quarta-feira, 8 de junho de 2011

Luís Nassif - Antonio Torres, o escritor e seu ofício

O grande escritor é ele e seu ofício solitário, ele com ele. Não ambiciona riqueza ou poder. Sua ambição é o reconhecimento dos leitores e dos iguais, os demais escritores. Muitos escrevem pensando apenas no reconhecimento posterior; outros ambicionam o reconhecimento imediato. Mas seu mote, sua seiva vital é o reconhecimento de seus pares.

Um grande escritor não nasce, é construído ao longo de décadas e de livros, de personagens que cria, de tramas que tece, de sentimentos que explora, na solidão intermitente de seu quarto, raras vezes nos salões dos poderosos. Explora novas formas de conhecimento, a atualização permanente da leitura e da análise de pessoas e circunstâncias.

Não busca a popularidade fácil dos jornalistas, a exploração do factual, do imediato, o atendimento da catarse dos leitores. O grande escritor ambiciona a eternidade. Para os de família quatrocentona, a eternidade pode ser um mausoléu no Cemitério da Consolidação; para os muitos ricos letrados, uma fundação que leve seu nome; para o provincianismo brasileiro, um nome de rua.

Para o grande escritor, deveria ser a Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas não é.

A ABL, a casa de Machado de Assis, que deveria ser a guardiã implacável dos valores da literatura, a defensora intransigente da meritocracia, a defensora dos escritores, o selo de qualidade, o passaporte final para a posteridade, é uma casa menor, em alguns momentos parecendo mais uma cloaca de fazenda do que um lugar de luzes e de letras.
Ao preterir o escritor Antônio Torres em favor do jornalista Merval Pereira, a ABL demonstrou a pequenez não propriamente dela, mas de uma certa elite superficial brasileira, provinciana, atrasada.

De pouco adiantou o fato de que os livros de Torres ajudaram o Brasil a ser mais conhecido por leitores da Itália, Argentina, México, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Bélgica, Holanda, Israel, Bulgária. Ou o fato de dois livros seus – Um táxi para Viena D’Áustria e Essa Terra - traduzidos na França, terem levado o governo francês, em 1999, a lhe conferir o título de "Cavaleiro das Artes e das Letras”.

Merval tem a visibilidade e o poder proporcionados pela Rede Globo. Tem moeda de troca – o espaço na Globo, podendo abastecer o ego de seus pares e as demandas da ABL. Poderia até ganhar prêmios jornalísticos, jamais a maior condecoração da literatura brasileira.

Tem apenas dois livros, um de 1979, feito a quatro mãos, outro mais recente, mera compilação de artigos que escreve para o jornal “O Globo”.

Mas representa poder – no caso, a mídia -, assim como, em outros tempos, o poder era o general Lyra Tavares, Getúlio Vargas, Roberto Marinho, ao quais também se curvou a ABL.
De Merval, duas declarações de endosso. Da indescritível Nelida Piñon, enaltecendo seu... cavalheirismo. E a informação de que, dos acadêmicos, conhece apenas João Ubaldo Ribeiro – colunista de “O Globo”.

Nota do blog: Publicado, originalmente, no site www.luisnassif.com.br em 06/06/2011


segunda-feira, 6 de junho de 2011

Conversa de Botequim


– Garçom, dois “chopiisss”!
– O meu sem colarinho branco.
– Tudo bem com você? Faz um tempão que não lhe vejo.
– Ando sumido do mapa mesmo. Depois que terminei os estudos voltei a morar no interior, com meus pais. Queria fugir do caos urbano, mas quem disse?! Lá tá pior do que aqui. Uma barulheira infernal, traficante andando pra cima e pra baixo na maior tranquilidade e o pau comendo no couro da população.
– A minha cidade também está assim, por isso nem me arrisco a pôr os pés lá. Depois que a droga se globalizou não tem essa de lugar pequeno não ter viciado não. É maconha, é crack... só não tem cocaína porque custa caro e o povo de lá vive eternamente duro.
– É justamente pela dureza que tudo descamba pra violência, pro roubo, pro latrocínio. Virou moda se roubar ou até mesmo matar os velhinhos no dia do pagamento da aposentadoria.
– Pior é que não tem polícia. E, quando tem, os policiais também estão envolvidos no ilícito. Todo dia a gente vê na tevê policial sendo preso.
– Também não adianta prender porque logo, logo um juiz manda soltar. Viu aquele jornalista que matou a namorada? Réu confesso, foi julgado, condenado, e somente doze anos depois foi preso.
– Isso é que dói. Lembra daquela mãe que pegou dois anos só porque roubou uma lata de leite pra dar pro filho faminto? Ainda continua presa.
– A Justiça no Brasil não é justa. Mas mudemos de assunto: e o resto da turma? Nunca mais tive notícias de ninguém.
– De vez em quando encontro um e outro vagando por aí. Alguns seguiram em frente com os estudos, outros estão trabalhando na informalidade e outros arriscam a sorte grande, como o Machado. Lembra dele?
– Como não haveria de me lembrar do Machadinho? Certa vez queria brigar porque eu disse que ele não podia ver um pau em pé.
– E você queria o quê? Chama o cara de viado...
– Não foi isso. Quem é que corta pau? O machado. Levei séculos explicando isso a ele.
– Ah! Sim.
– Ele vivia dizendo que ia se dar bem na vida.
– E parece que vai. Da última vez que o encontrei, ele me disse que estava empenhado em entrar para Academia Brasileira de Letras.
– Brasileira de quê?!
– Letras! Aquele lugar onde deram uma condecoração a Wanderley Luxemburgo e Ronaldinho Gaúcho.
– Ah! A CBF...
– Não, jumento! Vai pro interior e esquece tudo. A ABL. Aquela casa que reúne os melhores escritores do país.
– E Ronaldinho Gaúcho escreveu um livro?
– Não escreveu e nem vai escrever. Aliás, ele mesmo disse que nunca leu um livro. Mas disseram que um escritor famoso lá da academia morreu e era fã de Ronaldinho Gaúcho. Aí lhe fizeram essa homenagem póstuma. Mas eu acho que os escritores da tal academia queriam mesmo era ficar bem na fita depois que andaram falando mal de um livro sem terem lido o livro.
– Oxente! E escritor agora é adepto do “não li e não gostei”? Quem falava assim era uma tia minha, que se achava muito importante. Já o meu avô dizia que não devíamos falar daquilo que não conhecemos. Nem falar bem, nem falar mal. O que não se conhece, desconhecido é, dizia ele.
– Pois é. Nem todos de lá tiveram um avô sábio igual ao seu. E a academia ficou numa situação vexatória. Aí inventaram essa de condecorar um cara que nunca leu um livro.
– Isso me lembra o Machado. Desde quando ele virou escritor? Nunca soube que tivesse escrito um livro. Aliás, ele sempre tirou nota baixa em Redação.
– E ele não escreveu livro nenhum.
– Como que não?! E como é que ele quer entrar pra essa tal de ABL? Não tem que ser escritor pra entrar pra lá?
– Aí é que tá: o critério deveria ser esse. Mas não é assim que funciona. Hoje, o principal critério é ser funcionário da Rede Globo e o Machado já conseguiu espetar um crachá dessa empresa no peito.
– Deus do Céu! Garçom, passa a régua rapidinho que vou voltar pro interior!


domingo, 5 de junho de 2011

Edna Lopes - Academia Brasileira de Quê?

Sempre que sei por ler ou por ouvir dizer de alguma notícia que alguém recebeu de uma UNIVERSIDADE o título de Doutor Honoris Causa, atribuído a personalidades que tenham se distinguido pelo saber ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos, fico feliz pelo reconhecimento que aquela instituição faz, mesmo in memoriam, a quem de alguma forma se destacou ou se destaca em algum campo do conhecimento humano.

Sempre que sei por ler ou por ouvir dizer de alguma notícia que alguém recebeu de uma ACADEMIA DE LETRAS o título de imortal, fico me perguntando na minha vã mortalidade o que de relevante aquele alguém contribui ou contribuiu para a literatura daquele lugar, estado ou país.

Houve um tempo em que a minha vã mortalidade e santa ingenuidade de leitora achava que os critérios, ou ao menos, dois critérios para a escolha fosse uma presumida (confirmada, óbvio) produção literária e a tal relevância levada a serio pelos tais que faziam a escolha.

Bastou dar uma olhada com mais atenção para as ACADEMIAS DE LETRAS de vários estados, bastou tropeçar em gente tão sem expressão nas letras, que minha ilusão de seriedade caiu por terra, pois encontrei devidamente imortalizados políticos que tenho lá minhas dúvidas se escreveram seus discursos.

Houve um tempo em que a minha vã mortalidade e minha santa credulidade de leitora olhava a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS com alguma sacralidade. Acreditava piamente que lá estava o Crème de La Crème (desculpem a presunção) da produção literária do Brasil. Acreditava também que uma instituição como aquela estaria acima de interesses politiqueiros, acima do desejo mesquinho da fama a qualquer custo.

A eleição do jornalista, comentarista da rádio CBN, do canal Globonews e colunista de "O Globo" Merval Pereira com “dois livros publicados (uma reunião de artigos, sozinho, e uma série de reportagens, em coautoria) que venceu com folga (25 votos a 13) o escritor Antônio Torres, 17 obras publicadas, entre romances, contos e crônicas”( Fabio Victor, folha.com) . Fábio sintetiza e não menciona os prêmios de Torres todos ligados a sua produção literária mas ilustra muito bem, a meu ver, a equivocada linha de atuação que o atual presidente da ABL, Marcos Vilaça vem adotando.

Basta dar uma olhada com mais atenção para a lista dos IMORTAIS para ver quantos acadêmicos são de outras áreas que não das LETRAS. Não que eu advogue o purismo, não que não defenda que mereçam honrarias, mas entendo que há um exagero nessa “abertura”.

Minha vã mortalidade só espera que tanta ampliação e abertura não signifique que mais dia menos dia não haja mais representantes da escrita literária naquela casa, pois aí sim, a pergunta “Academia Brasileira de Quê?” fará total sentido.
*subtítulo de reportagem da Folha de S. Paulo de 04 de junho de 2011;
** Os grifos são meus, para que fique bem ACESO o que destaco, o que penso e digo.



sábado, 4 de junho de 2011

Os três sexos



Certa vez, passeando por esses cem números de canais por assinatura, parei em uma briga de travesti, sapatão, hermafrodita, um médico especialista no assunto, um padre e um instrutor de luta livre que mais parecia um membro dos “skin head”, de tão exaltado que estava. Até que o falapau estava interessante, cada um querendo fazer justiça à sua maneira.

Eu fiquei num misto de admiração e espanto com a peça pregada pela Natureza no que dizia respeito aos três sexos envolvidos. Digo “três” porque o hermafrodita é – como direi – uma peça de traumatológico resultado. Que gênero se dá ao hermafrodita? No caso em questão, era um homem que, além da documentação necessária para identificação alfandegária, tinha também vagina e útero, não podendo, porém, fazer sexo consigo mesmo. O seu sexo mental, aquele que prevalece na hora de movimentar os cinco sentidos, era o de homem. E, sentindo-se injustiçado pela Natureza, pediu reparação a um médico-cirurgião, especialista no assunto, e submeteu-se à intervenção cirúrgica para extirpar o útero e demais partes pudendas femininas. Recebeu garantias científicas de que ficaria um homem normal. Arranjou namorada e marcou casamento. Talvez pudesse até ter filhos. Queria cinco, caso fosse possível.

A cirurgia transcorreu sem nenhum imprevisto ou contratempo. Os médicos, experientes no ramo, não tiveram dificuldades em colocar o cidadão dentro da classe gramatical substantiva comum de um gênero só. Ele não viu nada, pois foi apagado por uma dose cavalar de anestesia. Dormiu sonhando com o primeiro coito de sua vida e, por via das dúvidas, comprou duas caixas de Viagra e um pacote de camisinha.

Ao retornar feliz do apagão cirúrgico, o médico olhou para ele, sorridente, e disse que a cirurgia tinha sido um sucesso completo, e lhe mostrou um pênis que repousava tranqüilamente mergulhado em um recipiente de formol. Isso foi dito por ele.

Em Salvador, um cidadão se submeteu a uma simples cirurgia de fimose e o médico passou-lhe a cepa, colocando no lugar do pênis uma vagina a la Roberta Close.

Erro médico, quando não é fatal, é triste para o operado. Causa aleijão físico e moral. O paciente, geralmente apagado total ou parcial, confia sua vida ao saber pleno e seguro do especialista médico, não havendo margem para desconfiança ou insegurança no procedimento cirúrgico.

Fatalidade ou irresponsabilidade? Todos os dias, vemos ou lemos nos jornais algum caso de erro médico, trazendo sequelas inimagináveis – quando não a morte – para o paciente. E os médicos, de um cinismo revoltante, apenas pedem desculpas. Quando pedem. Milhares de processos cíveis e criminais pululam nas varas de Justiça, emperrada pela morosidade, corrupção e descaso com a função, ignorando-se a afirmação de Rui Barbosa: “Justiça tardia não é Justiça; é injustiça”.

Voltando ao tema central, fico aqui pensando nas adversidades biológicas ou nos erros cometidos pela Natureza. Em foco, três negações fantásticas do gênero substantivo: o masculino que era ela; o feminino que era ele, e o terceiro sexo que podia ser ele ou ser ela, dependendo da função ativa ou passiva assumida no instante do ato sexual.

O rapaz, dito hermafrodita, inseguro, parecia perdido no tempo e no espaço. A que nasceu mulher, desinibida e exibida, lembrava um estivador. O travesti, de conduta calma e meiga, tinha um ar angelical, suaves traços sensuais, voz melosa e delicada, e até o exaltado professor de luta livre, na sua falsa moral que fez corar até o padre, se arriscaria a uns amassos lascivos na maliciosa e oportuna cumplicidade noturna.

De noite todos os gatos são pardos. 


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Maurício Melo Júnior - Elogio ao velho Capone


Conta a lenda que, caminhando pelo deserto da Palestina, sem comer nem beber há quarenta dias, Jesus Cristo avistou um canavial. E não me perguntem como este canavial foi aparecer no deserto; estamos no terreno da lenda. Pois bem, o filho de Deus descansou sob a sombra modesta, sim, mas generosa e saciou a sede e a fome com o caldo doce da cana. Ao sair abençoou a planta e decretou: “Daqui o homem irá tirar algo doce para seu alimento”. Assim surgiu o açúcar, o melaço, a rapadura.

Seguindo na mesma trilha, para atanazar Cristo, Satanás entrou no mesmo canavial do mesmo deserto. A palha da cana o deixou todo lanhado, não consegui uma sombra que fosse e quando tentou se encostar encheu as costas com aquele pelinho que dói prá lascar. Para aliviar a sede quebrou uma cana e a bicha tava mais azeda que jiló. Arretado com aquilo amaldiçoou o partido: “Daqui o homem irá tirar um produto que vai lhe queimar a goela, vai lhe deixar embriagado e vai lhe desgraçar a vida”. Assim surgiu a cachaça.

A lenda tem suas injustiças. Açúcar é doce, mas engorda. Cachaça desgraça, mas pode ser degustada com moderação e prazer. Tudo é uma questão de dosagem. No mais é secundar Ascenso Ferreira: “Suco de cana-caiana tirada do alambique / pode ser prejudique / mas bebo toda sumana…” Daí é apreciar sem culpas as qualidades de uma boa cachaça.

A lenda não fala, mas com certeza na maldição do diabo constava um item falando que a descoberta se daria num país onde o governo tem mais sede que nós, os bravos consumidores. Falo aqui de uma sede metafórica, pois é mais fácil sustentar a gula de um caminhão Ford com gasolina que o governo com imposto.

Esses dias, conversando com um produtor, o cabra foi categórico. Envolvendo todos os custos – plantio, colheita, destilação, armazenagem, embalagem, transporte, salários, direitos trabalhistas, lucros, etc –, ele consegue botar na prateleira uma garrafa de cachaça por 20 reais. Quando entram os impostos federal, estadual e municipal o custo pula prá 50 reais, o preço de um uísque de qualidade. Daí ele se complica com a concorrência.

Como para todo bebedor a persistência é uma norma, apelei para a Internet. Descobri uma página maravilhosamente bem surtida e com preços atraentes. Esperançoso, iniciei as negociações. E fui até a pergunta fatal: Onde devo entregar o produto? Em Brasília, respondi. Não dá, quando chegamos aí o governo local nos morde com tanta força que não há como compensar o prejuízo. Frustrado, fiquei na sede, ruminando prá onde vai tanto imposto.

De onde ele vem, eu sei. Uma pesquisa recente informou que até o dia 25 de maio todos os brasileiros, inclusive os aposentados, trabalharam apenas para pagar impostos. E isso se repete todos os santos anos. Ou seja, a coisa é bem mais séria do que simplesmente taxar a cachaça e seus sagrados consumidores.

Constantemente leio nos jornais que os governos comem 50% da conta de luz. Outro dia caminhei uns três quilômetros acompanhando uma imensa fila de carros para descobrir que todos esperavam pacientemente para abastecer sem pagar impostos. O preço da gasolina estava por menos da metade. E até o cândido açúcar, mesmo abençoado pelo Cristo, carrega 30% de seu preço em impostos.

E tudo piora quando, voltando aos jornais, lemos sobre estradas sem asfalto, hospitais sem médicos ou remédios, escolas sem merenda, sem professores, sem motivação. E o que se faz com todo dinheiro arrecadado? Será? Bom, pode ser uma explicação. Vamos lá.

Marcos Freire era presidente da Caixa Econômica Federal e recebeu a visita de Luís Portela de Carvalho, ex-prefeito de Palmares. Junto entrou no gabinete uma comissão de cinco prefeitos gaúchos que buscava dinheiro para comprar um patrol. Vendo aquilo, Portela desdenhou: “Comprei uma esta semana com recursos próprios.” “Como, tchê?” “Eu não roubo”, respondeu na lata, para constrangimento de todos.

Tudo uma questão de formação moral. Luís Portela sabia o sentido pleno da palavra república, coisa pública, e hoje é quase uma lenda urbana em Palmares onde há um verdadeiro culto à sua atuação na prefeitura.

O velho descontrole na fiscalização e as notícias que assolam os jornais explicam por que não pude comprar minha cachaça com entrega em domicílio. Um amigo chegou a se exaltar e defendeu o Chile como exemplo de política de impostos e de soluções. “Lá o vinho é considerado alimento e tem uma taxação justa.” Bom, como não dá para considerar cachaça alimento, a menos que se queira ser excomungado pelos patrulheiros de plantão, e sabendo que a economia chilena é igual a do estado de São Paulo, o melhor é apelar para nosso sagrado jeitinho.

É preciso ciência até para tomar cachaça. E neste caso a solução foi inspirar-me no velho Al Capone. Pois bem, procurei uma amiga que trabalha em Luziânia, uma cidade goiana nas imediações do Distrito Federal. De comum acordo passei ao fornecedor o endereço de trabalho da moça. Os cabras, livres da mordida distrital, deixaram ali a preciosa encomenda e eu a apanhei aqui, do outro lado da fronteira com ela, numa ação digna de um bom e nobre sacoleiro. Tudo muito prático.

Meu gesto faria ri o velho Capone, pois não passo de um reles amador, mas também nossa Lei Seca não chega aos rigores americanos de antanho, e no mais não consigo correr do governo quando compro açúcar, abasteço o carro, pago a conta de luz. Acho que preciso estudar melhor a vida do velho gangster, afinal a taxação da cachaça ainda dá para agüentar, mas bem que gostaria de saber em que árvore nascem os impostos. Com certeza conseguiria um bom exorcista para tirar dali a praga do cramunhão.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Cineas Santos - A poesia como passaporte

De O poeta Salgado Maranhão na praia de Cruz das Almas - Maceió AL

Fosse uma história infantil, poderíamos iniciá-la assim: era uma vez um menino negro e pobre que, mesmo sem existência civil, tinha o passaporte para o coração do mundo: a poesia. Como a história é verídica, que fale o poeta: “Até os dezesseis anos de idade, eu praticamente nem tinha existência civil, já que não tinha nem sequer uma certidão de nascimento. A minha desimportância era tamanha que só a poesia poderia me resgatar do nada. Então, ela foi-se achegando a mim e eu a ela, numa simbiose tão profunda que, contrariando a lei da Física, passamos a ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço”. Vista pelo prisma da poesia, a trajetória de Salgado Maranhão pode parecer simples e até glamourosa. Eu lhes asseguro que não foi. Nascido no interior do Maranhão, filho de agricultores pobres, Salgado passou a infância “ correndo atrás do sol/pés descalços pelos matagais/ por entre cascavéis e beija-flores”. Aos 16 anos de idade, semianalfabeto, veio para Teresina onde, em pouco mais de três anos, cursou, via supletivo, o primeiro e o segundo graus. Como já trazia a poesia, em estado bruto, no embornal do peito, começou a escrever e a publicar poemas nos jornais da cidade. Mas, entre um poema e outro, era preciso ganhar o sagrado feijão de cada dia. Entre outras atividades, foi vendedor de santos, profissão pouco rentável, mas que lhe propiciou o contato enriquecedor com a população periférica de Teresina. “Rico não precisa comprar santo: já tem o paraíso na terra”, garante.
Em 1973, com a cara e a poesia, mudou-se para o Rio de Janeiro. “Um dia, percebi que, em Teresina, não havia espaço para o que eu queria fazer. Eu precisava radicalizar, romper com os laços e amarras para tentar viabilizar o projeto de me tornar um escritor. Eu precisava de contato com uma realidade que representasse um violento contraste com o mundo que, até então, eu conhecia. O Rio de Janeiro era esse extremo. Seria, para mim, uma espécie de vestibular extremado, até mesmo em matéria de sobrevivência”. O Cristo Redentor, apenas ele, o recebeu de braços abertos... Mas Salgado, curtido na aspereza, não se deixou intimidar. Meteu-se entre os que, como ele, acreditavam no poder da palavra. Tantas fez que, em 1978, à frente de um grupo de jovens poetas, publicou, pela Civilização Brasileira, Ebulição da Escrivatura, uma antologia que marcaria época. Iniciou sua carreira solo com Punhos da Serpente (1989).Depois, vieram: Palávora; O beijo da fera; Mural de ventos; Sol sanguíneo; A pelagem da tigra; Solo de gaveta e, em 2009, a antologia A cor da palavra. A poesia, a quem nunca traiu,abriu-lhe muitas portas. E vieram os prêmios: “Ribeiro Couto” (98), “Jabuti” (2009) e, este ano, “Prêmio Poesia”, da Academia Brasileira de Letras. Lido por muito, estudado nas universidades, traduzido e elogiado pela crítica especializada, Salgado Maranhão já poderia dar-se por satisfeito. Mas, a um poeta com vocação apolínea, é sempre lícito querer mais, muito mais, sempre mais ...

domingo, 29 de maio de 2011

Univesp TV: Prof. Ataliba Castilho fala sobre polêmica do livro do MEC



O Professor, linguista e gramático Ataliba Castilho é entrevistado por Ederson Granetto, da UNIVESP TV, e fala da polêmica do livro para a Educação de Jovens e Adultos do MEC. Veja a opinião de quem realmente entende e, principalmente, de quem leu o livro.





Ataliba T. de Castilho


Professor titular da Universidade de São Paulo. Foi também professor titular da Unicamp e da Unesp. Livre-Docente pela USP. Foi professor visitante na University of Texas at Austin e pesquisador de pós-doutorado na Cornell University (Estados Unidos), na Université d'Aix-Marseille (França), na University of New México (Estados Unidos) e na Università degli Studi di Padova (Itália). Dirigiu projetos como o NURC e o Gramática do Português Falado. Fundou e presidiu o Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo. Criou o Sistema de Blibiotecas e o Sistema de Arquivos da Unicamp. Presidiu, de 1983 a 1985, a Associação Brasileira de Lingüística. É autor de vários livros e dezenas de atigos publicados em revistas científicas no Brasil e no exterior.
Fonte: Editora Contexto

sábado, 28 de maio de 2011

Luís Pimentel - Nogueira, o nó na madeira

Por esses dias, no dia 5 de junho, faz 11 anos que a música brasileira perdeu um de seus mestres sagrados e consagrados: o cantor e compositor João Nogueira, autor de sambas marcantes como Nó na madeira, Espelho, Um ser de luz, Clube do samba e Baile no Elite, entre tantos, quase sempre em parceria com feras Paulo César Pinheiro, Nei Lopes ou Edil Pacheco. Carioquíssimo como poucos, João – uma das mais belas vozes do nosso cancioneiro – nasceu no Méier, no dia 12 de novembro de 1941 (faria setentinha este ano). Era também um grande contador de causos, e foi personagem de alguns, como este que me contaram e eu conto aqui:

Contam que, se apresentando em Belém do Pará, o nosso artista resolveu dar uma volta no tradicional mercado Ver o peso, onde se compra de pirarucu seco e tucupi molhado a roupas, eletrodomésticos e folhas medicinais para curar de um tudo. Queixando-se de uns “probleminhas” de saúde, Nogueira procurou uma daquelas barracas especializadas em ervas, acompanhado do sobrinho, empresário, cantor, pau-pra-toda-obra, companheiro de fé e medianeiro Didu Nogueira.´

Amado e conhecido no Brasil inteiro, João foi reconhecido pelo caboclo do balcão e começou logo a fazer os pedidos:

– Meu camarada, qual é a folha boa para tratar diabetes?
– Essa aqui – respondeu o paraense, de primeira.
– E pra circulação?
– Essa! Desentope tudo o que é veia!
– E para essas coisas de estômago, esôfago, azia pós-esbórnia, o amigo tem alguma coisa?
– Eita! É comigo mesmo. Pode cozinhar essa casquinha de pau. É tiro e queda – e foi juntando a mercadoria escolhida. – Mais alguma coisa?
– Essa folhinha aqui serve pra quê? – perguntou João.
– Espinhela caída, joanete, inflamações generalizadas, cansaço, enxaqueca. Também serve para limpar a voz. Pro senhor, então, é um santo remédio.

João Nogueira pediu também umas misturas boas pros rins, um preparado pro fígado e mais meia dúzia de cipós, mandando embrulhar tudo.

Satisfeito com a venda, mas preocupado com a saúde do freguês famoso, o caboclo comentou baixinho com Didu:

– Arre, égua, véio! O nó-na-madeira aí tá bem ruinzinho, num tá?



quinta-feira, 26 de maio de 2011

Antonio Torres - Carta aos jovens escritores de Palmeira dos Índios

Meninos, eu conto:


Foi na cidade de Alagoinhas, no interior da Bahia, que um professor chamado Carloman Carlos Borges emprestou um romance intitulado Angústia a um aluno que ele flagrou lendo um livro de poemas com este título: Amo! Assim mesmo, com ponto de exclamação! Passar de Amo! para Angústia não deixou de ser um tratamento de choque, radical mesmo, para aquele rapazinho que, ao trocar um autor dito J. G. de Araújo Jorge por um certo Graciliano Ramos, iria avançar rapidamente na sua escada ascendente de leitor, numa escalada sem volta. E de degrau em degrau, acabou se tornando um escritor. Este que agora lhes escreve, valendo-se de uma memória do seu tempo de colégio para saudar, com a mais viva emoção, todos os participantes do Concurso Jovem Escritor/ Prêmio Graciliano Ramos, em boa hora promovido pelo Instituto Federal, campus de Palmeira dos Índios.


É um momento raro para este velho escriba, pelo qual muito agradeço à professora Vanúsia Amorim: o de poder me dirigir aos jovens escritores da terra do velho Graça, aquele cuja leitura, desde meus anos mais juvenis, sempre me provocou um grande impacto, tanto pelos rigores de seus temas e de sua escrita, quanto pelo seu estilo admirável.


Conto isso para dizer que nascer em Palmeira dos Índios, como em qualquer outro lugar do estado de Alagoas, é trazer nas veias as marcas da melhor literatura que este nosso imenso país já foi capaz de produzir, e das quais o baiano aqui se sente impregnado. Porque esta é a terra também de Jorge de Lima - o poeta do qual hoje se diz haver nos legado uma obra “que permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”; de Lêdo Ivo, que será homenageado em setembro, na próxima Flimar, a Festa Literária de Marechal Deodoro - e cuja produção poética, monumental, está reunida num volume de mais de mil páginas, em edição da editora TopBooks, do Rio de Janeiro. De cepa tão vigorosa saiu ainda o jornalista e escritor Audálio Dantas – que será o patrono da próxima Bienal do Livro de Maceió, numa justa homenagem ao alagoano de Tanque D’Arca que tanto já brilhou, e continua brilhando, na imprensa e na vida artística de São Paulo, onde idealizou uma exposição de grande sucesso, chamada O chão de Graciliano, e de quem se aguarda a publicação de seu novo livro, que terá como protagonista o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que teve sua vida tragicamente interrompida nos porões da ditadura militar, um tempo negro da nossa História, do qual certamente vocês já ouviram falar.


Portanto, jovens escritores: como o lastro literário de vocês é um legado do próprio chão em que nasceram, reforço-o com duas flores do jardim do poeta português Alexandre O’Neill, os dois versos a seguir que lhes ofereço como um prêmio de incentivo às suas futuras criações:


Folha de terra, ou papel,
tudo é viver, escrever.


Mãos à obra.


Antônio Torres


Itaipava (Petrópolis, RJ), junho de 2011.





terça-feira, 24 de maio de 2011

Cineas Santos - Os meninos sanfoneiros

Já escrevi (não sei onde) que os meninos de minha aldeia, no sertão do Caracol, tínhamos um sonho recorrente: ir para São Paulo. Melhor seria: ir a São Paulo, já que não pretendíamos ficar por lá. Na verdade, “a terra da garoa” infundia-nos um misto de fascínio e medo. Mas, como os muçulmanos que não devem morrer antes de visitar a Meca, sertanejo que se preze precisa conhecer “a cidade que não pode parar”, mesmo que seja para morrer atropelado. Mais que uma cidade, São Paulo era o passaporte para muitos sonhos de consumo, o mais caro deles: uma sanfona vermelha, de preferência Scandalli. Por amor à verdade, devo confessar que não era exatamente a música que nos fascinava; a sanfona, acreditávamos, era apenas o caminho mais curto para chegar ao coração das mulheres... Por falta de qualquer instrumento que emitisse som, construíamos nossas sanfoninhas com palha de carnaúba e tocávamos música inaudível para ninguém, ou melhor, tocávamos para nossas musas invisíveis...

O sonho de me tornar sanfoneiro evaporou-se quando vi o Sivuca executando um frevo. Aquilo me pareceu coisa de mágico. Pensei comigo: por mais que eu me empenhe, não chegarei a tanto, e menos que isso não me satisfaz. Sem perder o gosto pela sanfona, desisti até mesmo de tentar. Quanto às mulheres, deixa quieto...

Essas lembranças tão caras me ocorreram ao ver, na semana passada, no meio da Praça Pedro II, dois meninos tocando sanfona como gente grande. Acompanhados por uma banda esperta, Zaqueu da Boa Hora e Sandrinho do acordeom fizeram um show de arrepiar. Tocaram tudo: de Escadaria a Feira de Mangai, com aquele atrevimento que só os moleques abusados têm. Zaqueu começou a tocar antes de perder os dentes de leite; Sandrinho ainda não os perdeu. O primeiro é natural do interior de Boa Hora; o segundo é sertanejo de Dom Inocêncio. Unidos pela paixão da sanfona, fizeram-se amigos, parceiros e tocam como se estivessem dialogando, com alegria, inventividade e, acima de tudo, competência. São os meninos sanfoneiros do Piauí.

Curiosamente, os dois cresceram vendo e ouvindo o chamado “forró de plástico”, com toda aquela parafernália de luz, cor e bundas em profusão. A despeito disso, preferem seguir as pegadas de Luiz Gonzaga, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Osvaldinho, Camarão e outras feras batizadas. O cantor Chico César pode ficar sossegado: o “forró de plástico” é um modismo com prazo de validade vencido; o forró autêntico, puxado a sanfona chiadeira continuará sendo o sonho dos meninos sertanejos. Zaqueu e Sandrinho que o digam!






sexta-feira, 20 de maio de 2011

Edna Lopes - Senhora Dona Norma Culta



De Exposição Menas, o certo do errado, o errado do certo


Permita-me que me apresente: Sou Edna Lopes, professora. Tenho 47 anos, 20 e tantos dos quais como profissional da Educação. Nasci de pai agricultor, mas dono de seu pedaço de chão e de mãe professora. Aos quatro anos aprendi a ler, aos sete entrei numa escola pública, mesmo ano em que conheci a luz elétrica. Na escola pública terminei o 2º grau aos dezessete e aos dezoito entrei numa universidade pública, colando grau aos vinte dois. Fiz pós -graduação em Educação Popular e também em Coordenação Pedagógica para a Educação Básica, sendo aprovada nos dois únicos concursos públicos que já fiz na vida, que me garantem o sustento e a satisfação de atuar numa profissão, se não prestigiada, mas extremamente importante para o desenvolvimento de um povo, de uma nação.

Tudo isso para lhe dizer que antes, bem antes de me graduar, já era professora em classes de crianças e depois em classes de jovens, de adultos e idosos esperançosos pela melhoria de suas vidas, de suas profissões através da educação, portanto minha experiência não só veio dos meus diplomas, nem dos tantos livros que li, nem dos congressos que participei e participo.

Tudo isso para lhe dizer também que nunca, nunquinha, meu fazer profissional se arvorou em assinar laudo, passar receita, fazer planta de casa, apresentar noticiário, instruir processo, construir casa ou fabricar móveis, e me causa espécie ver que, EM SEU NOME, especialistas de ocasião, opinam sobre uma realidade que conhecem talvez de ouvir falar, afinal o universo de pessoas adultas analfabetas ou analfabetas funcionais certamente está há anos luz da classe dirigente e intelectualizada desse país. Dos “imortais” então, nem se fala!

Lamento que EM SEU NOME se use “um texto, sem um contexto, para um pretexto”. Lamento mas ao mesmo tempo fico feliz porque a real face de um país se revela! O quanto somos manipuláveis, superficiais! O quanto somos intolerantes, impacientes!

Senhora Dona Norma Culta, nenhum, mas NENHUM PROFISSIONAL SÉRIO, seja ele professor, escritor, jornalista ou algo que o valha jamais irá dizer que SEU LUGAR não é também a escola. A sala de aula, espaço da pluralidade e do conhecimento é o lugar do acolhimento de TODAS as variantes da língua que ali devem ser expostas, ressignificadas, avaliadas, compreendidas, aprendidas.
Que fique bem claro: não sou da turma de quem quer que seja e não formulo opinião baseada em noticiários tendenciosos, em notas ou pronunciamentos superficiais, açodados, mas não me espanto com quem o faz. Quem é capaz de condecorar com sua mais alta honraria pessoas que NADA fizeram pela “flor do Lácio” é capaz de muitos mais equívocos e quem viver verá.

A senhora continuará sendo a VARIANTE DE PRESTIGIO, fique tranquila! E jamais duvide o quanto sou sua defensora, o quanto me esforço para que quem comigo caminha compreenda-a e utilize-a quando tiver que se comunicar falando ou escrevendo.

Mas reitero meu posicionamento: quem lhe defende como única só precisa ter ouvidos de ouvir e olhos de ver, não é? Que pena que não aprenderam, pra valer mesmo, aprender de apreender, de assimilar que a língua é de quem a usa e não de bolorentas gramáticas, não de arrogantes portadores de diplomas, ou de imortalidade duvidosa.

Quero concluir minha prosa com a Senhora lembrando um lindo poema do imortal, ao meu coração, Solano Trindade: “Senhora Gramática / perdoai os meus pecados gramaticais. / Se não perdoardes senhora / eu errarei mais.”

Senhora Dona Norma Culta, despeço-me. Serei aprendiz sempre, pois continuarei errando no intuito de acertar.

A foto é da exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo, no Museu da Língua Portuguesa em 2010...A língua mais viva que nunca, provocante, provocando...


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cineas Santos - A Beleza da Partilha



No domingo passado, um jovem sacerdote se esforçava para seduzir os fiéis com um sermão sobre o encontro de Cristo com os Discípulos de Emaús. Embora o tema seja fascinante, a palavra de Deus não parecia frutificar. Lembrei-me do Sermão da Sexagésima, de Pe. Vieira: “Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de um dos três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus”. Digamos que a culpa fosse dos ouvintes... O certo é que na passagem em que Cristo reparte o pão e, finalmente, é reconhecido pelos dois discípulos, fiquei emocionado. Impossível ignorar a força da palavra partilha.

Foi aí que o pensamento me levou a Guaribas, no sofrido sertão do Piauí. Eu estava fazendo um trabalho por lá, quando apareceu a equipe de uma TV espanhola. Depois de uma prosa em portunhol, um dos jornalistas me perguntou: professor, o que distingue o piauiense dos demais brasileiros? Respondi de bate-pronto: a hospitalidade, a generosidade. O jornalista, homem de meia idade, insistiu: o senhor poderia ser mais explícito? Limitei-me a dizer: o senhor está no município mais pobre do país. Vá à casa do mais humilde dos moradores de Guaribas e ele não hesitará em matar a única galinha da família para oferecer-lhe um prato de comida decente. E, se nada tiver, há de agraciá-lo com o seu melhor sorriso. O cidadão assentiu com a cabeça e afirmou: então é por isso que aonde chego sempre me oferecem alguma coisa. E mais não disse, por desnecessário.

Essa lembrança remeteu-me a outra bem mais recente. No bairro Ininga, onde moro, presenciei uma cena inesquecível. Meio-dia, sol a pino, um casal agasalhou-se à sombra de uma amendoeira. O homem era carroceiro, idade inescrutável, gestos lentos e cara sofrida. A mulher, catadora de papel, era rechonchuda, ativa, faladeira. Não sei que vínculo afetivo os unia. De repente, o carroceiro encostou-se na parede do muro, esticou as pernas e acendeu um cigarro. A mulher, sempre rindo e falando, abriu um saco de plástico escuro de onde retirou uma quentinha, dessas que se vendem nas biroscas da vida. Tirou um lenço colorido que trazia amarrado à cintura e o colocou na calçada como se fosse uma toalha. Em seguida, abriu a quentinha e, com um gesto acolhedor, convidou o carroceiro a compartilhar o grude. Como só havia uma colher, os dois passaram também a dividi-la. Cada um, depois da colherada, passava a ferramenta ao outro. Só me lembro de ter visto algo assim no sertão do Caracol onde faltavam comida e colher.

Por um instante, parei para apreciar aquela cena comovente: um casal extremamente pobre dividindo o que mal daria para alimentar um deles. Não me lembro de ter visto nada mais belo em matéria de partilha. Enquanto me afastava, pensei: Cristo não morreu em vão: alguma coisa efetivamente ficou.



quarta-feira, 18 de maio de 2011

Eis o quadro da educação no país


Professora do Rio Grande do Norte desabafa a respeito dos baixos salários dos professores e das salas de aula superlotadas em audiência pública na Assembleia Legisativa do Estado. É um discurso muito coerente com a realidade da Educação no país. Aqui em Alagoas o quadro é ainda pior. Vale a pena ver este vídeo.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Maurício Melo Júnior - A mentalidade da desconstrução



A televisão ensaiava algumas cores. Era um borrão onde o vermelho agredia nossa visão espantada, encantada, perplexa. E o programa de entretenimento, entre muitos escuros e poucos claros, mostrava um israelita que entortava garfos e facas, o paranormal Uri Geller. Era um fenômeno. Com o poder da mente era capaz de quase tudo, contava.

Servindo ao Exército de Israel precisou saltar de paraquedas carregando uma bazuca. Para fazer um pouso perfeito, tirou todo miolo da arma. Já no avião lembrou que precisava atirar, e como faria com o equipamento desmontado? Usou a mente. Pousou com elegância, atirou e – pasmem – o disparo mereceu elogios e, certamente, tapinhas nas costas. Ao chegar ao alojamento as peças da bazuca desmontada estavam quentes como se realmente tivessem sido usadas.

Diante disso ficava fácil acreditar no depoimento de vários telespectadores que garantiam, atendendo ao pedido do paranormal, terem visto o liquidificador posto sobre a televisão ser ativado mesmo estando desligado da tomada. Minha descrença é que nunca me permitiu acreditar nas proezas desse herói destruidor de faqueiros e muito menos botar qualquer aparelho elétrico sobre a TV.

Talvez tenha perdido uma grande oportunidade de renovar meus valores, não sei.

Fato é que vinha eu de um tempo de descrenças, “um tempo onde o tempo não se esquece e os trovões eram roucos de se ouvir”, como cantava Zé Ramalho. Tempo de destruições homéricas. No Recife o prefeito Augusto Lucena, para abrir a Avenida Dantas Barreto, como um Pereira Passos moderno, destruiu casarões antigos e até a igreja dos Martírios. Diante da grita dos preservacionistas, declarou: “Se eu fosse prefeito de Roma demolia o Coliseu, um trambolho sem qualquer utilidade.”

O senso da destruição cantava em todos os recantos. E sempre com o mote monocórdio. Destruir para construir. No Rio de Janeiro a vítima desta estranha batalha foi o Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal. Um prédio belíssimo em sua exuberância arquitetônica. Caiu por determinação do presidente Emilio Garrastazu Médici para se construir o metrô carioca que, indiferente, caminha sob o vazio da antiga praça, do velho abrigo do palácio cujos lustres e colunas góticas decoram churrasqueiras em Brasília.

O sentido de um tempo. O Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, construiu uma reforma educacional que desconstruiu todo sistema de educação pública. Priorizou a formação universitária que, de inicio, abrigou estudantes das excelentes escolas públicas, mas bastaram poucos anos para que essas escolas, minguadas, não mais conseguissem fazer seus alunos vencerem o monstro do vestibular. E nos pátios paupérrimos cantava-se: “Este é um país que vai pra frente…”

Para seguir em frente se precisa de estradas, não de escolas. “Governar é construir estradas”, já dizia Washington Luís. Então nada mais útil que uma infindável via ligando Recife a Manaus, a Transamazônica. E começaram tudo derrubando a floresta e erguendo agrovilas. Homens sem terra para um lugar de muita terra e poucos homens. Só depois é que descobriram que a terra não servia para o cultivo e, abandonadas, a estrada sem asfalto e as agrovilas sem homens foram retomadas pela secular floresta.

Certamente foi a força da natureza que não deixou o país ir adiante. Os governantes, com a grandeza de suas ideias, otimistas espelhos de Uri Geller, reagiram destruindo Sete Quedas para erguer a Hidroelétrica de Itaipu, a maior do mundo, nos orgulhávamos então. A natureza deu o troco. Quase destruiu pela garra das águas São José da Laje, nas Alagoas, a cidade que um dia aninhou Noel Nutels, um sanitarista que nos ensinou a respeitar os índios.

Eram águas muito bravas que chegavam em Palmares invadindo praças e ruas.

Numa dessas cheganças o prefeito José Pretestato de Santana, o seu Dedé, estava limpando a casa invadida pelo barro imenso que entrava pela porta do quintal, quando chegou o governador Moura Cavalcante para vistoriar a tragédia. “Prefeito, fique tranquilo. Vou mandar uma verba gorda e o senhor pode deixar essa casa que lhe tem dado tanto desassossego.” Seu Dedé continuou morando na mesma casa e comercializando na mesma venda do Beco do Mijo. Desprezou o canto da sereia que desconstruía princípios morais e deve ter usado o dinheiro no que devia, pois morreu como o homem remediado que sempre foi.

Igrejas, monumentos, casas, cidades, princípios, homens e mulheres. Durante duas décadas assistimos, não impassíveis, prevalecer a cultura da desconstrução. Pelos riachos da vida desceram muito mais que o boi morto visto pelo poeta Manuel Bandeira. Foi a crença de toda uma geração que se carregou nessa enxurrada.

Ainda assim resistíamos falando mal do governo pelos botecos. Quando era possível votávamos na oposição e alimentávamos nossa porção demolidora. Dizíamos horrores dos mandatários empoleirados no mando, mas a força era tão miúda que somente podíamos secundar Pinto do Monteiro diante de um soldado que botou um couro de rato em sua bandeja: “Derrubar eu não derrubo / porque a força é pequena. / Matar eu não vou matar / porque a justiça condena. / Mas Lampião ter morrido / oh coisa de fazer pena.”

E afinal o que construímos com as forças mentais e musculares que sobraram destes destroços?

Só outra crônica para responder.


domingo, 15 de maio de 2011

A Biblioteca Pública Antonio Torres e a violência





A Biblioteca Pública Antonio Torres está se tornando um centro de referência de leitura da região. Diariamente centenas de estudantes, pesquisadores ou apenas leitores procuram a biblioteca em busca de um bom livro. Por ser o patrono, Antonio Torres, um escritor conhecido internacionalmente, a Biblioteca não para de receber doações, tendo como uma de suas mantenedoras a Fundação Casa de Jorge Amado.

Não é de agora que o também escritor da terra, Luiz Eudes, luta para que a biblioteca tenha sua própria sede, inclusive, em meados da década passada, ele era secretário da Cultura e conseguiu verba da Petrobrás para tal fim, ficando apenas a Prefeitura de ceder o local, mas, por um desses reveses da vida, armaram contra o prefeito de então, a Oposição assumiu e a cidade mergulhou num histórico de corrupção jamais testemunhado pelos viventes do lugar.

Mas, depois de Luiz Eudes, nenhum outro secretário entrou com proposta ou propósito benéfico para a Cultura local. Ao contrário, o sucessor de Luiz Eudes deu fim ao acervo da biblioteca, emprestando livros aos amigos e correligionários e não cuidando em pegá-los de volta. Quando a atual administração municipal assumiu, Luiz Eudes tornou-se secretário de Finanças, mas, por sorte dos leitores da terra, ficou também responsável pela biblioteca e ele botou os funcionários para recuperar o acervo perdido.

Juntou-se a Luiz Eudes a professora e poetisa Cristiana Alves, uma entusiasta da biblioteca. Mestranda em Crítica Cultural na Uneb de Alagoinhas, ela tem uma visão avançada a respeito de livros, leitores e leitura. Alguns dos seus alunos já foram premiados em concursos literários e uma aluna participou da última bienal do livro de Salvador com uma antologia poética.

Ao colocar a biblioteca parede e meia com a agência do Banco do Brasil, o prefeito assumiu o risco de colocar os funcionários e os frequentadores da mesma à mercê da sanha criminosa. Imaginemos que esse assalto da madrugada de ontem tivesse acontecido à luz do dia, como nas quatro vezes anteriores em que esta mesma agência foi assaltada. Mesmo não sendo a intenção dos quadrilheiros machucar alguém, teriam dinamitado uma biblioteca cheia de gente inocente, principalmente, crianças e adolescentes que estudam no Grupo Escolar situado quase em frente e usam a biblioteca como fonte de pesquisa.

Agora, senhor prefeito, chegou a hora de refazer vossa santa visão equivocada de festas e festejos na Soterópolis e falar o que o bom senso exige e que o povo tanto espera: “Se os estudantes de Salvador têm biblioteca segura, por que os de Sátiro Dias não podem ter?” Garanto a vossa excelência que uma sede segura e decente para a biblioteca, com auditório e sala de vídeo, custa muito menos, mas muito menos mesmo, do que vossa excelência paga a uma banda dessas para atrair os ladrões para a terrinha.

No dia da festa ou no replay. Como na madrugada de ontem. Quem procurar a cidade de Sátiro Dias no Google, dá de cara com a seguinte informação do Wikipédia:

“A cidade de Sátiro Dias é famosa por suas festas, como: padroeira da cidade que é patronada por Nossa Senhora do Amparo e ocorre no dia 2 de fevereiro, festejos juninos, aniversário da cidade (14 de agosto) e a sua vaquejada. Ao longo de sua história foi palco para a apresentação de vários artistas nacionais como: Ivete Sangalo, Babado Novo, Bruno & Marrone, Amado Batista, Harmonia do Samba, Aviões do Forró, Edson Gomes, Raça Negra, Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Alcymar Monteiro, Adelmário Coelho, Arreio de Ouro, Estakazero, Reginaldo Rossi, É o Tchan, Cavaleiros do Forró, Pagod'art, Pedro & Thiago, Cheiro de Amor, Patchanka, entre outros.”

Todos esses artistas de cachê de ouro foram pagos com os parcos recursos públicos nas três gestões do atual prefeito, na verdade, um bom festejador. E ainda está faltando uma porção de gente boa, como Psirico e companhia limitada. Agora eu pergunto aos cidadãos do Junco: quanto custou esses cachês milionários e quanto custa uma sede para a biblioteca? Qual benefício se adquiriu com esses artistas midiáticos e quais benefícios traz à população o funcionamento adequado da biblioteca?

Infelizmente a cidade de Sátiro Dias deixou de ser “famosa por suas festas” para se tornar famosa nas páginas policiais. Felizmente, até agora não houve vítimas fatais, mas até quando se lidará com ladrões bonzinhos?