Um dia, antes dos bolsominions se apoderarem da camisa da CBF, fui ver um jogo da seleção brasileira na casa do meu irmão Raimundo, quando ele morava em Alagoinhas. Era a Copa do Mundo em um ano qualquer. Aconteceu do jogo ir pros pênaltis. Na hora da cobrança, ele se trancou no banheiro e gritou para sua cara-metade, que fazia as unhas no sofá da sala:
- E aí, já cobrou?
- Já.
- Foi gol?
- Foi.
- De quem?
- Sei lá! De um time aí. Acho que foi dos japoneses.
No São João passado, arrumei as malas para ir ver a grande
performance de Eddy Luem no arraial joanino de Sátiro Dias, Bahia. Ele iria se
apresentar antes de Flávio Leandro, o grande forrozeiro de Petrolina,
encerrando os festejos juninos.
Conheci Eddy Luem em outra ocasião, no início do século
vinte e um, em uma noite de busca-pés e rojões, na mesma cidade acima. Ele era
integrante da banda “Os Filhos da Mãe”, e, além de ser o crooner, ele, também,
foi produtor.
Eddy é um músico versátil, sem contar que ele é também um
excelente compositor. Dirigi um filme na Bahia e ele foi o responsável pela
excelência da trilha sonora (assistam ao filme no rodapé deste texto). Como se não
bastasse essa pluralidade artística, ele exerce a profissão de radiocomunicador,
em São Paulo. Tem formação acadêmica em Comunicação, transita pelo show business,
cuja experimentação vem dos tempos de garoto das ruas empoeiradas da Bahia.
Depois que a banda Os Filhos da Mãe se apresentou em Sátiro
Dias, no raiar do século, seus componentes resolveram sair em turnê por São Paulo
e outras cidades da Região Sudeste. Finda a turnê, Eddy fincou raízes na terra
da garoa e lá vive por mais de duas décadas, animando festas de
confraternização de empresas e festas paroquiais. Antes de embarcar para Sátiro
Dias, animou as festas juninas no “Arraiá” da Paróquia São Domingos, "O
Pregador", em Osasco, São Paulo, e em Jataí, Goiás. Em Osasco, Eddy Luem
contou com a participação especial do maestro Frank Lima; em Jataí, ele fez uma
apresentação temática, cujo título foi “Eddy Luem Canta a História do Forró de
Luiz Gonzaga a Falamansa". Em ambas as cidades ele foi bastante aplaudido
e elogiado.
Era por conta de um artista desse naipe que eu iria rodar
mais de um mil quilômetros para vê-lo. Devia um mimo a ele, pois, quando estive
em São Paulo, dois anos atrás, ele foi todo solícito e, inclusive, me levou
para passar uma manhã com o padre Júlio Lancelot, o qual ele é amigo e eu um
grande admirador. O caro leitor deve estar se indagando porque, no início deste
parágrafo, eu falo no futuro do pretérito, e não, no pretérito perfeito.
Lembremos, caros amigos, nem tudo é perfeito nesta vida. Ao arrumar as malas,
Eddy me ligou, perguntando se eu já estava na estrada. Aliás, ele não, a mulher
dele. Respondi que estava me preparando para viajar. Então ela me deu a
notícia-bomba:
- Tom, se você ia só ver o Eddy, desista. Ele não vai mais.
Está afônico e tiririca de febre.
Ainda bem que desarrumar mala é mais rápido do que arrumar.
Em 1963 eu morava na roça e caí da jega do meu irmão, bati o cotovelo numa pedra e o meu braço direito dobrou. Não havia médico na cidade, só Zé Botica, o botiqueiro que se fazia de farmacêutico encanador de braço das crianças que caiam de jegue.
A minha mãe chamou o meu irmão e, na mesma jega que me derrubou, ele foi atrás do botiqueiro. Voltou, meia hora depois, trazendo o dublê de farmacêutico montado em outra jega, mais bêbado do que um gambá.
Ele encanou meu braço de qualquer jeito, fez uma tala com dois pedaços de vara, amarrou com uma corda de laçar boi e foi embora. Até chegar na jega, caiu três vezes.
Eu tinha um tio, por parte de pai, que era beato, chamado Ascendino. Minha mãe mandou buscá-lo para puxar umas rezas analgésicas ou anestésicas, pois eu me contorcia de dor.
Depois de rezar umas rezas diferentes, tio Ascendino sentou-se ao meu lado e começou a contar umas historias, criadas à luz de candeeiro, pois ele não conhecia Monteiro Lobato nem outro escritor de criança. Depois passou a cantar umas músicas e eu fiquei vidrado em uma que dizia "e leva eu, minha saudade".
- Tio, canta de novo aquela que diz que tem medo de cair na ladeira!
E ele cantou, cantou, e eu dormi. Dormi, dormi, dormi, e quando acordei ele estava dormindo dentro de um caixão, feito pelo meu pai. Foi a primeira vez que vi um morto de perto e na hora nem me veio à mente que havia perdido para sempre o único tio que me deu uma noite de afeto e carinho. Os outros tios eram bons...mas não sabiam cantar.
Não sei onde esse meu tio aprendeu essa música, maior sucesso de Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano, gravada em 1962, um ano antes, pois lá no Junco não havia rádio.
Só podia ser coisa de anjo. Se o tempo apagou da minha memória o rosto de tio Ascendino, preservou nos meus tímpanos a suavidade da sua voz cantando "Ô, leva eu, minha saudade / que eu também quero ir, minha saudade / quando chego na ladeira tenho medo de cair... Ô, leva eu!"
Não me avisaram que havia um rio no meio do caminho. Embora soubesse nadar com destreza, desisti do meu intento. Nenhuma festa valia molhar meu sapato novo. Meus amigos me convenceram a tirar os sapatos e atravessar caminhando. O rio era só um córrego, mal batia água no joelho.
Fui.
O risca-faca estava animado ao som da sanfona e da zabumba. O noivo e a noiva dançavam alegres e satisfeitos. O padre bebericava uma dose de milome e até parecia casamento de verdade.
- É de verdade! - me disse um convidado.
- E meu amigo Eliseu resolveu se casar numa visgueira?
- É o único lugar que se pode dançar.
Puxei minha namorada pelo braço e fomos dançar o xote. Mal ensaiamos uns passos, fomos interrompidos por um senhor de bigode a la gaúcho. Em vez de três facas, portava um facão.
- Quero a vorta!
- Hein?
- A vorta!
- Mas eu não tenho volta nenhuma! Nem lhe conheço, cara!
- Então vamos poitá!
- Tá me achando com cara de viado! Eu sou Caçarola, irmão de Tombrega! Vá buscar mais facão que um só não dá não!
O falso gaúcho saiu furibundo, xingando até a minha décima quinta geração. O meu amigo, o noivo, se aproximou e esclareceu:
- Caçarola, se acalme. A volta é dançar com a sua parceira. E você dança com a dele. É costume daqui.
Houve um tempo que o doutor José Décio Guedes foi morar umas décadas no Rio de Janeiro e São Paulo e, quando ia passar as férias em Alagoinhas, me botava de castigo até cantar Elton John de cor e salteado e com os olhos fechados. "Daniel" era a sua preferida. E se eu não obedecesse, o couro comia no lombo do aluno rebelde. Não por ele, claro, que é meu irmão mais novo e eu podia lhe dar uns cascudos, mas pela minha mãe que ficava ao seu lado, chinelo na mão, falando palavras incentivadoras:
- Ou obedece ao seu irmão ou o couro come!
E não saía de perto enquanto o professor não dissesse que era hora de parar. No final das férias, ele retornava para o Rio de Janeiro ou São Paulo e eu ia gastar o meu Inglês com as meninas do Alecrim, o brega de Alagoinhas, mas me sentia o próprio João Batista pregando no deserto: elas mal falavam o Português e então eu desaprendia tudo, para desespero da minha mãe, que, de tanto ouvir "Daniel is traveling tonight on a plane", ela aprendeu no grito e me botava para cantar na base da chinela, mas não na casa da Gabriela. O couro comia, o cacete descia, os cascudos rangiam, até ficar desplaneado do juízo. Quando meu irmão retornou nas férias, achou que meus grunhidos eram Grego. Então, pegou o disco de Demis Roussos e banda Aphrodite's Child e me botou para cantar Mary Jolie.
Porque Copacabana vai além de sua calçada e do seu mar revolto. Eu, quando ainda menino besta do interior, conheci o calçadão na capa de um livro de crônica de Rubem Braga; gemi meus ais de mim, e ai de ti se não te conhecesse logo, Copacabana! Mas, entre a cidade e a roça, existia um oceano de distância.
O meu irmão mais velho, e velho de morar em Copacabana que até incorporara o linguajar carioca, sabendo dos meus sonhos de menino descalço pelas ruas do sertão, me deu uma passagem de presente por ter passado no Exame de Admissão ao Ginásio.
Assim, como Rubem Braga redesenhou a crônica na minha vida, vi Burle Marx redesenhar as ondas nas pedras portuguesas do calçadão de Copacabana.
A minha mãe nasceu mais para conselheira do que para ouvidora. Quando alguma amiga dizia ter medo de aranha, ela aconselhava:
- Se não quiser ver uma aranha, não se desnude diante do espelho.
Como eu não tinha medo de aranha, tirei a roupa diante do espelho e o bicho que vi era outro. Corri assustado para a sala e interrompi as inconfidências femininas:
- Mamãe, tem uma pulga atrás da minha orelha!
Ela me atendeu com a devida presteza e solicitude de todas as mães e me disse carinhosamente que não era pulga; era piolho. Em seguida, após matar o piolho a unha, pediu licença às amigas e raspou a minha cabeça e depois me deu uma surra de chinelo de couro de boi que era para aprender a não andar nu dentro de casa, principalmente no dia que ela recebia visitas para o chá das cinco.
Todo mundo homenageando as mães por aqui e elas, as mães, coitadas! a maioria não sabe nem o que é Facebook, WhatsApp ou Instagran! Algumas preparam um almoço especial, chamam os filhos, e eles respondem, com a bunda pregada na cadeira do computador:
- Peraí, mãe, que estou fazendo uma homenagem a senhora aqui!
E a mãe belisca qualquer coisa, abre uma Coca-Cola, senta no sofá, liga a televisão e fica esperando começar o Domingão do Faustão, não se cabendo de felicidade com a mensagem que o filho ou a filha está escrevendo a qual ela nunca ficará sabendo.
Uma vez, quando ainda menino besta pelas ruas do Sertão, sonhava em ser proletário e poder sair pelas ruas gritando o velho refrão: "Trabalhador unido / jamais será vencido!"
Sabendo dos meus sonhos, o velho Bidô, pai do arreliento Renan, me ofereceu emprego de meio turno. Quando recebi meu primeiro salário, corri para casa na maior alegria e satisfação. A minha mãe, vendo aquele dinheirão todo, indagou:
- Onde você arranjou essas moedas?
- Ganhei trabalhando com seu Bidô.
- Seu moleque descarado, e tou criando filho pra puxar fole de ferreiro?! Vá lá agora e devolva essa porcaria que não dá nem pra comprar um metro de corda de couro cru pra lhe dar uma surra!
Não sei que mágica ela fez, mas antes de pronunciar "surra", o cinto do meu pai apareceu na sua mão e fui devolver as moedas com o corpo em carne viva.
Confesso que naquela hora desejei ser um helênico para poder invocar a intervenção de Hefesto, mas, na fúria que a minha mãe estava, duvido que ele, deus ou não, também não tivesse levado umas bordoadas.
O meu guru espiritual Barrabaz Thrasher participou de um concurso sem entender bem do que se tratava.
Movido pela curiosidade, entrou numa fila onde estava escrito: "Concurso". Quem sabe se não era pra ver quem bebia mais cerveja?, pensou ele. Só que era para escolher o homem mais feio do Junco e ele foi eleito o mais bonito. Ficou sem entender esse paradoxo. Pediu explicação à organizadora do concurso, Mislene Lopes:
- Barrabaz, tudo faz sentido desde que entendamos as metáforas - explicou Mislene.
- Quais metáforas?
- Você acha que é bonito ser feio?
- Isso não é metáfora! É ironia.
- Eufemismo, Barrabaz! Eufemismo...
Declinou do prêmio e saiu esbravejando impropérios e cantando "Ai, se eu te pego!", mas fora do contexto pragmático musical. Seguiu na direção do Bar da Leninha com intenção de encher a cara, esquecido de que a proprietária ainda não havia revogado a proibição de vender fiado, decretada durante a pandemia.
De repente os caçadores de Covid sumiram do Lena's Bar, o boteco mais famoso do Junco. Fui investigar a razão do sumiço de alguns clientes fiéis desde o início do Mundo. Liguei para a proprietária:
- Leninha, o que está acontecendo, por que não vejo mais fotos no Facebook dos caçadores da Covid?
- Não sei.
- Tem certeza?
- Tenho. Desde o dia que coloquei um aviso na entrada todos eles desapareceram.
- Aviso? O que tem escrito nesse aviso?
- "Está suspenso o FIADO durante a pandemia. Vai que você morre..."