sábado, 11 de novembro de 2017

Da invenção da roda à internet




Dizem os entendidos que a roda foi a maior invenção do homem e que, sem ela, a maioria das coisas não rodava, nem mesmo a Terra que é uma bola, mas que, antigamente, antes da invenção da roda, ninguém sabia desse detalhe e todo mundo achava que o nosso planeta era uma bola quadrada. Galileu Galilei quase foi queimado vivo depois que inventou o telescópio e descobriu que o mundo era redondo. Mas, claro, para não ser queimado teve que voltar atrás e o mundo continuou quadrado.
Que Deus vos guarde guardiães da Sapiência, mas peço licença para abrir a divergência sobre o que já se deu por certo: a maior invenção do mundo, a invenção das invenções, foi a palavra falada. Sem ela, nossas cordas vocais emitiriam apenas grunhidos e as mulheres não poderiam dizer que estão com dor de cabeça na hora do ora-veja nem os homens poderiam dizer que estavam fazendo serão até de madrugada. 
Biblicamente analisando, como Jesus Cristo proferiria o Sermão da Montanha se não existisse a palavra falada? Como Moisés escreveria os Dez Mandamentos ditados por Deus se não existisse a palavra escrita e a caneta Bic esferográfica, escrita fina? Como saber se a roda seria roda e se teria alguma utilidade se os homens não pudessem se comunicar entre si? Como vender alguma engenhoca se o Inmetro obriga o fabricante a enfiar o manual de instrução junto ao produto?
Quando o inventor da roda acabou de inventar a roda, gritou eufórico: “Akerueh!” Um curioso que passava por perto, ouviu e indagou:

-  Ossié ke?
-  Grunf. Gruinchedud?
-  Evesgran?
- Gruiichi. Grudumfish.

Fazendo a tradução pelo Google:
- Que é isso?
- É uma roda, não está vendo?
- Para que serve?
- Não sei. Acabei de inventar.

Como podemos observar pela tradução acima, o indivíduo curioso jamais saberia que a roda havia sido inventada se antes não existisse a palavra.
Pesquisadores dizem que no princípio não era só o Verbo. Havia também o substantivo, o adjetivo, o pronome e o cobrador de impostos. Todo mundo falava a mesma língua, e tenho absoluta certeza de que não era o Esperanto. 
Um dia o homem olhou bem para a roda e resolveu torná-la útil: inventou de construir uma torre até o Céu, assim ninguém precisaria mais pagar dízimo a pastor ou a padre ou a rabino: caminhariam direto para o Paraíso, sem parada no Purgatório. Quando estava quase chegando lá, só faltando uns dois palmos para atingir o território divino, Deus disse:
- Êpa! Vocês já foram longe demais! – pronunciou umas palavras mágicas e ninguém mais se entendeu. Não falavam coisa com coisa: O pedreiro pedia massa, o ajudante levava pão; o carpinteiro pedia prego e o ajudante lhe entregava um carrinho de tijolo. Assim, o projeto de se chegar ao Céu foi abortado por uma simples falta de entendimento entre os homens. É igual à ONU de hoje.
Um dia um descendente da centésima quinquagésima geração do inventor da roda escreveu umas palavras no chão e uma semana depois ele notou que as mesmas haviam criado raízes. Arrancou as palavras com cuidado, enxertou as raízes e então ele viu que algumas formavam palavras híbridas que todo mundo entendia. Eureca!  A humanidade estava a salvo e não precisou nem de um mocinho americano. Então, fazendo sinal com as mãos, o rei ordenou que todos os homens amolassem o machado e saíssem mundo afora a cortar as palavras até a raiz. Depois, observaram cuidadosamente o macho e a fêmea e viram que a diferença entre eles era um “redondo”, um “corte” e uma “haste”. Confabularam entre si, reuniram o conselho de anciões e, sabiamente, decidiram que o masculino seria feito apenas pelo redondo e o feminino pelo redondo com mais um traço côncavo acima, simbolizando a curva do corte. E desse modo acabaram inventando a letra “a”.
Nessa mesma época, arqueólogos do rei encontraram em suas escavações nas pirâmides do Egito centenas de milhares de baús de sufixos e prefixos, mais vogais temáticas e diminutivos que se usavam antes do malogro da Torre de Babel.  Então dividiram a humanidade em grupos os quais chamaram de tribos, e cada grupo podia levar quantos cestos de radicais, sufixos, prefixos, diminutivos e vogais temáticas que quisesse. Deste modo cada tribo criou sua própria codificação da fala e as crianças passavam os dias brincando de criar palavras novas, e quanto mais elas brincavam e formavam palavras, mais o povo enriquecia o seu vocabulário.
Isso aconteceu do lado de lá do oceano Atlântico. Do lado de cá os índios, que até a chegada de Cabral não sabiam que eram índios, plantavam raiz de mandioca e inventavam palavras de acordo com o que viam ou sentiam. Os jovens, que ainda não eram “jovens”, mas “kurimins-gûasu”, levavam para o pajé o que viam de diferente na mata ou no mar ou em qualquer lugar e o pajé, então, reunia a tribo para nomear o que ainda não tinha nome.
Um dia chegaram as tribos portuguesas, espanholas, inglesas, alemãs, francesas, turcas, ciganas, cada uma com seus cestos de raízes primitivas, prefixos, sufixos, aumentativos e diminutivos e centenas de milhares de navios carregados de palavras novas. O povo de Pindorama, que não nomeava as coisas arbitrariamente, mas com a funcionalidade e o sentido que elas denotavam, foi obrigado a ingerir uma Gramática que não sabia o que era, com seus artigos, numerais, verbos, substantivos e uma coisa chata chamada sintaxe. Mas o pior de tudo veio em um cesto latino: uma palavra chamada “varíola”. Outra, também, foi a derivação da palavra “bandera”, chamada “bandeirante”, vinda em um navio espanhol. Essas duas palavras, juntas, foram responsáveis pela quase extinção do povo pindoramês.
Assim, os invasores vindos de todos os cantos do planeta deram a sua contribuição na formação lexical desse povo que vivia nu e não precisava ler placa com os dizeres “Precisa-se de...” para sobreviver. O que eles disseram quando chegaram e avistaram o paraíso tropical:

Meu estoque de grãos está mofado
O som do meu pífano desafinou
O cano da minha pistola está danificado
Avisa para esse povo que o alemão chegou!

Cheguei com meu latim invocado
Toquei piano no meu camarim
Não servirei maçapão a latino mal educado
Bisbilhoteiro, bandido ou italiano ruim.

As polacas desembarcaram da escuna
Sob a mira do flibusteiro holandês
Os ingleses as tratavam na chulipa
E diziam: Aqui tem malte, não maltês!

O francês saiu do porto e tomou o cabriolé
Não levava bagagem, mas dinheiro pro bilhar.
Subiu a Rua das Quengas e parou no cabaré
Sorveu um barril de chope e foi pro cassino jogar.

Trouxeram os espanhóis o fandango e o bolero
Deslumbrando o galã galante de bolsa à tiracolo.
Fizeram-lhes omeletes as curumins nos entreveros
De Tupã e deuses vindos de outros polos.

Assim juntando raízes aborígenes e neolatinas,
Aos galhos arbóreos americanos e estrangeiros
Dando origem a outras palavras cromatinas
Da miscigenação do povo brasileiro.

Obs: As transformações das palavras duraram milênios, mas o homem, um eterno insatisfeito, inventou a internet e a humanidade está voltando a se comunicar por grunhidos.


N.A. - Poemas em parceria com o poeta alagoano Pedro Costa.

domingo, 5 de março de 2017

Dos amores proibidos



Era uma vez, em um tempo distante, mais não tão distante que se possa evocar o esquecimento, conheci uma mocinha do Alecrim, a zona da zona de Alagoinhas. Bonita, andar elegante, simpática, caíra na perdição por conta dessas fatalidades corriqueiras na adolescência: engravidar do namorado. Expulsa de casa sem o mínimo remorso dos pais, caiu na vida para não morrer de fome.

Era de Juazeiro, na Bahia. Fora parar em Alagoinhas porque puta que se preza tem que ser itinerante. Não deve ter afetos nem afeitos. Um longo convívio com os clientes pode gerar um sentimento amoroso que a levará a uma situação de conflito.  

Eu morava em Salvador e nos dias de folga ia ter com ela. Saíamos a passear de mãos dadas pelas ruas silenciosas e conservadoras da cidade. Quando havia missa, missa; quando havia festa nos clubes sociais, festa, sob o olhar admirado dos amigos. Se alguém soubesse o seu endereço, fatalmente eu seria atirado no fogo do inferno. Mas a turma babava, achando que ela era uma moça fina da zona sul da soterópolis.

Um dia, admirando o luar, ouvimos uma música de Dalton, no rádio do carro. Era a Rádio Emissora de Alagoinhas se reciclando. Ela me olhou numa ternura de anjo, acariciou o meu cabelo, e fez dos versos da música uma paráfrase: “Cuida bem de mim, porque ninguém vai viver nossos sonhos”. E repetiu, repetiu, repetiu, como um apelo de quem se sente a criatura mais frágil desse mundo. 

Na semana seguinte retornei a Alagoinhas. Não havia mais lupanar no Alecrim. Pessoas engravatadas transitavam no local. Uma placa da Igreja Universal pregada na porta avisava o horário do culto. Ninguém dava notícias das moças. Foram abduzidas por um disco voador. Ou tragadas pela terra. Passei três dias procurando, em vão.

Voltei para Salvador aos frangalhos. Sentia-me um completo fracassado. Quando deixava a cidade, veio-me um vazio e o cérebro martelou o refrão da nossa última noite, repetidos em prenúncio de separação: cuida bem de mim, pois ninguém vai viver os nossos sonhos.

Já não havia mais de quem cuidar, muito menos sonhos a sonhar.




sábado, 19 de novembro de 2016

Desses delitos inocentes


Fiz-me coroinha para beber escondido o vinho canônico guardado a sete chaves no armário da sacristia, pulei muro cheio de vidro para chupar laranja do vizinho, usei a identidade do meu irmão para entrar no cinema em filme para maiores de dezoito anos e falsifiquei a assinatura da minha mãe em bilhete à mãe da namorada pedindo para que ela fosse passar o Natal na minha casa. Coloquei o número 1 na frente do 0 no boletim da escola, desci pela traseira dos ônibus para não pagar passagem, consumi bebida e tira-gosto nas barracas em festa de largo em conluio com um amigo, comissário de menor, que aparecia com a polícia, ameaçava prender o dono da barraca por servir bebida alcoólica a menor de idade, e depois me me mandava ir embora sem pagar a conta. Fiz falsas promessas às inocentes criaturas, tipo, "se doer eu tiro" e "só vou botar a cabecinha". E o pior de todos os delitos: não confessei ao padre toda a culpa que corroía a minha alma naquela liquidação coletiva de pecados chamada "primeira comunhão". Omiti, menti deliberadamente (mais por vergonha e menos por má fé) o que fazia durante horas trancado no banheiro de casa folheando uma revista chamada "catecismo", de Carlos Zéfiro, enquanto os meus irmãos corriam para a casa dos vizinhos para satisfazerem suas necessidades fisiológicas. 

Pronto, diante desta confissão, agora você já pode me entregar pro Sérgio Moro e ir dormir consciente de que cumpriu o seu dever e de que, a partir de então, a corrupção acabou.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Ótica psicodélica - Carlos Silva

O velho, com seu olhar analítico repousado em dúvidas, cabisbaixo trafega pela rua tropeçando em si mesmo, a procura de um amigo, de um sorriso, de um cumprimento cordial. 
Em meio a tantos, sente-se perdido sem mãos de afagos, sem convites, sem importância alguma para alguma coisa. Seus amigos jazem no esquecimento da vida, pois cresceram tanto que desmediram o valor de uma amizade. Rejeitam-lhe com olhares, afastam-se a ponto de nem lhes mostrar qual é a cor do sofá da sua sala, da cortina da janela, qual o gosto que tem o seu café, qual o sabor da sua comida, qual a temperatura do afago num abraço. Terra de teres, onde os seres perdem os valores imagináveis que os possuam. 
Muitos educam, mas não têm educação para juntar conhecimentos, muitos falam, mas não querem escutar, muitos brigam com afiadas línguas, cortantes feito navalha, mas não se dão ao luxo de vestir uma armadura e partir rumo ao campo de batalha. Brigam em grupos, mas não erguem uma bandeira e desprezam seus guerreiros aliados de há muito esquecidos. 
Casulos de intolerantes, inóspitos e rudes, não abrem as janelas da alma, para contemplar a chegada da primavera da vida. Teleguiados em faces books, curtem, mas não comentam por medo de não saber o que dizer de fato, se é que de fato tem algo a dizer.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Quem sabe faz a hora...


Há manhãs em que o Diabo acorda disposto a cometer maldades. E maldade boa só serve quando envolve inocentes. É a lei escrita no estatuto da criação do Inferno.

A Mulher Invisível, a DAD (diretora a distância), viu seu sangue ferver quando teve sua autoridade contrariada. Como podia um monte de pirralhos atentar contra sua vontade? Logo ela, que fazia tudo por eles! Dava até mamadeira. Não ia ficar por isso não. Todo garoto rebelde merece castigo. Corta-se a água, a luz, e faça xixi nas calças que eu quero ver quem vai limpar! Quem está fora não entra e quem está dentro... só sai! Toda a maldade é pouca quando é para se exemplar!

Não deu certo. A pressão dos professores foi grande e ela teve que dar meia volta-volver nas suas pretensões infernais. Não deve ter dormido, esperando o day after. Explodiria uma bomba atômica, como no filme de Nicholas Meyer, e mandaria tudo pelos ares e somente os seus escolhidos sobreviveriam. 

Seu enredo, porém, esbarrou nos contra-argumentos. Nessa mesma noite de sonhos e pesadelos, a reitora da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), cuja instituição havia sido ocupada à tarde, reconheceu a legitimidade do movimento de ocupação. Uma declaração assim, vinda de uma reitora que é o centro de uma constelação, era o tiro de misericórdia nas pretensões da DAD (vou repetir para quem esqueceu: “DAD” significa ‘diretora a distância”), apenas um buraco negro a sugar a luz em Inferno, desta vez, um filme ainda em cartaz. Nenhuma maldade explícita poderia ser justificada. Então, como boa cinéfila, lembrou-se de outro filme: Avatar¹. Poderia promover maldades por osmose.
Entrou em campo o time do contra, com provocações deliberadas, principalmente aos professores que apoiam o movimento. Toda ação, exige reação, dizia Newton. Outro Newton, não o que foi síndico no meu condomínio. Filmem! Filmem tudo!, dizia ao id, ego e superego uma voz inaudível e incendiária. Filmaram. Editaram. E a nobre DAD pegou um filme editado, que só mostra um professor reagindo ao achincalhe da tropa de choque do Rei Avatar, e saiu distribuindo no varejo e no atacado, no ciberespaço. Chegou até os cafundós do judas, onde notícias só chegam a cavalo, e um matuto, sem saber do que se tratava, me disse: “Se eu fosse pai desse moleque dava uma surra de cacete nele, que era pra ele aprender a respeitar os mais velhos, principalmente, os professores!” O feitiço virou-se contra o feiticeiro.

Apesar de ser DAD de um campo acadêmico, esqueceu-se a nossa nobre deusa que clips editados não têm valor jurídico. Nem acadêmico. Nas edições a gente mostra apenas aquilo que a gente quer que se veja. Como a Globo faz. Infelizmente a representante máxima da instituição Ifal-Maceió, segundo suas próprias palavras, desceu ao nível dos reacionários dos sites sociais na intenção sórdida de desqualificar um movimento que merece o aplauso de todos nós pelo ineditismo do fato e pelas intenções envolvidas. Esses garotos não estão produzindo desordens como sugerem alguns; estão construindo cidadania à revelia do Estado que se nega a garantir seus direitos constitucionais.

Nota de rodapé: ¹O presidente do grêmio estudantil, um avatar da diretora, arrogante ptolomeísta e que se acha o centro do universo. Sua autoridade de grande líder fora atingida por farpas traiçoeiras da desobediência civil. E logo ele, um líder exemplar, que tem os poderes de transformar a instituição acadêmica em um clube social, não importando se alunos são prejudicados ou não pelo “paredão” sonoro formado onde deveria se ouvir apenas a voz dos professores em aula. 

A minha primeira e única experiência com o avatar da DAD se deu quando fui ao grêmio estudantil convidar alguns alunos para participar de uma comissão para denunciar o abandono do Ifal – Maceió ao reitor. Explicado os motivos, ele subiu no panteão olímpico e vaticinou:
- Não precisa ir lá. Eu já fui em 2014.


“Eu já fui em 2014”. Resume-se todo o seu poder numa única frase. Felizmente, para o bem da maioria, ele foi voto vencido. Como no caso da ocupação.

domingo, 23 de outubro de 2016

O aluno e a beata

 - Nunca tive tanta certeza na vida de que vou tirar zero numa prova, como tenho agora. Teoria da Literatura é a pedra no sapato das minhas convicções.
- Fique frio. Deus está no comando. Ele vai te ajudar, tenha certeza disso.
- Aí é que a coisa pega! O professor não permite prova em dupla.

sábado, 8 de outubro de 2016

Tente outra vez

Quando ele se elegeu prefeito do velho Junco, quatro anos atrás, eu gritei: Fodeu! Pensei que o Junco fosse mergulhar na Idade das Trevas. Mas, contrariando as minhas expectativas, ele se tornou um dos melhores administradores que o velho Junco já teve. Não ganhou a eleição porque o povo, acostumado a ver a terra nas páginas policiais, principalmente em fim de mandatos dos prefeitos, ficou sem esse prazer durante a administração dele. Vá entender o povo! Parabéns, Pedrito Cruz, você é um vencedor. Entrou para a história com todas as honras que um homem público merece.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O arrastão

Aqui em frente de casa costuma ter arrastão. Não daqueles que a gente vê na tevê, mas dos encontrados nas músicas de Caymmi. Os pescadores vendem o peixe na calçada mesmo. Dia desses, os peixes ainda se debatiam no cesto, uma dondoca se interessou e perguntou:
- São frescos?
O pescador olhou para ela com cara de anteontem e falou:
- Não, madame. São carapebas. E algumas piranhas.



terça-feira, 13 de setembro de 2016

O imortal e o imorrível


Quando ele nasceu o silêncio da caatinga foi interrompido durante duas semanas, três dias, sete horas, quarenta minutos e quinze segundos. Foi o que me disse o meu pai, muitos anos depois. O foguetório retumbava sob o céu anil e o som da zabumba e da sanfona ecoava pelos quatro cantos. Era menino homem! Macho! Veja o santo do dia! São João Crisóstomo e São Maurílio de Angers. Que santos são esses? Vai se chamar Antônio. Tonho. No sertão de antigamente o primogênito que não era Tonho, era Bastião. E cuidava da prole que se seguiria. Era macho? Então a família estava salva. A ele cabia educar, repreender, castigar ou escravizar os mais novos que viriam em fila indiana.

E assim foi feito. Tratou com zelo e cuidado as irmãs e irmãos. Dulce,  Nininho, Maria José, João, Zoraide, Rita, Raimundo e...

Aí eu nasci. Belo, radiante, gostoso... Êpa! Esse aí foi o seu irmão Décio, seu cachorro! – disse a minha mãe, irada e indignada, por telefone. Retifique! Retifique!
Retifiquemos, pois. Aí eu nasci. Sem nenhuma das qualidades elencadas acima. Não teve festa, não teve música, não teve nada. Não que eu me lembre. Quando indago dos mais velhos, eles dizem que ouviram meu pai assobiar marcha fúnebre. Inveja, só pode! 

Quando eu dei os primeiros passos, ele, o primogênito do meu pai, o orgulho da minha mãe, me pegou carinhosamente nos braços, me olhou sério, compungido, fez cara de choro, me jogou delicadamente ao chão e esbravejou:

- A porra é quem fica aqui cuidando desse moleque, não eu!

Arrumou as malas e escafedeu-se na garupa de um cigano que tentava engabelar meu pai.


sábado, 10 de setembro de 2016

Arrependei-vos! Jesus está chegando!

Disseram-me que Jesus viria me visitar. Que eu o aguardasse de espírito acolhedor. Não só acolhi meu espírito, mas também comprei velas, incenso, pão para distribuir com os pobres, e até fiz doação para o criança esperança. Contratei as rezadeiras do meu condomínio e fiz uma relação dos meus pecados que pediria para serem perdoados ou transformados em penas alternativas. Também mandei preparar uma buchada de bode, pois, vindo de um lugar mais seco do que o Nordeste e parecido com o Nordeste, Ele devia gostar dessas comidas.

O tempo passou e... nada! E eu com fome, querendo comer, e as rezadeiras dizendo que era pecado, ia ser castigado. Tenha paciência, espere mais um pouco, diziam.

Lá pras tantas a campainha tocou. Era Ele. Só podia ser Ele. Corri para o abraço. Ele recuou uns passos, sorriu e me entregou um santinho. Era Jesus, o borracheiro, pedindo voto para vereador.

sábado, 20 de agosto de 2016

Balada de uma geração perdida

Sou de uma geração que se caçava mariposas ambulantes. Não havia motel e, mesmo que houvesse, de nada adiantava, pois faltava o cabral e nossos pais sequer sonhavam que praticávamos o pecado original no despertar da adolescência. Então, surgia outro tipo de caça: encontrar um moitel ou uma rua deserta nas noites silenciosas e úmidas de Alagoinhas, onde qualquer sussurro mal controlado tornava-se som amplificado. Às vezes a gente invadia os vagões vazios de trens de carga na Estação São Francisco, mas um dia alguém dormiu depois do ora-veja e, ao acordar, estava na cidade de Aramari, trinta quilômetros adiante no sentido Oeste. Hoje, com tanto acesso, facilidades e mariposas globalizadas, em vez de se caçar a sublimação metafísica, os jovens perdem-se na procura de Pokémon.

Já não se faz mais adolescente como antigamente, diria o meu pai, se vivo fosse.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Graciliano Ramos X Getúlio Vargas




Certa vez, antes da dominação satânica do Brasil, publiquei no Facebook a minha indignação sobre o achincalhe político contra Graciliano Ramos, em Quebrangulo, cidade natal do mais famoso escritor alagoano: batizaram a praça onde fica a casa que ele nasceu justamente com o nome do maior causador dos males ao escritor: Getúlio Vargas.


Tempos recentes retornei à cidade para pôr a limpo essa lógica pervertida de se homenagear os escrotos. Procuraria saber do autor de tamanha indignidade. Passei um dia indagando do povo a respeito da praça, sem que ninguém desse provimento. Quando a noite caía, encontrei um cidadão sentado na calçada em sério caso de amor com a ociosidade. Perguntei por perguntar, só por descarrego de consciência. Ele me deu a luz:


- Procure o Quéops que ele sabe tudo da cidade!


Não titubeei: saí a indagar pelas ruas e becos onde poderia encontrar personagem tão importante para a história do Egito e para a minha história. Pergunta daqui, pergunta dali, até que alguém me disse: 


- Ele foi levar a filha para uma festa de aniversário.


Peguei o endereço e meti pé no acelerador. A casa de festas ficava a caminho de Palmeira dos Índios. Como eu não estava em trajes festeiros nem tinha convite para entrar, pedi ao porteiro para chamar o Grande Faraó. Ele não demorou a voltar, acompanhado do ilustre cidadão, meu salvador da pátria. Ele era todo sorriso. Apresentei-me e contei o meu dilema em descobrir aquela estranha homenagem que se fez a Getúlio Vargas, porém sem adentrar a parte crítica. Queria saber quem fora o autor da ideia.


- Foi o meu avô, em 1960. Inclusive ele fez uma réplica de Paris, com o Obelisco e o Arco do Triunfo! – disse isso deixando transparecer o maior orgulho pelos feitos heroicos do avô.


Intimamente agradeci a Deus por omitir a minha opinião no ato de perguntar. Agradeci meio sem jeito pela informação, pedi desculpas por interromper seu deleite, dei meia volta-volver e retornei à casa da mãe de Edna, um sítio sossegado ao pé da Serra Grande, na Vila São Francisco.


Na rede, refletindo ao som dos vagalumes e coaxar das rãs, cheguei à conclusão de que, para o povo e para os governantes, a cultura não vale nada. Seja em Quebrangulo, em Salvador, em Maceió, em Tanque d’Arca ou qualquer outro lugar. As ruas e praças são batizadas com os nomes de políticos, mães de políticos ou amantes dos políticos. Raros são os lugares em que algum cidadão ligado à cultura seja homenageado. E o povo faz questão de isolar historicamente aqueles que não estão ali pregando engabelações ou no beija-mão dos favorecimentos. O Junco só soube que tinha um filho escritor no dia que um padre alemão chegou lá e, na pregação, disse que conhecia o lugar muito antes de estar ali, pois havia saído numa publicação alemã falando do escritor Antônio Torres. Jorge de Lima? Coitado! Não há quem morra de amores pela sua obra nem pela sua existência na cidade de União dos Palmares, sua terra natal.


Se hoje há uma plateia abençoando os rancores contra a esquerda, imagine nos anos arcaicos em que o ranço político dominava os sertões. Mas não acredito que o prefeito de então, um cidadão que passava os fins de semana em Recife e os feriadões na Europa, tivesse a intenção de desbancar Graciliano Ramos. Acho que ele nem sabia da real importância do conterrâneo, vez que, Graciliano, ganhou nome e fama quando se mudou para Palmeira dos Índios. Ou que, se sabia, devia desconhecer a história da prisão sem causa do Mestre Graça. Em 1960, Getúlio Vargas era o herói da pátria e todos os meios por ele usados justificavam seu fim. 


Credito o ato aos tempos das trevas, porém, hoje, já não se justifica mais se manter a homenagem ao cidadão que escrachou a vida de um personagem tão importante na literatura brasileira, principalmente quando tramita na Câmara de Vereadores de Quebrangulo projeto de lei tombando a casa de Graciliano Ramos como patrimônio cultural do município.


É preciso que os nobres edis quebrangulenses consertem essa mancada histórica para que o nobre escritor possa descansar em paz.  
 

Fotos: a Praça Getúlio Vargas e a casa (azul) que foi de Graciliano Ramos.