domingo, 26 de agosto de 2012

Cineas Santos - Sanfonas na aridez da caatinga


                          
         O mundo era pequeno: acabava logo ali depois da roça de seu Abraão. As aspirações eram rasas e as chuvas, quando vinham, adoçavam a vida. Em matéria de sonhos, um se fazia recorrente: ir a São Paulo, ganhar um dinheiro graúdo, comprar uma sanfona vistosa e voltar correndo pro sertão. Na verdade, a sanfona – acreditávamos – era o caminho mais curto para chegar ao coração das mulheres. Assim, foram-se os tios, os primos, os irmãos, os amigos... Uns voltaram com suas sanfonas escandalosas; outros se em notícia ruim.. Com a indeclinável vocação para pedra, fui ficando. Assustavam-me os versos: “São Paulo tem muito ouro/corre prata pelo chão/o dinheiro corre tanto/que não posso pegar não”, na voz de seu Luiz. Acabei encalhado na Chapada do Corisco.

         O tempo e os contratempos encarregaram-se de demonstrar que eu jamais seria um sanfoneiro. Desisti de vez no dia em que ouvi o Sivuca solando um choro. Impossível chegar àquele nível de excelência; menos,  não me interessava. Contentei-me em ser apenas um apreciador do toque das sanfonas. 

         Vai que, no ano passado, a profª Samara Negreiros me propôs realizarmos um festival de sanfona em São Raimundo Nonato. Fiz apenas uma exigência: sem “forro de plástico”. Ela relutou (havia o receio de não haver público), mas acabou concordando. Assim, em meio à festa do padroeiro da cidade, realizamos a primeira edição do Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato, uma festa inesquecível. Como não havia nenhuma das bandas “calcinha” presentes na praça, as famílias lotaram o espaço para ouvir João Cláudio Moreno, Valor de Pi, Chagas Vale, Ivan Silva, Josué Costa e Adelson Viana, além dos sanfoneiros da terra. A Avenida dos Estudantes não coube a plateia. A melhor parte: não se registrou um único incidente capaz de conspurcar a imagem da festa.

         Este ano, sob as bênçãos de São Raimundo, repetimos a festa com um brilho ainda maior. Entre as atrações do 2º Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato, marcaram presença: Clã Brasil, Waldonys, Orquestra Tamoio, Vagner Ribeiro, João Cláudio, Valdemar do Acordeom, entre outros. Impossível não dar certo.

         Preocupados com o caráter educativo do Festival, os organizadores, nesta edição, ofereceram aos professores e estudantes são-raimundenses oficinas de literatura de cordel, xilogravura, rabeca, sanfona, violão, literatura piauiense, construção de bonecos. De quebra, exibiram um varal de poesias com textos das figuras mais representativas da moderna poesia piauiense. Contando com o patrocínio da OI, do Governo do Estado e da Prefeitura de São Raimundo Nonato, o festival demonstra claramente que o público sabe distinguir a boa música da vulgaridade que assola o país. Não fazemos por menos: PÉROLAS AO POVO!



quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Luís Pimentel - Aldir Blanc é carioca da gema



      Aldir Blanc é uma glória das letras cariocas. Bom de se ler e de se ouvir, bom de se esbaldar de rir, bom de se aldir”. Esta é a opinião de outra glória das letras e da música cariocas, Chico Buarque, também bom de se ler, de se ouvir e de se aldir.

     “Eu gostaria de escrever como o Aldir”. Quem gostaria de escrever como o Aldir? Ivan Lessa, simplesmente, cronista que escreve como ninguém. Resumindo: Aldir Blanc é aquele cara que a gente quer ser quando crescer, quando aprender a viver, quando souber escrever. Aldir Blanc Mendes, que já foi chamado de Proust de Vila Isabel, esse Stanislaw da Muda, Guimarães da Tijuca, é uma flor de amigo e de poeta, uma Rosa de Pessoa. Tem a Zona Norte de sua cidade cravada no peito esquerdo, ao lado do escudo do Vasco. É um dos maiores cariocas que se conhece.

     “Eu sou do Estácio, mermão! Pensa que é fácil? Né não”, já berrou numa letra de samba. Ninguém vem da Maia de Lacerda impunemente. Aldir Blanc nasceu no mês de setembro de todas as primaveras, no dia 2, no ano de 1946. Citar suas músicas é covardia. É desnecessário. Só meia dúzia, para não cansar: O bêbado e a equilibrista, Mestre-sala dos mares, Kid Cavaquinho, Dois pra lá dois pra cá, Saudades da Guanabara, Catavento e girassol. Parceiros? Só alguns: João Bosco, Maurício Tapajós, Moacyr Luz, Guinga, Ivan Lins, Cristóvão Bastos, Paulinho da Viola...

     Aldir é também um escritor (contista, cronista e poeta) de alto gabarito. Seu texto gostoso e rascante (que nem os melhores vinhos) estreou no Pasquim, na década de 1970, onde publicou as crônicas mais tarde reunidas nos livros Rua dos Artistas e arredores e Porta de tinturaria (lançados em primeira edição pela Codecri). Após o fechamento do Pasquim, Blanc levou suas crônicas de humor ferino para revistas como a Playboy e os jornais Tribuna da Imprensa, Ultima Hora, O Estado de São Paulo, O Dia (onde manteve colaboração semanal por quase dez anos ) e, hoje, em O Globo.

     Aldir colaborou com a revista Bundas, do primeiro ao último número, e esteve presente na maioria das edições d´ Opasquim21, desde a edição de número zero até o fechamento do jornal, em 2004. Reuniu crônicas também nos livros Brasil passado a sujo (Geração Editorial) e Um cara bacana na décima nona (Record). Procurem esses livros, para entender por que o seu texto encanta escritores como Ivan Lessa e Chico Buarque. E ouçam todas as suas músicas, sempre.


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Dia do Folclore


FOLCLORE

I

Lá nas terras dos Dantas
Não tem rio nem tem anta.
Tem o Cruzeiro dos Montes
Em plena linha do horizonte.
Reinam cavalos encantados
Caiporas e sacis peraltados.
O zumbi e o seu pio estridente
Chupa o ouvido do imprevidente.
Não é folclore se falar do fogo-fátuo
Muitos foram os que o viram de fato.
Mulher de padre é mula-sem-cabeça
Vagando pela estrada tão logo anoiteça.
O filho que da mãe não tem gratidão
É o lobisomem da Sexta-Feira da Paixão.
O saci vive na mata a azucrinar
O caçador que ousa lhe perturbar.
O “vulto” pode ser a própria sombra
Do sertanejo que com tudo se assombra.

II

Lá na terra dos Dantas
Não tem rio nem tem anta.
Tem o mito e suas lendas a confundir
O pio da coruja com o canto do zumbi.
A caipora na mata precisando de fumo
E o caçador desprevenido perdendo o rumo.
A mula-sem-cabeça correndo sem parar
Atrás de um padre para se confessar.
O lobisomem em noite de lua cheia
Espojando-se no campo de areia.
O saci precisando seu cachimbo acender
E o inditoso deve um fósforo oferecer.
O fogo-fátuo e sua breve aparição
Em flashes de luz de assustar o coração.
O “vulto” que não parece perigoso
Mescla folclore e história de Trancoso.

Assim é o imaginário popular do sertão
Mitos e lendas fervilhando em profusão.



domingo, 19 de agosto de 2012

Cineas Santos - À sombra do Imperador

Todos os anos, num ritual de há tempos, tiro uma manhã de agosto para reverenciar o Imperador da Chapada. Chego cedo, sento-me na calçada e, em silêncio, sob a suave chuva de flores, fico escutando a estranha sinfonia de insetos e pássaros. Quando a luz me parece adequada, começo a fotografá-lo, atividade extremamente prazerosa. Indiferente ao meu encantamento, o  Imperador, prodigamente, derrama ouro na calçada. Enquanto fotografo, aproveito  para observar como se comportam os que passam  sobre o tapete amarelo. As reações são as mais curiosas: algumas pessoas, ao me reconhecer, fazem algum comentário sobre a beleza do cenário, outras me olham com um sorriso maroto; a maioria não toma conhecimento nem das flores nem de mim. Encharcado de beleza, tento captar com as lentes a magia do momento. Impossível não lembrar os versos de Chico Buarque: “Uns sorrindo fazem pouco, / outros me tomam por louco”... Deve parecer estranho aos passantes a figura daquele ancião “perdendo tempo” com coisinhas desimportantes.

            Na semana passada, eu cumpria o meu ritual quando, no início da calçada, despontaram duas jovens. Com absoluta indiferença caminhavam sobre o tapete de flores. Uma delas, ao me ver, esboçou um sorriso discreto. Não me contive:  irmãzinhas, sou de um tempo em que as moças, ao passarem por uma árvore florida, recolhiam pelo menos uma flor para enfeitar os cabelos...  Com um sorriso gracioso, a moça limitou-se a dizer: “Professor, já não se fazem moças como antigamente”. Não deixei de elogiar a concordância verbal adequada. Na vida, não se pode ter tudo...

            Para quem ainda não sabe, Imperador da Chapada é o título que conferi ao mais belo ipê de Teresina. Situado no cruzamento das ruas  Coelho Rodrigues com 1º de Maio, foi plantado, há uns cinquenta anos, pelo prof. Carlos Pires Rabelo, de saudosa memória, no jardim de sua casa. Independentemente da intensidade ou da escassez das chuvas, o ipê, sempre no início de agosto, com sua  florada esplendente,  enobrece um pedacinho da cidade. Os que apreciam a beleza agradecem.

            Terminada a sessão de fotos, já me preparava para retirar-me quando passou por mim um casal jovem com dois filhos: um garoto de uns doze anos de idade e uma menininha de uns cinco. Pareciam apressados. O pai, à frente do grupo, marcava o ritmo da caminhada. De repente, a garotinha agachou-se, encheu as mãos de flores e, feliz da vida, entrego-as à mãe.  Com aspereza, a cidadã bateu nas mãos da criança derrubando o punhado de flores, secundando o gesto com a repreensão: “Quantas vezes já te disse para não pegar porcaria no chão!”. Envergonhada, a menina me lançou um olhar triste como se buscasse minha cumplicidade. Limitei-me a fazer um leve aceno com a cabeça. Ela  rascunhou um sorriso no rosto, “limpou” as mãozinhas no vestido de chita e aproximou-se do irmão. Desencantado, refiz o comentário da jovem que me sorriu: na verdade, já não se fazem mães como antigamente...

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Maceió, o Junco e o IDEB


O velho Junco, hoje, Sátiro Dias, município de pouco menos de vinte mil habitantes com um pé encravado no sertão norte baiano, festeja o que muitas capitais metidas a besta não conseguiram: superar a meta nacional do IDEB para o Ensino Fundamental, a menina dos olhos de qualquer governante municipal.

A cidade acordou do marasmo nos anos 1980, quando um padre alemão chegou à cidade e deu as boas notícias. Disse o padre, na sua primeira homilia em missa dominical, conhecer a cidade muito antes de pôr os pés no Brasil, quando uma revista alemã mandou seus repórteres para vasculhar a intimidade da terra do escritor Antonio Torres. Apesar de falar com um forte sotaque alemão, o povo compreendeu que o velho Junco não era só um ponto cravado no mapa do Brasil: estufou o peito orgulhosamente, a linda juventude interessou-se mais pela leitura e os políticos passaram a convidar o escritor para os eventos do município. Logo se instalou o Ensino Médio, depois o Superior, e o velho Junco ganhou ares de pequena cidade importante no meio da caatinga.

Décadas depois, os professores compreenderam que podiam fazer a diferença, foram à luta e conseguiram reverter um quadro inimaginável cinco anos atrás. Luta titânica, heroica até, por se tratar da lida com alunos sem suporte técnico-alimentar além dos muros da escola.

Há quem afirme que o sucesso no IDEB nos confins da Bahia deve-se exclusivamente aos professores; outros acham que é ação única dos governantes. Mas, na verdade, a obra é orquestração dos dois. Sem apoio logístico os professores não andam; sem o apoio dos professores, o administrador desanda. 

Vejam a situação da província onde moro: Maceió é uma capital que paga um dos melhores salários do país aos professores, o corpo docente é composto praticamente por profissionais de nível superior, no entanto, não conseguiu atingir a meta do MEC. Com o prefeito mais preocupado em cantar forró numa visgueira qualquer do que visitar uma escola, ao longo dos seus oito anos de mandato trocou de secretário de Educação do mesmo jeito que trocou de camisa, sem se preocupar com o destino dos deserdados da sorte. A cada novo secretário, uma nova filosofia do Caos; a cada novo secretário, uma metodologia diferente para se perfilar os bajuladores. 

O IDEB do Junco de 2011 superou o de 2005 em mais de cem por cento. Em 2005 a Educação era regida por uma secretária de outra cidade e que tinha vergonha de mostrar o crachá do município a que servia nos eventos nacionais. Então, como se esperar grandes vitórias se a principal responsável pela pasta se sentia ultrajada em seus brios narcisistas?
Deste modo, a Educação de um município é como uma orquestra em execução, a conciliação ritmada de diferentes instrumentos ao movimento harmônico da batuta do maestro. Se um desafina, a peça inteira fica comprometida.

Parabéns ao prefeito, ao secretário de Educação, aos professores e alunos, estes, os principais atores na peça exibida. Que em 2013 o êxito seja maior, para satisfação daqueles pequenos viventes que andam léguas no sol ou na lama em busca de cidadania. 


sábado, 11 de agosto de 2012

Cineas Santos - As múltiplas belezas do Poti


            Fazia um tempinho  que eu planejava ir a Buriti dos Montes, a 240 km de Teresina, para conhecer o Cânion do Poti, notável por sua insólita beleza. No final da semana passada, na companhia do cinegrafista Ezequiel Sá, resolvi encarar a árdua empreitada. Até Buriti, nenhum problema: “a estrada está um tapete”, como afirmam, orgulhosos, os nativos. Da sede do município a Conceição dos Marreiros, onde se encontram as famosas gravuras rupestres, as coisas se complicam. São pouco mais de 60 km de  carreiros, para usar a expressão adequada. Buracos, ladeiras, poeira e desolação. Sem um veículo 4X4 e um guia experiente, o aventureiro não chegará a lugar algum.

            Na empreitada, contamos com o apoio da Secretaria de Turismo de Buriti do Montes e com a experiência de Benedito Rubens, coordenador de turismo do município, que conhece cada palmo dos 180 km do cânion. Conhece mais: na década de 80, a pé e em botes infláveis, fez o percurso do Poti, das nascentes, no Ceará, à foz, em Teresina. Gastou exatos 65 dias. A aventura lhe rendeu centenas de fotos e um arsenal de histórias inacreditáveis. Pouco antes de Chegar a Conceição, Rubens nos advertiu: “Para onde vamos, não há energia elétrica, telefone, computador nem pousada com um mínimo de conforto. Ficaremos alojados no prédio da escolinha da comunidade”. Imediatamente me veio à mente o verso de Riacho do Navio: “sem rádio e sem notícias da terra civilizada”. Nosso guia não exagerou: Conceição dos Marreiros é um punhado de casas no meio do nada. Mas, para meu desespero, por volta das 21h, logo após nossa chegada, apareceu um cidadão numa caminhonete Hilux ,com uma caixa de som maior que a caçamba do veículo. E tome “ Ai! Ai! Ai!, assim você mata  o papai” e outras pérolas  da  canalhice musical que assola o país.  Para descansar o juízo, tivemos de pedir abrigo na casa de um dos moradores do povoado. A noite seguinte foi um pouco pior: alugaram um gerador, contrataram uma banda de forró de plástico e  consumiram rios de cerveja. Fugimos para outra casinha na periferia do arruado. Dormimos ( na verdade, passamos a noite ) sob uma latada,  curtindo  música brega, num frio de doer as articulações. Desolado, descobri que, hoje, estamos condenados ao emburrecimento compulsório onde quer que estejamos.

            A despeito disso, foi a aventura mais fascinante de que participei. Rubens, atencioso, competente e solícito, nos levou a sítios ainda pouco conhecidos onde existem as mais belas gravuras que já vi. Estima-se que aquelas inscrições tenham algo em torno de cinco mil anos de existência. Não são desenhos; são gravuras esculpidas nas rochas de arenito. Um laboratório de arqueologia a céu aberto. Independentemente da importância arqueológica dos sítios, o Cânion do Poti é magnífico, para dizer o mínimo.

            Ao contrário do que afirmou o poeta Dobal em “Apontamentos para um poema do rio Poty”, o sofrido “rio dos camarões” tem história, memória e, principalmente, belezas indescritíveis. É triste afirmar isso, mas é verdade: o Piauí não faz por merecer o que a Natureza nos deu de graça.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Nunca se fez tanto mal a Alagoas

O governador alagoano, do PSDB, tem como slogan do seu governo a frase NUNCA SE FEZ TANTO POR ALAGOAS. Um slogan desse é de deixar o cidadão cheio de indagações e aflições, pois, diante do quadro caótico que vivemos, isso é puro cinismo. Alagoas, depois do governo Teotônio Vilela Filho, ficou boa em tudo que não presta: pior IDH do país, estado mais violento da nação, maior índice de analfabetismo do Brasil, campeão em desemprego, Saúde na UTI e, coisa inédita, até hoje milhares de dezenas de alunos ainda não iniciaram o ano letivo de 2012. Nos últimos dias o Secretário de Educação tem vindo a público nos sites sociais justificar o injustificável e dizer que isso é culpa da Gazeta de Alagoas e do Sindicato dos Trabalhadores da Educação. O primeiro, por pertencer a Collor; o segundo, por criticar a ineficiência da Pasta. Agora, depois que a Rede Globo de Televisão mostrou o caos administrativo a todo o país, quero ver que desculpas ele vai dar.

Enquanto isso, a mídia paga continua a ostentar a propaganda enganosa de que nunca se fez tanto por Alagoas. Ele, o governo, propagar a mentira, é justificável. Faz parte do jogo político. Mas você cidadão ou cidadã, que vive o caos nosso de cada dia, sem segurança, sem saúde, sem educação, sem emprego, acreditar nessa falácia, é sinal de que o fim do mundo está próximo.


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Luís Pimentel - No cinema


     – O que é isto?
     – Um passaporte. Ele está dizendo para ela que vai embora, para sempre.
     – Não disfarça.
     – Verdade. Parece que ele não gosta mais dela.
     – Não estou falando do filme, seu sonso. Estou perguntando o que é isto aqui, entre as minhas pernas.
     – Minha mão, ora.
     – Você não pediu permissão.
     – E precisa?
     – Saiba que não sou dessas.
     – Já sei. Também não gosto dessas.
     – Não está me agradando.
     – Tudo bem. Podemos sair e procurar outro cinema. Tem um filme legal no Estação Botafogo.
     – Não se faça de bobo.
     – Eu te amo.
     – Que ridículo!
     – Eu?
     – Não. O sujeito do filme. Olha que bigodinho mais cafona.
– Também acho.
     – Eu vou gritar.
     – Não faça isso, vamos evitar o escândalo.
     – Então, para.
     – Não consigo.
     – Por quê?
     – Minha mão está presa entre as suas pernas.
     – Tira a mão daí!
     – Então abre as pernas.
     – Nem morta. Se eu fizer isso, você se aproveita.
     – Criou-se o impasse.
     – Como assim?
     – No filme. Ele não sabe se pega o trem ou se vai jantar com ela.
     – Precisa aparar essa unha.
     – Farei isso hoje mesmo.
     – Então vou abrir um pouquinho. Mas só um pouquinho.
     – Você é uma boa menina.
     – E você é um cafajeste.
     – Fala baixo. Lá vem o lanterninha.
     – Ele vai ver sua mão. Esconde.
– Onde?
– Aqui.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A bola

No sertão arcaico era assim: quem escrevia e não lia, era analfabeto.

O garoto ouviu gemidos na cozinha. Soluços de choro. Gritos de torturado. Era a sua irmã sendo castigada pela mãe. Quanto mais pedia clemência, maior se fazia a ira materna. E o castigo redobrava misturado com palavras ásperas.

- Você é alguma rapariga pra ficar na rua dando bola pra homem, sua sem-vergonha!  - e o relho comia na pele fina da filha.

O garoto se assustou quando viu o corpo lanhado da irmã. Saiu feito um furacão, entrou sem pedir licença na casa do primo, pegou a bola que ganhara de presente no Natal, correu de volta para casa, adentrou a cozinha feito um furacão, parou e falou ofegante para a mãe:

- Para, maínha!   Não bate na Ritinha mais não! A bola está aqui! Ritinha não deu a bola a ninguém não. Eu é que emprestei para o primo Pedro!