alegre do Piauí que, há 34 anos, presta serviços onde for solicitado. Na próxima semana, por exemplo, estaremos ensinando, aprendendo e compartilhando experiências com professores e alunos de Pio IX. Compartilhar é o meu verbo preferido.

Depois de milhares de aulas ministradas, centenas de palestras proferidas, dezenas de livros editados, todos os dias me surpreendo fazendo a mesma pergunta: o que serei quando crescer? No limiar da senescência, continuo apaixonado por tudo o que faço. Sou um amador, na acepção plena da palavra. O que amealhei? O que não está à venda em nenhum lugar do mundo: o respeito e o carinho de pessoas especiais como a Cláudia Brandão, ex-aluna e sempre amiga. Para um homem do meu tope, basta.


Luís Pimentel - Elza: mulher, negra, estrela e gostosa

Ela já me disse em uma entrevista: “Degustei lágrimas como quem degusta vinho. Sei o gosto que elas têm”. Não foi apenas uma frase de efeito. Quem conhece um pouco de sua história sabe que ela comeu o pão que o diabo amassou, apanhou mais do que boi ladrão. Mas seguiu os ensinamentos do “Che” e não perdeu a ternura, jamais.

Elza Soares, uma das mais brasileiras entre as cantoras brasileiras chega aos 74 anos neste junho de 2011, no dia 23, cantando melhor do que nunca. Possui recursos vocais personalíssimos, arrancando as sílabas da garganta como se quisesse estourar as veias do corpo. Parece que “rói do cóccix ao pescoço”, como no verso da música que Caetano Veloso escreveu para ela e que virou título de um dos seus mais belos CDs.

Outro que homenageou lindamente a garra da cantora, seu som em fúria, foi Chico Buarque. Lembrou o craque dos craques, na canção Dura na queda: “Apanhou à beca, mas pra quem sabe olhar/A flor também é ferida aberta/E não se vê chorar”.

Do velho 78 rotações ao CD, são mais ou menos 100 discos gravados, no Brasil e no exterior. Nos EUA, resolveram examinar sua garganta e concluíram que as cordas vocais eram defeituosas. Um defeito perfeito. “Armstrong ficou deslumbrado quando viu que termino de cantar e falo normalmente, que esse som é puro efeito vocal. Ele me chamava de filha espiritual”. Não vai nesse depoimento nenhum excesso de vaidade. Simples relato.

O sucesso enorme que fez com músicas como Mulata assanhada, Se acaso você chegasse, Língua, Malandro, Cadeira vazia etc., não mudou sua estrada, desde o início para cima: 

– Sou uma poderosa. Vitoriosa quatro vezes: mulher, negra, estrela e gostosa.

Diz o último verso da canção do Chico: “O sol ensolará a estrada dela...”. A estrada sempre esteve ensolarada. Elza Soares é a verdadeira guerreira da luz.



domingo, 19 de junho de 2011

Maurício Melo Jr - O Sequestro de Dom Helder

Parei de rezar há muito tempo. Hoje minha memória não alcança nada além de uma Ave Maria ou um Pai Nosso. Nada mais. A decisão foi voluntária, mas inconsistente. Tenho uma irmã carola de batizar e casar. Se o padre cochila, ela diz até missa. Ou seja, na família já tem reza de sobra, de forma que pude ir cuidar de outras coisas.
E fiz isso com um grande aval.

Numa conversa de mesa de bar ouvi o velho senador Teotônio Vilela contar: “Meu irmão, o cardeal Dom Avelar, era o diabo quando menino. Depois resolveu seguir vida religiosa, de forma que pude continuar endiabrado, e fui cuidar de política.”

Os meus pecados são menores: cuido de literatura.
Bom, voltando à carolice da família, minha irmã segue o exemplo de uma tia, também afeita às práticas do catolicismo. Ouvir a conversa das duas faz de qualquer pecador um homem pio. Eu é que, ouvindo várias dessas conversas, não tomei jeito. Fazer o quê? Como elas mesmas asseveram, são os desígnios de Deus.

Numa dessas conversas minha tia contou, um tanto em êxtase, que encontrou Dom Hélder Câmara, por acaso, no centro do Recife. Naqueles dias, finais dos anos de 1970, o arcebispo circulava sozinho, na companhia de suas crenças, cumprimento e dando atenção a todos que lhe procuravam. Nunca lhe faltou uma palavra de carinho para deixar com quem quer que fosse, uma solidariedade cotidiana.

De minha parte, na cabeceira, deixava um exemplar de O Deserto é Fértil, uma reunião de crônicas que lia por prazer e desejo de conhecimento. Impressionava-me o texto corretor, seguro, prenhe de referências religiosas, mas sem imposições. Os exemplos, Dom Helder arrancava da vida, e ela, a vida, na sua conceituação de injustiças e contradições, era que devia ser mudada. Não interessava aquele homem frágil apenas o paraíso celeste, a terra também podia ser transformada num novo Jardim do Éden, um lugar de bonança, felicidade e harmonia para todos.

Minha tia não cansava de falar da tarde em que caminhou ombreada pelo sacerdote, o interrogando e ele, pacientemente, a lhe falar de Deus e dos homens. E eu ouvia seu relato apanhando os ensinamentos possíveis. Até ganhei fôlego para discutir com um amigo, dias depois, numa ocasião qualquer. Num tempo maniqueísta, onde a isenção se fazia impossível, o amigo, um tanto emprenhado pelo cântico do este-é-um-país-que-vai-prá-frente, disparou: “Dom Hélder foi integralista”.

Parti para a defesa. O integralismo, doutrina inspirada no fascismo, criado por Plínio Salgado, foi o retrato de uma época. Vivia-se um mundo dividido entre duas possibilidades de ditaduras, esquerda ou direita, deixando no meio a democracia americana com todas as suas ambições. O discurso arrebatador de Plínio na defesa de um Estado forte e orientador, definidor de políticas para o caminho do desenvolvimento, encantou verdadeiros gênios, como Câmara Cascudo e Érico Veríssimo, e gerou um clássico da ciência política, O Estado Nacional, escrito por Francisco Campos, um sábio da direita.

Cascudo, Érico e Dom Hélder, a exemplo de vários outros, reviram seus conceitos e passaram a defender a postura de que, mais que o Estado, o homem é que deveria ser fortalecido para defender com as próprias garras sua dignidade, sua vida. E escudado nesta crença o padre partiu para a prática. Admirávamos sua disposição de, ainda nos anos de 1950, como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, criar a Cruzada São Sebastião e o Banco da Previdência. Acredito que pela primeira vez, fora dos padrões folclóricos do samba, se revelava o povo invisível da favela.

Essa mania de revelar o invisível, e que tanto desagradava os poderosos de plantão, no Recife, trouxe à tona o povo das pontes, toda uma comunidade que vivia encastelada nos vãos, entre o mangue e o concreto que, com a luz do dia, mendigava pelas ruas. Aquilo era um tapa nas ações eleitoreiras da Campanha Contra o Mocambo, de Agamenon Magalhães.

E minha tia caminhava com este homem de aparência frágil e voz suave a quem os poderosos não podiam afrontar. Agrediam sim, a igreja voltada para o combate à pobreza e a defesa dos direitos humanos. Vários de seus auxiliares mitigaram nos cárceres ou foram assassinados.

Dom Helder não temia. Seguia seu caminho. Tanto que perguntou para minha tia se ela estava de carro. Sim. “Você pode me dar uma carona? Estou indo para casa.” Ela, que morava para os lados do Espinheiros, maravilhada, guiou o próprio guia. E no caminho o indagou. “Dom Helder, o senhor não me conhece e entra em meu carro despreocupado. Não tem medo que eu o sequestre?” Passando a mão na cabeça, respondeu: “Minha filha, eu, quando adolescente, tinha uma cabeleira basta. Aos pouco Deus foi tirando meus cabelos. Assim é a vida, quando Deus quer, tira. E nós somente temos que fazer valer com dignidade o nosso tempo.”

Minha tia não sequestro Dom Helder. Chorou de emoção, apenas, e deixou o arcebispo em casa. E pelas ruas nós chorávamos de revolta a morte de padre Henrique e a prisão de Cajá, de certa forma, dois dos tantos sequestros de que Dom Helder foi vítima.


quinta-feira, 16 de junho de 2011

Nossos heróis de cada dia


De A Legião dos Suicidas

Apesar de na adolescência transitar no fumacê da onda hippie, meus heróis não morreram de overdose. Ao contrário, a maioria ainda vive, e um deles, que eu pensava já morto, ressuscitou nesses encaminhamentos de e-mail da vida virtual.

Na infância, meu primeiro herói foi Pedro Malazartes (ou Malasartes), o malandro das mil e uma artes, que singrou os sete mares e aportou nas noites estreladas do arraial do Junco. Era um malandro do bem, um Robin Hood brasileiro, um Zé Carioca caipira, irmão mais velho de Macunaíma e primo-irmão de João Grilo. Não se sabe ao certo a sua origem nem se veio na Expedição Tomé de Sousa, mas o fato é que esse personagem folclórico chegou aqui com os colonizadores trazendo sua mala de artes para embalar os sonhos de justiça da gente simples do Sertão. 

Mas, perdido o encantamento da infância, outro personagem também singrou os sete mares em busca de sua mala de artes e quando retornou à sua terra foi recebido como herói e como herói permaneceu no meu entendimento juvenil: o meu irmão mais velho. Depois de passar alguns anos na Europa, retornou cheio de histórias a contar e com uma arte pronta na bendita mala: um livro escrito por ele. Como morava em outro estado, só aparecia em casa de caju em caju para tomar a bênção aos pais e prosear com os irmãos mais velhos e seus amigos de infância. Era uma festa. Devido à importância do personagem, a minha mãe tirava da cristaleira seus melhores utensílios de mesa guardados a sete chaves para ocasiões especiais. Como o almoço era um banquete aos deuses em agradecimento ao retorno do filho pródigo, crianças e pré-adolescentes não se sentavam à mesa com os adultos e só nos sobravam as rebarbas das conversas, sem direito a sobremesa. 

Foi ele quem me apresentou a Tom Sawyer, Pedrinho e Narizinho, Irmãos Dalton, Bonnie e Clyde, Asterix, Alice, Macondo e tantos e tantos que tomei tamanho gosto pela leitura que virou vício e por causa desse vício pude conviver pacificamente com a geração “paz e amor, bicho” sem a necessidade de enrolar um baseado nem participar das sessões fumacê que rolavam nos encontros dos cabeludos.

Mas ele só me presenteava a prosa juvenil. A poesia era acessada apenas nos livros de leitura ou na biblioteca da escola. Os poetas românticos eram os preferidos, porém no final de 1972 aconteceu um evento que mudou o curso da história: outro irmão foi a São Paulo e quando retornou me presenteou um livro de Celso Japiassu, um poeta paraibano, chamado A Legião dos Suicidas. Eram poemas que fugiam da lógica metrificada e açucarada de se rimar amor com ou sem dor. Alguns versos são tão contundentes que dão a impressão de tirar sangue da alma. E como são atuais...

“IV

Aqui, nos sentamos
E assistimos:
Uma vertente de caos,
Um soco,
Três estampidos.

Mas há um grito nesta rua,
Embora não se divulgue.
Em que poste, casa, líquido
Ou garagem.

Mas há um grito na rua.
Sabemos que vai gritar,
Porque são duas da tarde
E há um medo na cara
De quem se encontra a olhar.

Tem um cão que espreita a rua,
Um velho sentado ao sol,
Uma criança chorando
E três que ainda vão chorar.”

In: Quatro Ângulos Agudos

Fiquei fascinado pelo livro de tal maneira que o tenho guardado até hoje e de vez em quando faço uma releitura que tem o sabor de uma viagem de retorno no túnel do tempo até o dia que o li pela primeira vez e decidi que queria ser um poeta tal qual aquele que assinava o livro. 

Celso Japiassu nasceu e viveu a adolescência em João Pessoa, na Paraíba, concluiu o curso Clássico em Recife, se formou em Direito em Belo Horizonte, mas nunca exerceu esta profissão. Mudou-se em 1967 para o Rio de Janeiro onde vive até hoje e exerce a profissão de jornalista (e só esta semana fiquei sabendo disto, inclusive, para dar testemunho de que ainda reina no mundo dos vivos, se tornou seguidor deste blog). 

O livro que tenho em mãos é o terceiro de sete, contendo 13 poemas que nos envolvem na agudeza dos seus versos e escancaram as nossas vísceras morais. Para ler mais de Celso Japiassu, click no nome e será redirecionado ao blog dele, que também está lincado  aqui.

Seus livros:

* O Texto e a Palha (Edições MP 1965)
* Processo Penal (Artenova 1969)
* A Legião dos Suicidas (Artenova 1972)
* A Região dos Mitos (Folhetim 1975)
* O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno 1980)
* O Último Número (Alhambra 1986)
* Dezessete Poemas Noturno (Alhambra 1992)


“A Legião dos Suicidas”:

“De noite, a esta cidade
Chegam sons que em sua fúria
Mastigam seus ruídos.

Na tarde, além dos partos,
Os crimes esperados
E a legião dos suicidas.

A pé, de ônibus, em táxis amarelos,
Aproximaram seu hálito
De cuspe e de cachaça.

Aqui abandonaram corpos
Que entre nós apodreceram
Afetando o ar que se respira

Instalaram-se à margem das calçadas
E abraçaram as crianças que ali passam,
Transmitindo seu cheiro e sua nódoa.”


Ah! sim: quanto a ser poeta, continuo a sonhar. 


quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Bê-á-bá de Brasília - Marcelo Torres

Matéria jornalística do SBT na noite de hoje falando sobre o livro de Marcelo Torres. Assim, mais um junquês ganha a mídia nacional.

Na PUC, Antônio Torres critica cultura dos best-sellers

O escritor Antônio Torres, reconhecido no mundo literário pelo conjunto de sua obra com o Prêmio Machado de Assis em 2000, foi o convidado da vez na segunda rodada do ciclo de palestras “De lá para Cátedra”. Organizado pela Cátedra Unesco de Leitura e pelo Departamento de Letras da PUC-Rio, o encontro traz, todo o mês, um dos nomes da literatura brasileira contemporânea. O romance mais conhecido de Torres, Essa terra, é uma obra que gerou uma trilogia com a adição de O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha. Essa terra, inclusive, foi traduzido para mais de 10 línguas. Segundo o professor Júlio César Valadão, diretor do Departamento de Letras, que acompanhou o autor na mesa promovida pela Cátedra, o escritor, “mais que um brasileiro, é um homem do mundo”.

Durante o evento, o escritor relembrou a dura infância no interior da Bahia e compartilhou suas primeiras memórias sobre o aprendizado da escrita e o amor pela palavra.
– Eu nunca vou esquecer a imagem da minha mãe ao chegar em casa com um objeto não identificado . Ela chamava aquilo de ABC. Quando ela me mostrou aquilo, foi uma imagem da qual eu nunca esqueci, um encantamento – conta o escritor.

Em entrevista ao Portal, Antônio Torres elogiou a internet e os novos escritores que estão surgindo na rede através de blogs, mas criticou os bestsellers. O literato acredita que esse tipo de livro é fruto da globalização e diminui a penetração das obras literárias nacionais no imaginário do leitor brasileiro.

Portal PUC-Rio Digital: Como o senhor analisa o cenário atual da produção literária no Brasil?

Antônio Torres: Hoje há tantos jovens escritores que eu não consigo acompanhar essas publicações, mesmo sendo do ramo. Isso é um fenômeno curioso pois, ao contrário do que se imaginava, o interesse pela literatura aumentou entre os jovens. O interesse de praticá-la, de ser escritor. Não há oficina literária no Brasil que fique sem participantes. Em palestras de escritores, é onde mais se vê, pois tem muita gente querendo escrever, o que é um bem curioso. A internet está por trás disso também, pois todo o jovem escritor tem um blog. O blog é o palanque desse jovem, e ele acaba criando uma comunidade de leitores através desse blog. Esses blogs são tantos e variados quanto as regiões e os estados. Hoje, não sabemos mais quem é o jovem escritor. Ele tem 18 anos? 30? Há vários jovens escritores que têm várias idades. É muito curioso o que está acontecendo. Há o surgimento de um novo escritor, que é muito interessante de se observar e ficar atento para ver até onde eles irão. Muitos desses escritores, inclusive, conseguem quebrar as barreiras da edição e entrar em grandes editoras enquanto outros ficam no universo da internet, o que não significa que não tenham expressão. O momento é bem animador, pois o interesse pela literatura e pela criação literária cresce muito entre os jovens.

Portal: Quando entrevistamos Cristovão Tezza, no último encontro da Cátedra, o escritor ressaltou a proximidade que a internet gera entre o autor e o leitor. O senhor concorda?

A.T: Eu tenho o meu site. Nesse site tem o meu e-mail e meus leitores me enviam muitas perguntas. Muitos deles são estudantes, gente que está estudando meus livros e normalmente eles querem saber sobre alguma obra específica. Como eu viajo muito, faço muitas palestras e participo de oficinas literárias por todo o país. Acabo falando com jovens que querem escrever e pedem conselhos, por exemplo. Eu realmente tenho uma grande relação com os leitores pela internet.

Portal: Qual a sua opinião sobre a influência que os bestsellers têm na nossa cultura? Acredita que eles têm poder de criar novos leitores?

A.T: Essa é uma questão mais complexa. Eu acredito que o fenômeno do bestseller está muito ligado à globalização. São livros que parecem passar por um centro de inteligência que determina que tipo de livro será bestseller no mundo inteiro. Pode ter certeza que o bestseller aqui encontra mercado em todos os lugares. Isso, para as literaturas nacionais, está sendo um problema muito sério, pois o Brasil não está inserido no imaginário global. Corremos risco de, por não estarmos inseridos nesse imaginário, não se inserir no imaginário do leitor brasileiro. Daí a importância do engajamento dos autores, de participar de eventos literários, nas universidades, nas feiras de livros e nas festas literárias. Ainda é muito pequena essa fatia de mercado, ainda estamos dependentes dos professores de português e de literatura brasileira, pois esses são os nossos leitores. São bons leitores e me repassam para seus alunos. Já houve mais interesse pela literatura brasileira. A minha geração toda foi muito bem publicada lá fora: João Ubaldo Pinheiro, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza etc. No entanto, há um recuo, nesse sentido, quando entra a globalização. As literaturas de todos os países do mundo estão sofrendo por isso, pois esse produto que se torna bestseller mundial não é, necessariamente, literário, mas um produto de mercado. Ele já vem com uma cara de mercado. Eu tenho a impressão de que a literatura em si, no mundo, está ficando restrita a um grupo bem pequeno. Mas ainda bem que temos esse grupo, pois ele ainda nos sustenta.

Portal: O senhor tem alguma crítica que faria ao ensino de língua portuguesa e de literatura brasileira no Brasil?

A.T: Eu não posso criticar, pois não conheço profundamente qual a situação real. O que eu costumo dizer é que eu gostaria que as escolas tivessem o mesmo empenho das escolas da minha infância. Eu tive uma infância rural, no entanto, minha escola formou meu imaginário e meu mundo de leitura e de escrita. Nessa escola, eu tive uma professora que amava pôr os alunos para ler em voz alta e depois escrever. Eu não sei como acontece hoje, mas eu espero que a escola esteja tendo esse cuidado com os alunos. O estudante, logo que entra na escola, e se habitua a ler em voz alta, passa a descobrir o ritmo e a cor das palavras. Até você descobrir que a palavra tem cor, tem cheiro, tem ritmo, tem imagem, tem som etc. Isso é uma percepção que vai marcar o aluno pelo resto da vida. Isso vai fazê-lo buscar sempre a sonoridade que a poesia e a prosa trazem, vai fazê-lo descobrir o que é estilo literário. Hoje, talvez, esteja havendo uma preocupação maior com a questão da leitura. Houve um vácuo nessa questão, era o país das cruzinhas: bastava fazer uma cruz na pergunta que ela estava respondida, não era preciso escrever a resposta. Curiosamente, acho que a internet está devolvendo a necessidade da escrita. O Brasil é um país ágrafo, em que a comunicação de massa levou as pessoas a se afastarem muito da escrita, essa necessidade retorna via internet. Mesmo que estejamos desenvolvendo um novo dialeto nesse meio, o internetês, não faz mal. O próprio usuário da internet percebe que as coisas mudam quando ele não está na internet, é um ato de instância. Nesse sentido, a evolução da tecnologia tem beneficiado a escrita.

Nota do Blog: Entrevista concedida a Daniel Cavalcanti para o portal da PUC-RJ.

                       

terça-feira, 14 de junho de 2011

Cineas Santos - Se essa rua fosse minha...


Dileto amigo veio visitar-me. Abancou-se, bebemos café forte, conversamos sobre amenidades, rimos um bocado. Na hora da partida, não se conteve: você está no lugar certo. Esta rua é perfeita para acoitar velhos, afirmou. Impossível não concordar com ele. Moro na Lemos Cunha há um quarto de século e posso assegurar que se trata de rua atípica, pelo menos para os padrões teresinenses. Pra começo de conversa, nela não há um bar, uma bodega, uma padaria, uma farmácia, uma birosca onde se possa comprar uma caixa de fósforos, uma maço de velas, um Cibazol. Os muros são altos e as cercas elétricas vendem a ilusão de segurança que todos procuramos. À noite, não fosse um vigilante motorizado com sua cigarra eletrônica, poder-se-ia repetir Quintana: “Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro.../Nem guardas para acaso persegui-los...” Comprida, reta, silenciosa, a minha rua não possui nenhum atrativo especial. A nota alegre fica por conta dos passarinhos. Como ainda há árvores nos quintais, os pássaros escorraçados da periferia adonam-se de cada polegada do verde minguante. Livres das baladeiras, bem-te-vis, anuns, rolinhas e pardais cantam livremente. Pelo menos para mim, o canto dos pássaros, em liberdade, é sempre uma “promessa de vida”, como diria o poeta.

Já descrevi a minha rua em outras ocasiões, sempre ressaltando o sossego que a caracteriza. Receio que, a partir de hoje, não voltarei a fazê-lo. Por ordem ou pedido não sei de quem, resolveram asfaltar a Lemos Cunha. Na segunda-feira, acordei com o barulho das máquinas e o inconfundível cheiro de piche. Percebi que alguma coisa estava errada: os pássaros estavam mudos. Abri o portão para conferir a novidade e sondar a reação dos vizinhos. Um deles, visivelmente satisfeito, berrou: finalmente, a prefeitura se lembrou de nós, professor! Contrafeito, esbocei um sorriso chocho e, calado, engoli minha tristeza. Posso estar enganado, mas acredito que os dias (principalmente as noites) de sossego em minha rua acabaram...

Na contramão de tudo, Teresina fez sua opção preferencial pelo automóvel. Num ritmo frenético, alargam-se ruas, rasgam-se novas avenidas, mutilam-se praças, tudo para abrir mais espaço para os carros. Trata-se de uma batalha perdida. Em nenhum lugar do mundo, resolveu-se o problema do transporte urbano aumentando o número de automóveis nas ruas. Hoje, em nossa cidade, é mais fácil comprar um carro do que encontrar espaço para estacioná-lo. Paradoxalmente, a frota de ônibus cresce num ritmo lento, muito lento...

Sem ter a quem recorrer, limito-me a parodiar o poema “A rua diferente”, de Carlos Drummond de Andrade: Minha rua acordou mudada/ Os vizinhos estão satisfeitos/sabem que a vida tem dessas exigências./ Inconformados, só eu e os pássaros mudos...


domingo, 12 de junho de 2011

Luís Pimentel - Folguedo Junino

Nascido e criado no interior nordestino, sempre curti festa junina. Natal, carnaval, as folias santas ou profanas todas ficavam em segundo plano. Era no São João que o meu coração pulava fogueiras, bigodinho feito a lápis, camisa de chita, calça remendada, vomitando na gravatinha de crepom após os tórridos quentões.

Meu primeiro folguedo junino na cidade grande foi duro. Na noite do 23 de junho, lembrando das canjicas, do milho assado e do amendoim cozido preso no dente da primeira namorada (de maquiagem transbordante e pintinhas pretas ao redor dos olhos), peguei um circular na Glória (via Flamengo, Botafogo, Humaitá, Gávea, Leblon, Copacabana) para dar a volta à cidade, sentado ao lado da janela, procurando balões imaginários no céu.

Foi quando a figura se sentou ao meu lado, na altura da Praça do Jóquei. Estranhei quando pressionou a minha perna contra a sua, mas pensei tratar-se apenas de um desajeitado. Desconfiei quando a boca mole, de língua meio presa, balbuciou:

– Adoro São João.

Juro pelo santo: os olhos faziam aquele volteio das borboletas bêbadas. A mão, lânguida feito um calango, descansou sobre o meu ombro. Começou a cantar:

– Meu balãããããooo vai subir lá no céééééu... Vai subir lá no céééééu meu balãããããooo... Meu balãããããooo vai subir lá no céééééu... balãããããooo, balãããããooo, meu balãããããooo...

Fiz sinal em Copacabana, estava precisando de uma caminhada pela praia. A perna sonsa quase não me deu passagem. A boca mole e a língua presa emendavam no repertório:

–  Ai, São Joãããããooo... São Joãããããooo do carneiriiiiiinho... Você é tão bonitiiiiinho...

Onde encontraria uma canjica ou um licorzim de jenipapo, àquela hora?




sexta-feira, 10 de junho de 2011

Mesmo com fama não deita na cama

Fotos de tanquedarca

Por volta de meio-dia de ontem passava eu em frente à Secretaria de Educação do Estado e, na calçada do estacionamento, duas senhoras esperavam alguém. Ao me aproximar das duas, vi um crachá pendurado no pescoço identificando o município de origem. Certamente eram professoras que participavam dalgum evento na Secretaria, pensei. Parei e puxei conversa:

– Com licença, moças... Vocês são de Tanque d’Arca?
– Somos – responderam olhando para o crachá, como a indagar: não sabe ler não?
– Você também é de lá? – perguntou uma delas que não sei identificar aqui qual das duas. Nem seus nomes perguntei. Como vivente do interior que fui, sei que o povo desses lugares é tímido e muito desconfiado, principalmente as mulheres.
– Não. É que tenho um amigo que é de lá e estou planejando levar um povo, também amigo dele, pra conhecer a cidade e gostaria de saber alguns detalhes do itinerário. O nome do conterrâneo de vocês que conheço é Audálio Dantas. Vocês já ouviram falar dele, né?

As duas perscrutaram a memória e a mais velha respondeu:

– Audálio, Audálio, Audálio... Nunca ouvi falar.
– Ele é jornalista, escritor, e nos tempos de chumbo enfrentou as baionetas com o brado do sindicato dos jornalistas.
– E ele mora em Tanque d’Arca?
– Não. Desde os anos sessenta que ele mora em São Paulo.
– Conhecemos não. – reafirmou a mais nova – Pra falar a verdade não conheço ninguém com esse sobrenome, muito menos com esse nome.

Infelizmente há um descaso injustificável da administração pública dos municípios interioranos no tocante às personalidades da terra que honram ou honraram o seu povo. Alguns políticos parecem temer que o brilho de alguns ofusque suas realizações.

Perto de Tanque d’Arca, Palmeira dos Índios e Quebrangulo, o Mestre Graça é um famoso desconhecido da população. Em Quebrangulo poucos são os que conhecem e a metade desse pouco chegou a ler algum livro do conterrâneo famoso. Já em Palmeira dos Índios somente agora, com a chegada da escola técnica federal, é que se começa a se discutir a importância de Graciliano para o lugar.

Em Feira de Santana, às portas da capital baiana, o grande poeta Eurico Boaventura viveu e morreu no anonimato e foi preciso a UEFS resgatar a sua história e o colocar no pedestal dos grandes intelectuais baianos, dois anos atrás, no advento do seu centenário. Até então ele não passava de um ilustre desconhecido.

Porto Calvo, Norte de Alagoas, palco histórico da guerra contra os holandeses e tão cantado em versos e prosas da dramaturgia brasileira, tem um personagem emblemático na discussão acadêmica do patriotismo, porém é de total desconhecimento da população local. Duas amigas retornavam de Recife e, ao passarem pela cidade, uma se lembrou de certo episódio dessa guerra:

– Não foi aqui que Calabar foi enforcado?
– Foi.
– Vamos visitar o local? Talvez haja algum memorial ou museu.

Na praça, pararam próximo a uns senhores que pareciam matar o tempo jogando conversa fora. 

– Por favor, senhores, alguém pode nos dizer onde é que fica o local em que Calabar foi enforcado?

Os nativos fizeram uma cara de surpresa. Entreolharam-se e o que parecia mais esperto dirigiu-se ao carro onde as duas permaneciam:

– Moça, a senhora tem certeza de que esse Calabar foi enforcado aqui?! Não estamos sabendo de nenhum enforcamento não. Que dia foi? Foi esta semana?

Para honra e glória do Brasil, há exceções nesse desconhecimento coletivo interiorano. Poucas, mas há. O arraial do Junco é uma delas. Segundo o último Censo do IBGE, o município tem uma população que passa dos dezoito mil habitantes, porém a população itinerante, os nômades do lugar, ultrapassa, com folga, os vinte mil. Como os que saem adquirem uma visão diferenciada, terminam influenciando os que ficam. É por isso que o escritor Antonio Torres é conhecido nos quatro cantos de sua terra e um grande movimento cultural fervilha em torno do seu nome. Não há uma só pessoa que não diga sentir orgulho de Totinha de Irineu, nome de infância que carrega até hoje junto aos mais velhos. Ao completar 70 anos, em 2010, o escritor foi homenageado pelo prefeito, pela Câmara de Vereadores, e por alunos e professores da rede pública, além de outros alunos e professores das cidades circunvizinhas que compareceram à festa. A visita dos alunos à biblioteca pública, cujo patrono é Antonio Torres, é obrigatória, como também é obrigatório se conhecer a biografia e a obra do autor. 

Mas voltemos ao episódio de ontem, pois Tanque d’Arca é logo ali, a 95 Km da capital, segundo me informaram as tanquenses. Talvez um dia faça parte da Região Metropolitana de Maceió. Com pouco mais de 6 mil habitantes, deve ser duro para o administrador municipal e operadores da Cultura local propagar no município o nome daqueles que levam a cidade a ser conhecida além de suas fronteiras. Essa omissão, maliciosa ou não, cria a falsa ilusão na gente comum ao discernir entre heróis e espertalhões. 

Ao longo da conversa fiquei sabendo que as duas senhoras participavam de um evento ligado à segurança alimentar. Podiam ser merendeiras, nutricionistas, integrantes do conselho escolar ou simplesmente secretárias dalguma coisa ou ser tudo ao mesmo tempo. 

– No jornal Gazeta de Alagoas de ontem saiu uma matéria falando de Tanque d’Arca e do Audálio. – comentei a título de deixá-las orgulhosas. E deixei.
– Sério?! – perguntou a mais velha, que parecia ser alguém importante na cidade, talvez a primeira-dama ou alguém muito ligada a ela. Em algumas cidades o topo da pirâmide social é assim: em cima, a mulher do prefeito; embaixo, o prefeito e o delegado; mais embaixo, o motorista de ônibus, o cobrador e o padre.
– Então esse Audálio é importante mesmo. Vou ver se encontro esse jornal. – concluiu a mais nova.
– Se não achar, procurem no Google o blog Onde Canta a Acauã que também foi publicado lá.
– Ah! Tá certo! Mas me diga uma coisa: você conhece o nosso prefeito?
– Não.
– Mas como não?! Você conhece esse Audálio que ninguém conhece e não conhece nosso prefeito que é o melhor prefeito do mundo?! Isso é um absurdo! 

Diante de tão sincera indignação, recolhi-me à minha insignificância, peguei meu boné e pedi licença pra me retirar. Realmente: como eu poderia conhecer o Audálio Dantas e não conhecer o prefeito da cidade, o melhor do mundo? Simplesmente um grande ato falho, um absurdo dos absurdos. 

Antes de dobrar a esquina olhei para trás e tive a certeza de haver tirado duas pessoas das trevas medievais.




quinta-feira, 9 de junho de 2011

Joaldo Cavalcante* - O Chão de Audálio Dantas

De 4ª Bienal do Livro de Alagoas

– Você está sabendo que Tanque d’Arca vai aparecer na mídia nacional?
– É mesmo? Já não era sem tempo. Finalmente vão fazer justiça àquele pedaço de chão.

A reação bem-humorada é do jornalista Audálio Dantas, ao ser informado por mim que o apresentador global Luciano Huck acabara de aterrissar em sua terra, em companhia do figurinista Alexandre Herchcovitch. O resultado da visita das celebridades irá em breve ao ar.

Mas o pequenino lugarejo, que um dia serviu para os almocreves descansarem à sombra de oitizeiros, tem muito do que se orgulhar, com a importância e o respeito que seu filho ilustre, Audálio Dantas, desfruta no Brasil.

No próximo mês de outubro, Audálio desembarca em Alagoas como patrono da 5ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas. Entre tantas homenagens recebidas pelo País afora, esta terá sabor especial, pois acontecerá em seu torrão natal. E olha que elas se sucedem pelos Estados brasileiros.

A mais recente vem em forma de artigo escrito por outro honrado alagoano, o jornalista, professor e escritor José Marques de Melo. Pelas páginas da revista Imprensa, discorre acerca da trajetória de Audálio. Assim como outros nordestinos, este enfrentou as adversidades da vida, desbravou caminhos e ocupou seu espaço com dignidade.

Desde a saudosa revista Realidade até a condição de líder dos jornalistas de São Paulo, ao assumir a presidência da categoria numa etapa tenebrosa da ditadura militar, quando, em pleno governo do general Ernesto Geisel, assassinaram covardemente, no calabouço do regime, o jornalista Wladimir Herzog, preso sem processo e morto sob tortura. Agora, prepara narrativa sobre a vida de Herzog.

Audálio conduziu a categoria de maneira corajosa, enfrentando as pressões, mas sem recuar e deixar de protestar. Pela sua conduta, alcançou a presidência da Federação Nacional dos Jornalistas. O povo paulista reconheceu a liderança do alagoano, conferindo-o mandato de deputado federal, que foi cumprido de maneira destacada.

Apesar de distante de suas raízes, nunca perdeu a referência nem o contato com a legião de amigos alagoanos. Os vínculos estão simbolizados na publicação “O chão de Graciliano”, que virou exposição e circulou com sucesso pelo Brasil.

No texto de abertura, faz viagem pelo interior de Alagoas, descrevendo em minúcias as regiões, como o morro do Pão-Sem-Miolo, adjacente à cidade de Viçosa. Faço, portanto, este registro para fazer justiça a tantos filhos da terra que contribuíram ou contribuem para inserir positivamente Alagoas na pauta nacional.

(*) É jornalista.

Nota do Blog: este artigo foi publicado na Gazeta de Alagoas do dia 08 de junho de 2011, e publicado aqui em homenagem ao amigo Audálio Dantas, leitor confesso deste blog e um ser humano justo, idealista e mais humano do que o perdão. A cidade em tela, Tanque d'Arca, fica a menos de cem quilômetros de Maceió e é um tantinho menor do que o arraial do Junco.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Luís Nassif - Antonio Torres, o escritor e seu ofício

O grande escritor é ele e seu ofício solitário, ele com ele. Não ambiciona riqueza ou poder. Sua ambição é o reconhecimento dos leitores e dos iguais, os demais escritores. Muitos escrevem pensando apenas no reconhecimento posterior; outros ambicionam o reconhecimento imediato. Mas seu mote, sua seiva vital é o reconhecimento de seus pares.

Um grande escritor não nasce, é construído ao longo de décadas e de livros, de personagens que cria, de tramas que tece, de sentimentos que explora, na solidão intermitente de seu quarto, raras vezes nos salões dos poderosos. Explora novas formas de conhecimento, a atualização permanente da leitura e da análise de pessoas e circunstâncias.

Não busca a popularidade fácil dos jornalistas, a exploração do factual, do imediato, o atendimento da catarse dos leitores. O grande escritor ambiciona a eternidade. Para os de família quatrocentona, a eternidade pode ser um mausoléu no Cemitério da Consolidação; para os muitos ricos letrados, uma fundação que leve seu nome; para o provincianismo brasileiro, um nome de rua.

Para o grande escritor, deveria ser a Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas não é.

A ABL, a casa de Machado de Assis, que deveria ser a guardiã implacável dos valores da literatura, a defensora intransigente da meritocracia, a defensora dos escritores, o selo de qualidade, o passaporte final para a posteridade, é uma casa menor, em alguns momentos parecendo mais uma cloaca de fazenda do que um lugar de luzes e de letras.
Ao preterir o escritor Antônio Torres em favor do jornalista Merval Pereira, a ABL demonstrou a pequenez não propriamente dela, mas de uma certa elite superficial brasileira, provinciana, atrasada.

De pouco adiantou o fato de que os livros de Torres ajudaram o Brasil a ser mais conhecido por leitores da Itália, Argentina, México, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Bélgica, Holanda, Israel, Bulgária. Ou o fato de dois livros seus – Um táxi para Viena D’Áustria e Essa Terra - traduzidos na França, terem levado o governo francês, em 1999, a lhe conferir o título de "Cavaleiro das Artes e das Letras”.

Merval tem a visibilidade e o poder proporcionados pela Rede Globo. Tem moeda de troca – o espaço na Globo, podendo abastecer o ego de seus pares e as demandas da ABL. Poderia até ganhar prêmios jornalísticos, jamais a maior condecoração da literatura brasileira.

Tem apenas dois livros, um de 1979, feito a quatro mãos, outro mais recente, mera compilação de artigos que escreve para o jornal “O Globo”.

Mas representa poder – no caso, a mídia -, assim como, em outros tempos, o poder era o general Lyra Tavares, Getúlio Vargas, Roberto Marinho, ao quais também se curvou a ABL.
De Merval, duas declarações de endosso. Da indescritível Nelida Piñon, enaltecendo seu... cavalheirismo. E a informação de que, dos acadêmicos, conhece apenas João Ubaldo Ribeiro – colunista de “O Globo”.

Nota do blog: Publicado, originalmente, no site www.luisnassif.com.br em 06/06/2011


segunda-feira, 6 de junho de 2011

Conversa de Botequim


– Garçom, dois “chopiisss”!
– O meu sem colarinho branco.
– Tudo bem com você? Faz um tempão que não lhe vejo.
– Ando sumido do mapa mesmo. Depois que terminei os estudos voltei a morar no interior, com meus pais. Queria fugir do caos urbano, mas quem disse?! Lá tá pior do que aqui. Uma barulheira infernal, traficante andando pra cima e pra baixo na maior tranquilidade e o pau comendo no couro da população.
– A minha cidade também está assim, por isso nem me arrisco a pôr os pés lá. Depois que a droga se globalizou não tem essa de lugar pequeno não ter viciado não. É maconha, é crack... só não tem cocaína porque custa caro e o povo de lá vive eternamente duro.
– É justamente pela dureza que tudo descamba pra violência, pro roubo, pro latrocínio. Virou moda se roubar ou até mesmo matar os velhinhos no dia do pagamento da aposentadoria.
– Pior é que não tem polícia. E, quando tem, os policiais também estão envolvidos no ilícito. Todo dia a gente vê na tevê policial sendo preso.
– Também não adianta prender porque logo, logo um juiz manda soltar. Viu aquele jornalista que matou a namorada? Réu confesso, foi julgado, condenado, e somente doze anos depois foi preso.
– Isso é que dói. Lembra daquela mãe que pegou dois anos só porque roubou uma lata de leite pra dar pro filho faminto? Ainda continua presa.
– A Justiça no Brasil não é justa. Mas mudemos de assunto: e o resto da turma? Nunca mais tive notícias de ninguém.
– De vez em quando encontro um e outro vagando por aí. Alguns seguiram em frente com os estudos, outros estão trabalhando na informalidade e outros arriscam a sorte grande, como o Machado. Lembra dele?
– Como não haveria de me lembrar do Machadinho? Certa vez queria brigar porque eu disse que ele não podia ver um pau em pé.
– E você queria o quê? Chama o cara de viado...
– Não foi isso. Quem é que corta pau? O machado. Levei séculos explicando isso a ele.
– Ah! Sim.
– Ele vivia dizendo que ia se dar bem na vida.
– E parece que vai. Da última vez que o encontrei, ele me disse que estava empenhado em entrar para Academia Brasileira de Letras.
– Brasileira de quê?!
– Letras! Aquele lugar onde deram uma condecoração a Wanderley Luxemburgo e Ronaldinho Gaúcho.
– Ah! A CBF...
– Não, jumento! Vai pro interior e esquece tudo. A ABL. Aquela casa que reúne os melhores escritores do país.
– E Ronaldinho Gaúcho escreveu um livro?
– Não escreveu e nem vai escrever. Aliás, ele mesmo disse que nunca leu um livro. Mas disseram que um escritor famoso lá da academia morreu e era fã de Ronaldinho Gaúcho. Aí lhe fizeram essa homenagem póstuma. Mas eu acho que os escritores da tal academia queriam mesmo era ficar bem na fita depois que andaram falando mal de um livro sem terem lido o livro.
– Oxente! E escritor agora é adepto do “não li e não gostei”? Quem falava assim era uma tia minha, que se achava muito importante. Já o meu avô dizia que não devíamos falar daquilo que não conhecemos. Nem falar bem, nem falar mal. O que não se conhece, desconhecido é, dizia ele.
– Pois é. Nem todos de lá tiveram um avô sábio igual ao seu. E a academia ficou numa situação vexatória. Aí inventaram essa de condecorar um cara que nunca leu um livro.
– Isso me lembra o Machado. Desde quando ele virou escritor? Nunca soube que tivesse escrito um livro. Aliás, ele sempre tirou nota baixa em Redação.
– E ele não escreveu livro nenhum.
– Como que não?! E como é que ele quer entrar pra essa tal de ABL? Não tem que ser escritor pra entrar pra lá?
– Aí é que tá: o critério deveria ser esse. Mas não é assim que funciona. Hoje, o principal critério é ser funcionário da Rede Globo e o Machado já conseguiu espetar um crachá dessa empresa no peito.
– Deus do Céu! Garçom, passa a régua rapidinho que vou voltar pro interior!