sábado, 17 de dezembro de 2011

Um dia de sofrimento em noite de alegria


De Algo além de um momento

Cheguei de uma longa jornada de trabalho no Polo Petroquímico de Camaçari, a quarenta quilômetros de Salvador. A noite já passava da metade e, se galos houvesse, estariam tecendo a manhã. Tomei um banho e me joguei debaixo do lençol, extenuado. Mal preguei os olhos, o telefone tocou. Levantei-me num sobressalto porque telefone não toca em plena madrugada para trazer alvíssaras.

– Alô!
– Tonico, é Elza, mãe da Sonia, você tem como entrar em contato com seu irmão?  – Elza era a sogra do meu irmão mais velho, falando do Rio de Janeiro direto para Salvador, às três horas da manhã, e coisa boa não haveria de ser.
– Tenho, sim.
– Então avise a ele que o seu primo Humberto Vieira acaba de morrer, aí mesmo em Salvador.

Humberto Vieira, o Boêmio, finalmente desligara-se do sofrimento. Nos últimos tempos definhava lentamente, fruto de uma cirrose hepática. Além de primo, era muito amigo do meu irmão. A primeira vez que fui ao Rio de Janeiro praticamente morei na sua casa. Trabalhava na Rede Globo de Televisão, bebia feito um condenado e fumava um cigarro atrás do outro, talvez temendo a extinção do fumo. À noite, quando chegava sóbrio, pegava o violão, um Di Giorgio, e atacava de Noel, Lupicínio, Ismael Silva, Ary Barroso e outros tantos do nosso cancioneiro popular. Foi com ele que conheci e aprendi a gostar de Maysa, Elizeth Cardoso, e todos esses que falei acima, pois, não era comum se ouvir esse pessoal cantando nas rádio emissoras de Alagoinhas, cidade onde fui criado.

Oito anos depois Humberto retornou a Salvador para curtir seus últimos dias de vida, pois a cirrose se encontrava em estágio avançado. Dia sim, dia não, eu passava na sua casa, na Rua Direita da Piedade, para uma visita. Invariavelmente o encontrava com um copo de whisky na mão. Um dia indaguei se ele queria acelerar a morte e ele, com o olhar perdido no fundo do copo, me respondeu:

– Pra que alongar a agonia. Já que vou morrer mesmo, que morra como sempre gostei de viver: bebendo.

Isso aconteceu dois dias antes de receber o telefonema de D. Elza.

Vida que segue. Hoje, pela manhã, abri um e-mail do meu irmão e nele havia uma fotografia anexada. Senti que naquela imagem havia algo além de uma fotografia pendurada na tela do monitor. Perguntei a ele a história da foto, e eis que um simples instantâneo deixou registrado um momento de júbilo e ao mesmo tempo de tristeza. Abaixo, a resposta do meu irmão:

“Agenor, o mineiro que representava a Ática na Bahia, Juraci Costa, meu ex-colega no JBa., Raimundo nosso tio mais ao fundo, eu, um pouco à frente dele, João  Ubaldo, e Ariovaldo Matos, em colóquio com ele. Ao fundo da galeria ficava uma livraria, onde eu estava autografando o "Carta ao Bispo". Você não apareceu porque trabalhava à noite. E na noite anterior me telefonou para dizer que "o seu grande amigo Humberto se foi". Aí perdi o sono. De manhã, Décio foi me buscar no hotel para a gente ir a Alagoinhas, onde a velha Durvá nos esperava para o almoço e, logo depois, seguiríamos todos para uma faculdade ali na Praça Rui Barbosa - precursora da Uneb - para a minha primeira palestra na cidade. Tentei fazer o mano Décio cancelar tudo, para que eu fosse ao enterro do Humberto. Mas ele disse que não dava, porque ia ser uma desfeita muito grande para mamãe e para Tudinha, que havia organizado tudo na faculdade. Veja que longa história esta foto conta.”

Pois é: uma alegre e triste história de momentos paralelos que fizeram os amigos estarem na mesma cidade sem que pudessem se encontrar para o último adeus.


   

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Edna Lopes - Rearrumando a vida

o mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda!
Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena!!
(Clarice Lispector - Una propuesta de Vida Creativa)

Ontem foi o dia de escutar meu Pássaro da Alma* pois cada vez que se aproxima um final de ano, o cansaço, uma ponta de impaciência se instá-la diante da montoeira de papeis e livros que utilizo em meu trabalho e sinto que preciso de um tempo para arrumar meus armários e gavetas sob pena de não mais conseguir me achar em meio a pilhas de pastas, livros, jornais e revistas.

Uma aventura remexer meu baú de espantos, pois espanto-me sim quando me dou conta do por que guardei e guardo tanta coisa que não tem utilidade imediata nem pra mim nem pra ninguém. Será apenas o hábito de relembrar, de manter um pouco mais a sensação, o prazer e alegria que tal objeto seja lá de que tipo for, me causou? Dr.Freud me socorra!

Remexendo pastas e gavetas vi minha vida, a parte de mim que pesa e pondera, durante todo este ano. Cartões de embarque, prestações de conta das viagens, pautas de reuniões, cópias de relatórios, cópias e mais cópias de leis, de textos sobre os mais diversos assuntos da educação e da cultura, convites e crachás de eventos, cópias de e-mails confirmando reservas de hotel...Tudo isso me deu a noção exata do quanto caminhei, do quanto estou cansada e necessitando mesmo de férias, de priorizar a saúde física.

Desfazendo as pastas e as gavetas, reencontro também a parte de mim que delira. Um desfile de maravilhosas inutilidades afetivas. Canhotos de ingressos de shows e peças teatrais, convites para festas, cartões de restaurantes, letras de música com arranjo para coros, rascunhos de poemas em guardanapos de papel, mapas dos lugares por onde andei, trabalhei, sonhei... Tudo isso me dá a noção exata de que não descuidei de minha alma, de meu coração nem da minha saúde metal. Tudo isso foi e é importante para manter a sanidade, o equilíbrio.

Abrindo empoeiradas caixas e envelopes em pastas e gavetas, reencontrei fotografias, recortes de jornais, livros, poemas, cartas... Em cada um desses objetos, a minha alegria, a alegria das pessoas com quem estive, os amigos e amigas que fiz, as pessoas queridas que reencontrei, os momentos felizes ou tristes que vivi.

Revolvendo pastas e gavetas, não pude deixar de entristecer quando reencontrei objetos e relembrei pessoas que não mais encontrarei nessa dimensão. Não evitei a onda de saudades e fiz uma prece por cada uma delas, embora saiba que essa sensação de vazio permanecerá até quando as feridas na alma cicatrizarem. Sei que jamais as esquecerei.

Desfazendo-me das roupas, sapatos e bolsas, lembrei-me de uma amiga que teve sua cidade, sua casa e sua vida invadida por uma enchente. Disse-me ela: “Eu tão vaidosa, tão cheia de caprichos e cuidados com minha aparência me vi apenas com a roupa do corpo. Mas tive família e amigos para recompor minha vida e vi tantos que estavam sem nada e sem ninguém. Pensei comigo mesma: não tenho o direito de me lamentar, estou viva, tenho meu trabalho, minha família, meus amigos. O que mais uma pessoa pode precisar para ser feliz?”

Então, cada vez que rearrumo meus espaços e separo roupas, calçados, brinquedos, livros penso que muitos precisam daquilo para manter a dignidade e ser feliz e fico feliz em poder ajudar, em poder, de alguma forma, ser útil.

Arrumar armários, gavetas e pastas é também exercício de meditação, de silêncio, de reencontro comigo. Tudo aquilo que passa pelos meus olhos para ser jogado fora ou reorganizado para uso num futuro próximo teve ou tem importância segundo critérios que eu mesma estabeleci. Não dá para guardar tudo e isso talvez seja mais um motivo para a saudade.

Remexer pastas e gavetas me dá um prazer especial pois embora não tenha muito tempo para fazer isso rotineiramente, gosto muito de fazê-lo porque me faz arrumar algumas delas dentro de mim mesma. Assim, relembrei passagens que me deixaram triste, indignada mas também relembrei outras que quase não coube em mim de alegria, de felicidade.

Revolver aspectos da minha vida me faz refletir o quanto viver é maravilhoso justamente por não ser preciso, exato. O inusitado, o inesperado será sempre bem vindo. “Navegar é preciso, viver não e preciso”, lembram?

Arrumar pastas, gavetas e armários tanto me dá um sentido de realidade quanto me faz sonhar com um tempo novinho em folha que vou viver. Então a tristeza pelas perdas, a saudade dos ausentes e as alegrias do caminho se misturam e eu sinto que mais uma vez é tempo de esperança, de viver o que me cabe, de ser muito, muito feliz, sempre!

Arrumar pastas, gavetas e armários me dá a oportunidade de agradecer a todos/as e a cada um/a que esteve e está comigo, o bem que cada um/a na sua inteireza me faz. Obrigada! Namastê!

*"Por isso vale a pena talvez tarde, pela noite, quando o silêncio nos rodeia, escutar o pássaro da alma que mora dentro de nós, no fundo, lá bem no fundo do corpo."

 
Pássaro da Alma: A relação entre a nossa alma e nós mesmos é explicada de forma delicada e poética neste livro. Vale a pena ler!


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Maria Helena Bandeira: Opções Imperfeitas

De Maria Helena Bandeira Opções Imperfeitas

A minha amiga Maria Helena Bandeira, Mhel para os íntimos, desta vez resolveu presentear o seu público leitor com um livro todinho seu e que pode ser pedido diretamente à autora pelo e-mail mhelband@gmail.com pela simples bagatela de dez reais, o preço de um cachorro-quente. Com a vantagem de não engordar e não conter glúten nem substâncias químicas causadoras de câncer. Acrescentar, ao pedido, mais cinco bandas de conto de réis que é para a postagem do Correio, caso você more fora do Rio de Janeiro.

Mhel é uma descendente de irlandesa com o pé e a alma no chão nordestino. Parente de não sei que grau do bróder Maurício Melo, sobrinha-neta do grande poeta Manuel Bandeira, ela já escreveu aqui neste blog, a meu pedido, a Saga de Catende, uns contos deliciosos dos tempos dos senhores de engenho vividos pela sua mãe. 

Segundo a autora, o livro contém “pequenos contos, amostras da minha alma maionésica amante do estranho e do surreal. Tem fantástico , tem FC e tem realismo em pequenas doses - o real é algumas vezes mais fabuloso”.

Portanto, o livro Opções Imperfeitas é a opção perfeita de presente de fim de ano. Muito melhor e mais barato do que presentear DVD de Roberto Carlos ou da Banda Calypso, com a vantagem de poder ir autografado.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cineas Santos: Terceiro tempo

Capricho do destino: poucas horas antes de o Timão entrar em campo para conquistar o campeonato brasileiro de 2011, um dos mais festejados ídolos corintianos de todos os tempos saiu de cena sem se despedir dos “loucos” que o veneravam. Às 4h e 30 m, do último domingo, dia 4 do corrente, Sócrates Brasileiro Sampaio de Sousa Vieira, aos 57 anos de idade, foi derrotado por um “choque séptico”, decorrente de uma infecção intestinal, segundo boletim médico. Na verdade, há quatro meses, Sócrates vinha perdendo o jogo para uma cirrose que lhe arruinara o fígado. Na sua última entrevista, o “Magrão”, como era conhecido pelos amigos, mais parecia um desses velhos roqueiros tresmalhados que pervagam pelos bares sórdidos do mundo. Segundo um cronista maluco, “Sócrates morreu de viver”. 

Por duas vezes, tive a oportunidade de vê-lo jogar; a última delas em Teresina. Embora não estivesse numa tarde inspirada, fez duas ou três jogadas que valeram o ingresso. Era, como dizem os cronistas esportivos, “um jogador diferenciado”. Alto (1.92), magro,elegante, mais parecia uma garça-real. Corria pouco, mas via o jogo de cima e errava o mínimo. Nos momentos cruciais, lá estava ele, pronto para o arremate. Ao contrário de Aquiles, cujo calcanhar era vulnerável, o do Sócrates era o terror dos zagueiros. 

Estudante de medicina, Sócrates não encarava o futebol como profissão. Jogava no Botafogo de Ribeirão Preto como diletante. Mesmo quando se fez profissional, se lhe cobravam um comportamento compatível com a condição de atleta, retrucava: “Não sou atleta; sou um artista do futebol”. Em 1978, transferiu-se para o Corinthians e, em 79, ajudou o Timão a conquistar o título de campeão paulista. O mais é do conhecimento geral: vitórias, títulos, sucesso. Se em campo, encantava os torcedores com seu futebol refinado, fora dos gramados era uma espécie de ícone da esquerda brasileira. Articulado, politizado, em plena ditadura, engendrou a famosa “democracia corintiana” que, segundo um desafeto, “era apenas um expediente para fugir da concentração”. Fez campanha pelas “Diretas já” e chegou a comprometer-se a não sair do Brasil. caso a emenda pelas eleições diretas fosse aprovada. Desencantado com o destino do país, transferiu-se para a Itália onde não se firmou. Na seleção brasileira, brilhou, sem conquistar títulos. De volta ao Brasil, jogou no Flamengo, no Santos e encerrou a carreira com a camisa do Botafogo de Ribeirão Preto, em 1989.

Fiel à filosofia do carpe diem, nunca se privou dos prazeres mundanos: fumava e bebia como um celerado. Talvez se possa tirar da tragédia do “Doutor” pelo menos uma lição: o talento mal administrado não leva a nada. Fora dos gramados, Sócrates não foi o melhor exemplo para a juventude brasileira. Talvez não tenha ouvido a recomendação dos que faturam com a indústria da morte: “beba com moderação”.





segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Jeane Hanauer entrevista Nando Silva

Do popular ao erudito

"Aí, a gente foi lá no mato e cortou um pé de emburana, porque aquele pessoal mais velho sabe qual madeira tem a temperatura que sustenta a temperatura do couro do bode." Sebastião Biano, 91 anos.

Sebastião Biano foi um dos irmãos criadores da Banda de Pífanos de Caruaru, a banda instrumental que mais resiste à modernidade dos calypsos, axé e oxent e até mesmo o pós-ultra-moderno manguebeat. Sem falar que a banda nasceu quase ao mesmo tempo do eletrizante frevo, este sim, o ritmo sagrado do carnaval pernambucano.

Porém não estou aqui para falar da quase centenária banda, conhecida de Deus e do mundo, mas sim, de um dos seus ex-componentes, Nando Silva, que trocou o calor da caatinga no agreste pernambucano pela aprazível Foz do Iguaçu; substituiu a rusticidade do pife pela erudição da Orquestra Foz Camerata e da Orquestra Municipal de Foz de Iguaçu. 

Reveja parte da entrevista no vídeo abaixo.



Programa Repertório
Entrevistado: músico Nando Silva
Data da entrevista: 11/12/2011
Apresentação: Jeane Hanauer
Produção: TVCOM FOZ (Foz do Iguaçu - PR)
Transmissão: NET canal 98 e TVA canal 99.
Exibição: domingos, 17h. Reprises: terças, 21h30 e quintas, 13h.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Cronópio Godot, o livro de cabeceira de Jeane Hanauer


De Jeane Hanauer Cronópio Godot
Mestre em Letras pela UFRGS, jornalista, professora, blogueira, apresentadora de tevê, colaboradora da Terraqua Produções, a agora vídeo-acauãzeira Jeane Hanauer está com um novo livro de poesias na praça: Cronópio Godot.

"Cronópio Godot", editado pela Secretaria Estadual de Cultura do Paraná, retrata um mundo com duas visões baseadas na peça teatral Esperando Godot, de Samuel Beckett e no livro Histórias de Cronópios e de Famas, do escritor argentino Júlio Cortázar.

Conforme explica a autora, “o livro demarca um território de escolhas e defende que cronópios são pessoas libertas do óbvio cotidiano, pautam suas vidas por outra lógica e enxergam o mundo com outros olhos”. 

Para o escritor Pedro Bandeira, o prefaciador do livro, “Cronópio Godot é oxigênio puro para nossas emoções”. 

Cronópio Godot - Poesias
Jeane Hanauer
Publicação: Secretaria Estadual de Cultura do Paraná
Ano: 2011
Páginas: 128
Peso: 560g

Pode ser adquirido no site estante virtual pela simples bagatela de 25 reais, o preço de um café pequeno.

CAFÉ PEQUENO

Caras azedas
e outras misérias de gente menor
são café pequeno.
meu tempo e excepcionalidade
estão para surrealismos,
vanguardas
e outros cafés bem mais fortes.
Cronópio Godot - Jeane Hanauer

Outros livros da autora:
Lobos nos Telhados - Editora do Autor
Flor e Cimento - Editora Paricah

Abaixo, vídeo da escritora falando do livro.





Sosígenes Costa: Cobra de Duas Cabeça

De Sosígenes Costa Cobra de Duas Cabeças

sábado, 10 de dezembro de 2011

A primeira vez que esperei Noel


Seu irmão mais velho, em visita de filho pródigo aos pais, lhe prometera um velocípede de presente de Natal ao subir no ônibus no dia do ir embora. Nas quebradas do Sertão daqueles tempos não era comum se presentear as pessoas, muito menos os irmãos, em tempo de Natal. A data era comemorada apenas pelas visitas aos presépios enquanto se aguardava a Missa do Galo. Papai Noel era uma palavra desconhecida das crianças.

O garoto não sabia se faltava muito ou se faltava pouco, mas sentia haver uma eternidade entre a promessa e o dia prometido. Sonhava diuturnamente com a chegada do irmão trazendo na bagagem o seu presente.

Um dia acordou sobressaltado mal o galo cantou e correu em busca da folhinha. Então, finalmente, o Natal havia chegado. Passou o dia sentado à beira do caminho esperando ver a figura do irmão se descortinar na distância. A noite chegou, os pirilampos acenderam suas lanternas, e o seu pai o encontrou atento aos vultos passantes. 

- Vamos, filho! Talvez seu irmão tenha perdido o ônibus de Zé do Padre. Não veio hoje, talvez venha amanhã ou depois de amanhã. 

O Natal foi embora e ele continuou a esperar sentado à beira do caminho. Um dia o seu irmão apareceu sem que ninguém esperasse e o garoto sentiu o coração subir à goela. Finalmente realizaria o sonho de possuir um velocípede.

- Você cresceu um bocado, garoto. Não adiantava trazer um velocípede. No Natal vou lhe trazer uma bicicleta. Aguarde.

Os sonhos não se acabam nunca. Apenas se renovam. Uma bicicleta seria o suprassumo de um sonho de uma criança, principalmente em um lugar onde não existia nenhuma. O Infinito seria nada, perto de sua ansiedade sentado à beira do caminho ao longo dos dias à espera de um irmão que tardava em chegar.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Luís Pimentel - Eu prometo

* ... Que em 2012 faço um regime, volto a caminhar, paro de beber, deixo de fumar e, sobretudo, não farei mais promessas!

* ... Que vou trabalhar menos e aproveitar mais a vida: trabalhando, claro, que ainda é a melhor maneira de aproveitá-la.

* ... Que vou continuar torcendo pelo mesmo time, frequentando o mesmo boteco (que fica em Copacabana, claro), convivendo com os mesmos amigos (o meu parceiro Amorim entre eles), vivendo com a mesma mulher. Até porque, estou muito velho para muitas novidades...

* ... Que não olharei para a mulher do próximo, nem mesmo se o próximo estiver muito próximo (Por aí tem tanta mulher "do distante" para se olhar)!

* ... Não trocar de carro, não trocar as pernas, não trocar a noite pelo dia, não fazer troca-troca, não trocar o certo pelo duvidoso. Aliás, antes de trocar, preciso descobrir: qual é o certo, qual é o duvidoso?

* ... Voltar em Feira de Santana, rever Paris, conhecer Lisboa, mergulhar no mar, dançar numa cachoeira, correr numa corredeira e afastar a morte... essa companhia derradeira. Prometo não filosofar nem pensar besteira!

*... Não usar o santo nome em vão. Nem andar na contramão.

* ... Contemplar mais a natureza, começar melhor a semana, enfrentar qualquer dureza, olhar melhor as pernas da Luana, não fazer poesia; a não ser que seja em legítima defesa.

* ... Agradecer a Deus, todos os dias, por me dar um ano que começa tão bom quanto o que passou!


Programa Repertório - Jeane Hanauer - TV Foz do Iguaçu


Queridos amigos:

O Programa Repertório é o único programa de TV de Foz do Iguaçu voltado à arte e à cultura produzida em Foz e região trinacional.

Seja parceiro deste projeto ou envie sugestões e comentários para jeanehanauer@hotmail.com

Os programas podem ser vistos também no youtube - canal Jeane Hanauer.

Todos os domingos nova e deliciosa entrevista.

Nesta edição, entrevistamos o ator, diretor e produtor Juca Rodrigues (04/12/2011).

Para que o programa ganhe visibilidade, gere parcerias e assim possamos melhorar progressivamente a qualidade, necessitamos da ajuda de vocês na difusão. Reenviem esta mensagem aos seus contatos via e-mail e redes sociais.

Agradecemos imensamente esta contribuição e os incentivos que temos recebido.

Um abraço com arte,

Jeane Hanauer

apresentadora do Programa Repertório

Mestre em Letras. Escritora e professora

Palestras na área de literatura e comunicação

http://jeanehanauer.blogspot.com

(45)9956-4077

(45)9129-4077


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cineas Santos - Os semeadores de alegria

De Cara alegre do Piauí

Na semana passada, quando juntava a cabroeira do Cara Alegre do Piauí para mais uma jornada no sertão, uma cidadã, bem-nascida, me perguntou: “Professor, desculpe a curiosidade, mas o que o senhor ganha com esse projeto?”. A resposta cabível seria: a alegria de ensinar, aprender, compartilhar, conviver. De repente, me dei conta de que, para quem só se acostumou a ser servido, a resposta não faria o menor sentido. Em tom de pilhéria, respondi: nada, minha jovem, estou apenas gastando o que me resta de alento. A moça sorriu e desconversou. Indagações desse tipo não me surpreendem: já me fizeram perguntas mais diretas. Certa feita, um ex-colega de faculdade disparou: “Quando é que você vai parar de ser besta?”. Respondi de bate-pronto: nunca, meu irmão. Se o fizesse, já não seria eu; seria alguém como você, o que definitivamente não me agrada. Um dia, com sua sabedoria inata, Edson do Ministério de Nossa Senhora sentenciou: “Cada um para o que nasce”. Nunca ouvi nada mais verdadeiro.

Não seria exagero afirmar que a história do Cara Alegre se confunde com a minha trajetória de vida. Quando concebi o projeto, em 1977, eu sonhava alto: queria construir uma ponte cultural entre Teresina e os sertões do Piauí. Arrebanhei alguns amigos jovens - Paulo Machado, Fernando Costa, Margareth Coelho, Rogério Newton e Alcide Filho - e, amontoados num velho fusca verde-sonho, rumamos para Oeiras, Floriano, São Raimundo Nonato. O destino era Corrente, no extremo sul do Piauí. Na metade do caminho, a gasolina acabou. Por pouco, não voltamos a pé. Sem patrocínio e nem apoio das instituições, o projeto não deslanchou. Ainda assim, as sementes foram lançadas e permaneceram vivas. Ao longo desses 36 anos, nunca deixei de regar essa semente com suor e entusiasmo. 

Em 1997, o prof. Fernando Ferraz sugeriu um novo nome para o projeto que, até então, chamava-se Mão Dupla. Fernando propôs A Cara Alegre do Piauí, com o argumento incontestável: “Até hoje, só mostramos a cara triste do Piauí. O que ganhamos com isso? A piedade de alguns e o escárnio de muitos. Chegou a hora de mostrarmos a face luminosa de nossa gente: a cultura piauiense”. Encorpado e revitalizado, o projeto já percorreu o Piauí inteiro, de Teresina a Guaribas, levando oficinas de dança, canto coral, violão, escultura em argila, pintura, teatro, xilogravura e cursos das mais variadas disciplinas. Na verdade, semeamos alegria e entusiasmo nas comunidades visitadas.

No último final de semana, por exemplo, estivemos no município de Fronteiras, a 400 km de Teresina, para mais uma jornada . Seria ótimo se a cidadã que me fez aquela pergunta inteligente pudesse ver o brilho nos olhos das dezenas de alunos e professores que participaram dos cursos e oficinas. Não resisti à tentação de publicar, neste espaço, a foto da Ângela Kelly, de 11 anos de idade, que, embora nunca tivesse ouvido falar de xilogravura, com duas horas de oficina, fez uma xilo de matar de inveja muita gente metida a artista. Por essas e outras, vamos continuar semeando: alguma semente há de vingar. Assim seja.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Luiz Ruffato - Domingos sem Deus

Se você é católico, aproveite para saber o que o Diabo anda aprontando...
Se for evangélico, cuidado que o Capeta anda solto;
Se for ateu, então todos os seus dias são sem Deus.
Não precisa levar água benta porque o lançamento será numa sexta-feira, a próxima, e o bispo do Rio de Janeiro estará presente. 


De Domingos sem Deus

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Cunha de Leiradella - Síndrome da dúvida compressiva


O casal caminhava, devagar, pela calçada. A mulher, de calça jeans desbotada e blusa xadrez solta na cintura e uma bolsa de pano a tiracolo, e o homem, de paletó esporte e óculos de aros grossos e um livro debaixo do braço. Escurecia e o trânsito estava lento, e eles caminhavam em silêncio. De repente, a mulher parou e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Pô. Já tava até aqui daquele táxi.
O homem não respondeu. Um carro saiu da fila e fez a volta, e subiu a outra pista na contramão. A mulher olhou os carros quase parados e cuspiu com força na calçada.
- Se tem merda que me torra é andar de carro deste jeito. Carro foi feito pra correr. Foi feito pra andar assim, não, merda.
Abanou a cabeça com força e começou andando.
- Salvador tá que tá um sufoco mesmo, puta que pariu.
O homem apontou a bolsa balançando e batendo nas pernas da mulher.
- Quer que leve?
- Precisa, não. Tou é puta mesmo.
Continuaram andando. Na porta de um bar, rapazes e moças, os capacetes pendurados nos guidões das motos, conversavam e riam alto. A mulher acenou para um deles e voltou-se para o homem.
- É Zeca.
O homem não respondeu e a mulher parou e olhou-o.
- Zeca, pô. Namorado de Aninha.
O homem acendeu um cigarro e continuou andando. Puxou uma tragada profunda e apontou os carros, quase parados.
- Parece até no Rio.
A mulher não respondeu. Acendeu um cigarro e começou andando.
- Vamos sábado em Maré?
O homem não respondeu e a mulher olhou-o durante algum tempo e puxou uma tragada profunda.
- Quer ir, não?
O homem continuou calado e a mulher parou e tirou a areia dos chinelos, e ajeitou a alça da bolsa no ombro. O homem ajeitou o livro debaixo do braço e a mulher passou-lhe um braço em volta da cintura.
- Você vai gostar de Maré, você vai ver.
Voltou-se e apontou o mar.
- Tá vendo lá, depois do farol? Maré é lá.
O homem não respondeu. Puxou uma tragada profunda e jogou o cigarro no chão. A mulher apertou o braço na cintura do homem e encostou o corpo no dele.
- Maré é a ilha mais porreta que tem Salvador. Você vai gostar, você vai ver.
- A gente não ia pra Arembepe?
A mulher olhou o homem e sorriu.
- Agora, sei, não.
Riu e apertou mais o braço em volta da cintura do homem.
- Olhe, nem lhe conto. Tem um amigo meu, Paulinho, Paulinho tem casa em Maré. Você conhece Paulinho, não, ele agora tá em São Paulo, mas Paulinho é porreta, amigão mesmo. De verdade. Só pra você ver, quando Aninha começou com Zeca, Zeca, aquele que tava ali no Quintela, sabe onde eles foram se entocar? Em Maré, em casa de Paulinho. Aninha falou comigo, eu falei com Paulinho, Paulinho pegou, me deu a chave, e nem perguntou. Paulinho é porreta. Cabeça feita mesmo.
Fez uma pausa e jogou o cigarro no chão.
- Vamos sábado? Hem? A chave tá comigo.
O homem encolheu os ombros e a mulher olhou-o.
- Quer ir, não?
O homem não respondeu e a mulher afastou-se e colocou-se na frente dele.
- Fale, pô.
O homem tirou os óculos e limpou-os, e voltou a colocá-los.
- Você não tá querendo ir?
A mulher sorriu.
- Só por causa de Fiinha. Jorginho tá querendo...
Calou-se e pegou a mão do homem, e apertou-a com força.
- Vai ser legal paca, você vai ver.
O homem não respondeu e começaram andando. A mulher olhando o mar, do outro lado da mureta, e o homem olhando os carros, buzinando.
- Puta que pariu. Parece até no Rio.
A mulher parou e voltou-se para o homem.
- Falar no Rio, quê você que resolveu lá na agência, hem?
- Nada. Já não disse a você?
- Naquela hora eu tava era puta.
O homem não respondeu. Ajeitou o livro debaixo do braço e começou andando. A mulher puxou-o pela mão.
- Mas vai resolver. Vai, não?
- Vamos ver.
Calaram-se e começaram andando. A mulher largou a mão do homem e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Tereza falou, lembra de Tereza?
O homem acenou com a cabeça e a mulher sorriu e voltou a pegar a mão dele.
- Tereza diz que apresenta você a um monte de gente, se você quiser. E Dito, lembra de Dito?
O homem voltou a acenar com a cabeça e a mulher continuou.
- Dito também falou. E olhe que Dito conhece todo mundo que trabalha em propaganda, viu?
Fez uma pausa e olhou o homem.
- Quer que eu fale com Tereza e com Dito? Hem?
O homem soltou a mão e acendeu um cigarro.
- Amanhã a gente vê.
Calaram-se. Estavam a meio do caminho, entre o Farol da Barra e o Barravento, e o homem parou e debruçou-se na mureta, olhando o mar. A mulher aproximou-se e passou um braço nas costas dele.
- Quê que tá olhando?
O homem não respondeu e a mulher debruçou-se também. Batida pela luz dos postes da calçada, a água rebrilhava. A mulher encostou-se no homem e apontou as ondas, marolando, devagar, até à praia.
- O mar também é porreta. Mas eu gosto, mesmo, é da lua.
Endireitou o corpo e apontou a lua, quase na linha do horizonte.
- Parece que tou até olhando pra mim. Quando tou na fossa, então...
Calou-se e olhou o homem.
- Gosta de olhar a lua, não?
O homem não respondeu e começaram andando. A mulher acendeu um cigarro e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Por quê que você falou aquilo, ontem, lá no Juvená, hem?
- Aquilo, o quê?
- Aquele negócio de querer ficar em Salvador.
O homem não respondeu e a mulher puxou uma tragada profunda e soprou o fumo com força.
- Era verdade mesmo? Hem?
O homem puxou uma tragada e jogou o cigarro no chão. A mulher ajeitou a alça da bolsa no ombro e olhou-o durante alguns instantes.
- Só que, do jeito que você falou, sei, não. Parece até que você tá muito mais a fim de se picar do Rio, do que ficar em Salvador.
Fez uma pausa e olhou o homem.
- Era isso, não?
O homem não respondeu e a mulher pegou a mão dele e apertou-a.
- Era isso, não?
O homem continuou sem responder e a mulher parou e olhou-o.
- Se arrumar tudo lá na agência, você fica em Salvador?
O homem continuou calado, os olhos vagando no horizonte, por cima da mureta. A mulher olhou-o durante algum tempo e, de repente, puxou a mão dele com força.
- Fale, pô. Parece até que tá com medo, merda.
O homem tirou a mão e começou andando. A mulher ficou parada, olhando as costas dele, mas o homem não se voltou. A mulher xingou um palavrão e correu. Na frente deles, o letreiro do Barravento piscava, iluminando a areia da praia. De mãos dadas, um casal andava, devagar, junto da água. O homem acendeu um cigarro. A mulher puxou uma tragada profunda e jogou o cigarro por cima da mureta.
- Merda. Amanhã tou com prova.
- Vai dormir em casa?
- Precisa preocupar, não. De inglês eu entendo.
Calaram-se. Uma moto passou, a moça colada nas costas do rapaz e os cabelos esvoaçando. O rapaz gritou e acenou para a mulher.
- Oi.
A mulher sorriu e agitou os braços.
- Oi.
O homem olhou a moto ziguezagueando por entre os carros e a mulher riu.
- É Zeca. Namorado de Aninha. Aquele que tava no Quintela, lembra, não?
O homem não respondeu e a mulher riu outra vez.
- Zeca é fora de série. Mal Aninha vira costas, ó. Zeca é porreta. Cabeça feita mesmo.
O homem parou e olhou a esplanada do Barravento. A mulher continuou andando e parou junto de uma mesa vaga.
- Vai de caipirosca, não? Tou sequinha, sequinha.
O homem não respondeu, mas aproximou-se da mesa. Sentaram. A mulher pendurou a bolsa nas costas de uma cadeira e tirou a areia dos chinelos. O homem colocou o livro em cima da mesa e puxou uma tragada. Apesar da hora, a maior parte das mesas estava lotada. A mulher passou as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.
- Pô. Salvador tá que tá uma merda mesmo.
O homem não respondeu e chamou um garçom.
- Duas caipiroscas.
O garçom anotou o pedido e afastou-se. A mulher olhou as mesas à volta.
- Tá uma merda mesmo.
O homem não respondeu e a mulher acendeu um cigarro e puxou algumas tragadas. O garçom trouxe as bebidas e ambos beberam, em silêncio. O ar cheirava a maresia e o vento trazia gotas de espuma até à mesa. O homem olhou a mulher. A mulher olhava o mar. O homem puxou uma tragada profunda e olhou a rua, os carros ainda andando devagar. A mulher pegou o copo e bebeu dois goles. Colocou o copo em cima da mesa e ficou olhando para o homem.
- E se você não arrumar nada lá na agência, hem?
O homem não respondeu e a mulher debruçou-se na mesa e pegou a mão dele.
- Vai procurar outra. Vai, não?
O homem continuou sem responder e a mulher tirou a mão e puxou uma tragada profunda, e jogou o cigarro no chão.
- Hem?
O homem continuou calado e olhou a esplanada. A mulher olhou a rua. Ficou assim algum tempo e, de repente, cobriu o rosto com as mãos. O homem pegou o copo e bebeu um gole. A mulher tirou as mãos do rosto e espalmou-as em cima da mesa.
- Tá uma merda mesmo.
O homem bebeu outro gole e olhou a mulher. A mulher abanou a cabeça com força.
- Tou gostando daqui, não.
Olhou o homem fixamente, durante alguns instantes, e passou as mãos no rosto.
- Parece que a gente tá presa, merda.
Voltou a passar as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.
- Suporto sufoco, não, pô.
O homem colocou o copo em cima da mesa e olhou a mulher.
- Quer ir?
- Ir pra onde, merda? Pro hotel?


domingo, 4 de dezembro de 2011

Toalha da Saudade, a boemia nas noites soteropolitanas



Eu queria ter um coração duro o suficiente para não tremer de emoção quando recebo notícias de Salvador. Antigas lembranças se libertam e me envolvem numa teia nostálgica e crescente, aflorando a saudade dos velhos tempos. Foi o que aconteceu hoje, numa releitura de Sargaços, do amigo d'além-mar Cunha de Leiradella.

A cidade fascinava, encantava, enlouquecia. Conheci cada canto dos seus encantos, cada centímetro de suas emoções. As ondas traiçoeiras de Stella Maris, o feitiço mortal da Lagoa do Abaeté, a solitude de Itapuã, as batidas de limão de Amaralina, a boemia do Rio Vermelho (e também as batidas do meu amigo Diolino), a prostituição da Barra, o tradicionalismo de Santo Antonio Além do Carmo, e o samba-de-roda do Mercado Modelo ou da Ribeira, em triste e nostálgico entardecer da Baía de Todos os Santos. Paripe, Periperi, Lobato e a cachoeira de São Bartolomeu, perigosamente linda e desconhecida das autoridades policiais. Era preciso salvo-conduto pra se chegar até lá sem ser importunado pelos meliantes e gatunos. O nosso era Clóvis Loureiro, um amigo, morador do bairro do Lobato, nascido e criado na floresta de São Bartolomeu, e os pivetes e malandros da redondeza o chamavam de “Maluco”. E só podia ser maluco para adentrar a mata para tomar banho de cachoeira ao som dos atabaques. Em Salvador toda nascente de água é santuário sagrado para a religião de matriz africana.

As noites soteropolitanas eram curtas para o tamanho das farras. Quando os bares fechavam, à meia-noite, a farra continuava no Zanzibar, no Garcia, reduto de poetas, artistas ou boêmios sem guarida. Quase ao lado do Castro Alves, os deuses do palco costumavam ser gente comum no Zanzi. Quando estava muito cheio, o jeito era descer para o Jereré do Macedo e ver o sol nascer no mar de Amaralina. Ou no Tenda dos Milagres.  Quando o Jereré e o Tenda fecharam, o mestre e poeta Batatinha nos abriu as portas do seu “Toalha da Saudade”, na Ladeira dos Aflitos, onde se podia amanhecer o dia em conversas interessantes, ouvindo boa música da nossa MPB.

A praia do Porto da Barra era – e continua sendo - o metro quadrado de mulheres mais bonitas e sensuais do Nordeste. Eram ninfas, sacerdotisas de Eros, deusas da estética. Foi nessa praia que tive a sensação de que o Paraíso existia. Não havia como conter a libido ante a exuberância sensual das mulheres do Porto. Wonderful!

Mas, infelizmente, o que é bom tem seus dias contados. A roda-de-samba do Mercado Modelo foi substituída pela exibição de capoeira, tempos depois do último incêndio. Trocaram o improviso e a espontaneidade do baiano por grupos coreografados para turista ver. Na verdade, um assalto: o inadvertido que fotografar um “rabo-de-arraia” terá que deixar o filme ou pagar uma fortuna para os chamados “mestres”. Uma simples olhadela de um passante significa ter que desembolsar o cachê. Pague e não chore. Ou passe e não olhe.

A Ribeira e toda península itapagipana entraram numa decadência sem volta. Uma tristeza só. Último reduto das famílias tradicionais soteropolitanas, vive entregue ao Deus dará, em total abandono dos gestores públicos. E dos moradores, que migram para a Cidade Alta como alternativa ao descaso.

Como dizia Gregório de Mattos e Guerra: triste Bahia, o quão dessemelhante e triste. Acabaram os puteiros, acabaram as barracas de praia, acabaram as festas de largo, acabaram o carnaval de frevos e marchinhas; o Elevador Lacerda funciona capenga, só vai ao Pelô quem é turista, os clubes sociais e cinemas viraram igrejas evangélicas e Gal Costa só é lembrada como um ferry boat em fim de carreira.

A Salvador de hoje perdeu o brilho e o encanto que existiam nos meus tempos de boêmio pelos becos do Pelourinho, pelos bares do Rio Vermelho, pelas barracas atrás do Clube Português, na Pituba, que a ressaca marinha destruiu, e nos ensaios ritmados do Ilê Ayê, na antiga Casa de Detenção, no Largo de Santo Antônio. Tudo hoje funciona em função do turismo e da exploração do turista. E os nativos sobrevivem em guetos, comendo as sobras. Fora deles, tem que se pagar pedágio. Até catador de lata é obrigado a ter licença da Prefeitura, sem falar que os padres da Igreja do Bonfim estão cobrando pela água benta aspergida sobre os fieis.

Triste Bahia! Tão dessemelhante e triste. A mim foi-me trocando, e tem trocado, tanto negócio e tanto negociante.