sábado, 12 de dezembro de 2009

O nascimento da crônica


Uma boa crônica de Machado de Assis sobre a origem da crônica.
De Machado de Assis



Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?




quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Encosto

Carol chegou carregada. Literalmente carregada. De malas e de encostos. No aeroporto, a esteira de bagagens travou. O taxista lhe cobrou excesso de peso. O elevador do prédio se recusou a cumprir sua nobre função do sobe-desce. Sobrou para o zelador, que teve que se curvar para o peso das malas em dez andares.
De todos os males, o menor. Porém Carol optou pelo maior ao descumprir as recomendações do seu pai-de-santo: não levou oferenda pra Iemanjá no dia dois de fevereiro, não deu cachaça pro santo na primeira talagada do ano, nem vestiu branco na sexta-feira. Viajou sem tomar banho de folhas e se esqueceu dos seus patuás. O seu corpo ficou totalmente vulnerável ao olho-gordo, quebrantos e maus-olhados. Seus músculos esmoreceram, suas pernas se negaram a andar e sua boca só abria para seguidos bocejos. Seu olhar perdeu o brilho e suas pálpebras se recusaram a obedecer ao comando cerebral. Carol estava, mas não atinava. Existia, mas não participava. Via, mas suas retinas só enxergavam o vazio. Suas férias expiravam, em Maceió e, até então, não tinha percebido nada de interessante, nem mesmo a beleza do encontro das águas do Rio São Francisco com o mar. Era um encosto tamanho família, urucubaca para babalorixá nenhum botar defeito. Carol, que no passado fora inspiração de música de ritmo alucinante, estava definhando. Mal inspirava réquiem. Um dia, passeando pelos canais de tevê em busca de um que não falasse de corrupção, parou em um programa evangélico, onde cego dava testemunho de ter voltado a enxergar, surdo dizia que estava ouvindo muito bem e um paraplégico se levantou e chutou a cadeira de rodas, em urros alucinados de agradecimentos. Um perneta jogou as muletas fora e saiu andando, normalmente. Não teve dúvidas: anotou o endereço da igreja, pegou um táxi e em meia hora participava da sessão de descarrego. Estava concorrida a sessão. Era o dia da vigília dos quatrocentos pastores. Aproximadamente um pastor para cada fiel. Foi atendida de imediato por um pastor jovem, com ares de louco, cara de ex-drogado arrependido: 
 - O que você sente, irmã? 
- Queimação no estômago, azia, mal-estar, câimbras, formigamento, moleza no corpo, flatulência, febre, dor-de-cabeça, dores no ovário, muito sono quando não durmo direito e tensão pré-menstrual. 
- Você vai se curar, irmã, aleluia! Ó Deus, exijo que cure esta mulher, expulse o Capeta do seu corpo, aleluia! Sai Capeta, do corpo desta mulher, pelos poderes sagrados de Jesus, filho de Jessé, cuja vara e cajado expulsaram Adão do Paraíso! Sai, Capeta, que esse corpo não te pertence mais! Retorna para o fogo do Inferno, onde Belzebu reina. Aleluia! Vá pra casa, irmã, que você já está curada. Aleluia! Antes, deixe a sua contribuição para ajudar nas obras de Cristo. Aleluia! 
 Voltou pra casa a pé porque a depenaram na igreja. Esvaziaram sua bolsa, os bolsos, e surrupiaram-lhe o relógio e a corrente de ouro, apesar de relutar por ter sido presentes de aniversário e de Natal, respectivamente. Tomaram-lhe também os cartões de crédito, sob a deslavada desculpa de que o dinheiro plástico simbolizava a vaidade e o consumismo, a própria representação do Capeta. Ungida com óleo santo produzido, segundo o pastor, nas fontes termais de Jerusalém, onde Cristo se banhava aos domingos, seu corpo foi revestido por um escudo invisível polarizante que neutralizava as cargas negativas produzidas por invejosos e olhos-de-seca-pimenteira. A bênção e o óleo tinham garantia de sete dias, quando ela deveria retornar para mais uma sessão de descarrego. 
Chegando a casa, exausta da longa caminhada, capotou no sofá. Dormiu vinte e quatro horas seguidas. Despertou alegre, disposta, descansada. Seu mal era sono atrasado, disse-lhe sua irmã Sílvia, companheira de viagem.
Diagnóstico descoberto tardiamente. Além de ficar sem dinheiro, retornaria a São Paulo na manhã do dia seguinte.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A TRISTE SINA DO GATO VELHO



Por Cineas Santos



De Monalisa siliconada




Vivemos sob a insuportável ditadura da estética, garantem os entendidos. Poderiam acrescentar: patrocinada por uma indústria que fatura, anualmente, bilhões de dólares. Sob suas asas, agasalham-se fabricantes de cosméticos, laboratórios farmacêuticos, cirurgiões plásticos, esteticistas, nutricionistas, agências de publicidade e charlatões em geral. O cientista inglês Aubrey de Grey, presidente da Fundação Matusalém, afirmou que, num futuro próximo, o homem poderá viver mais de mil anos sem maiores problemas. Para o sábio da Universidade de Cambridge, “a fonte da eterna juventude está na reparação dos danos moleculares e celulares que ocorrem no organismo do homem ao longo do tempo”. Como ferramenta para reparar as “peças danificadas”, o cidadão pretende utilizar vírus modificados, glóbulos brancos e bactérias. Hoje, no entender dos sábios, só envelhece quem quer; só morre quem não se cuida. Consternado, todos os dias, ao barbear-me, coço a carapinha recoberta de algodão, confiro os sulcos deixados pelo tempo em minha face e me sinto um suicida...

Houve uma época, não muito distante, em que quem se submetia a uma cirurgia plástica fazia tudo para ocultá-la; hoje, o (a) paciente pede ao cirurgião: Doutor, o senhor poderia pôr sua assinatura aí embaixo para eu matar os amigos de inveja! Por oportuno, vale lembrar que Martha Rocha perdeu a coroa de miss universo “por duas polegadas a mais nos quadris”; Hoje, todas as concorrentes ao cetro são esculpidas a bisturi ou recheadas de silicone. O tempora! O moris!

Certa feita, Millôr Fernandes escreveu (estou citando de memória): Não entendo essas moças que fazem o possível e o impossível em busca de um corpo perfeito e depois qfirmam que não querem ser julgadas apenas por sua beleza física. Pois eu queria ser julgado, pelo menos uma vez na vida, por outro atributo que não fosse a minha inteligência.

Lembrei-me dessa tirada quando, na semana passada, fui abordado por uma carroceira. Negra, pobre, idade inescrutável, aquela cidadã não fora poupada pela vida. Humildemente, pediu-me que fizesse uma matéria com ela para o programa “Feito em Casa”. Expliquei-lhe que, infelizmente, o programa não possui esse viés assistencialista. Por falta de coisa melhor, dei-lhe os caraminguás que trazia no bolso. A cidadã invocou as sete mil virgens para que derramassem bênçãos sobre minha cabeça. Não bastasse isso, delicadamente pegou no meu braço e disparou: - Que Deus lhe faça ainda mais gato! Diante do meu espanto, repetiu, escandindo as sílabas: - DEUS LHE FA-ÇA A-IN-DA MAIS GA-TO!

Ao longo da vida já fui chamado de quase tudo: feinho, feioso, feião e, ultimamente, feivéi. Gato, nunca! Pensei comigo: finalmente, alguém descobriu em mim aquela beleza recôndita que não se mostra aos olhos levianos. Infelizmente minha existência felina durou menos de meia hora. Eufórico, contei o ocorrido a uma dileta amiga, que se limitou a dizer: - Em vez de esmola, você bem que poderia ter conseguido uma consulta com um oftalmologista para aquela pobre velha. Desacorçoado, desci do telhado e voltei ao chão da feiura que me acompanha desde sempre como um encosto. Está escrito: ninguém foge à sua sina...


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sobre Pessoas - 6

Idéias de Jeca Tatu

Mais uma crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Jeca-Tatu


Primeiro, vejamos qual é a origem etimológica do seu nome. E o que simboliza. Personagem criado por Monteiro Lobato em 1918, Jeca Tatu seria dicionarizado como substantivo comum, significando o habitante do interior brasileiro, especialmente o caipira da região Centro-Sul. É daí que surge o popularíssimo jeca. Tanto serve para definir o matuto bronco quanto qualquer pessoa sem refinamento. Em outras palavras: cafona, brega, ridícula.

Para o autor de Urupês, Jeca Tatu era “um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie”. Eis o protótipo criado por ele: modorrento, a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso; soturno, fatalista, sem noções de pátria, de civismo, nem do país em que vive; e com um suculento recheio de superstições. “Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhe as crendices, e como não há linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo distinguir onde para uma e começa outra”.

Na verdade, tal tipo nada heróico contrapunha-se à galeria de heróis da vertente literária que Lobato chamava de “caboclismo”. Ou seja, a que recorria, extemporaneamente, a um romantismo tardio, gerador de subprodutos do indianismo de José de Alencar, com suas incomparáveis idealizações do homem natural “como sonhava Rousseau” - de tantas perfeições humanas que sobrelevava aos ditos civilizados, em beleza de alma e corpo. “A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente. Todo o clã plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado de Peri...”

Monteiro Lobato se interpôs nas encruzilhadas entre esses cultuadores dos Peris de segunda ou de terceira geração, e os modernistas de 1922. Se não chegou a exclamar, como Flaubert a respeito de sua mais famosa personagem – “Madame Bovary sou eu!” -, pelo menos imaginou que criador e criatura tivessem a mesma visão do Brasil daquele tempo. Ao reunir em livro uma série de artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, e em outros, intitulou-o Idéias de Jeca Tatu, justificando o título desta maneira: o coitado, se pensasse, pensaria assim.

Assim como? “Em prol da nossa personalidade”. E contra os macaqueadores do dernier cri “dos homens e das coisas de Paris”, incapazes de uma atitude própria na vida e nas artes. “Convenhamos: a imitação é, de feito, a maior das forças criadoras. Mas imita quem assimila processos. Quem decalca não imita, furta”.

Ao entrar na pele do bronco Jeca Tatu, e emprestar-lhe a sua própria consciência, Monteiro Lobato mais parecia um tribuno indignado contra os imitadores de toda espécie, que ele chamava de macaquitos e macacões. A edição do livro que tenho, da Brasiliense, é a 13ª., publicada em 1969. E abre com a seguinte nota dos editores:

“Temos aqui um bem estranho livro. Monteiro Lobato fala de arte, e revolucionariamente, como de costume. Sua rebeldia mais acentuada nós mal a compreendemos hoje: contra o francesismo, a francesia, a nossa completa emulação de personalidade diante da França. Hoje está tudo mudado. As idéias de Monteiro Lobato venceram em toda a linha. Não só desapareceu a unicidade da influência francesa, como o que Lobato queria, a arte nacional, a coragem das coisas nacionais e até dum estilo arquitetônico nacional, fizeram-se lugares comuns. Abrimos o rádio e ouvimos dez números de arte roceira – ao passo que naquele tempo, quando pela primeira vez apareceu Pernambuco a cantar o ‘Luar do Sertão’ de Catulo, o acontecimento foi de tal monta que provocou um artigo seu”.

É curioso ler-se isso agora, quer dizer, em plena era globalizada, quando o nacional parece ir aos poucos sumindo do nosso horizonte. E quando chamar alguém de nacionalista, dependendo do tom de voz, pode parecer uma grave ofensa. Mas continuemos com a leitura da nota dos editores de Lobato, a propósito do livro “Idéias de Jeca Tatu”:

“Em numerosas páginas deste volume a ‘terra’ aparece em suas onímodas expressões – o interior, a roça, a gente da roça, os costumes e comidas da roça. E Lobato atrevidamente antepõe tudo isso à ‘chinfrineira do litoral’ – essa ‘civilizaçãozinha de arremedo e de empréstimo onde tudo são mentiras à terra”. Em resumo, segundo aqueles editores, ali estava um Lobato em mangas de camisa, integralmente ele próprio no pensamento e no modo de expressá-lo – vivo, alegre, brincalhão e com uma ironia às vezes levada até a crueldade.

A primeira cipoada dele é na imprensa: “Anda para cinco meses que abrir um jornal vale tanto quanto abrir um porco de cerva, tal o bafio de sangue que escapa dos telegramas, das crônicas, de tudo. Ora, isto afinal engulha, e sugere passeios por veredas afastadas do matadouro, onde os pés não chapinhem em lama de sangue nem se raspem os nossos olhos na rês humana carneada a estilhaços de obus”. O que diria Lobato da imprensa, hoje, tanto quanto do noticiário televisivo?

Bem, tudo o que sabemos é sobre o que ele pensava então e não sobre o que ele poderia vir a pensar no futuro, que, afinal, é o nosso presente. Melhor dizendo: se, de fato, pensasse, Jeca Tatu teria pensando por vezes de forma politicamente incorreta, ou jocosa, no que concerne à sua visão da História do Brasil, por exemplo:

“Enquanto colônia, era o Brasil uma espécie de ilha da Sapucaia de Portugal. Despejavam cá quanto elemento anti-social punha-se lá a infringir as Ordenações do Reino. E como o escravo indígena emperrava no eito, para cá foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível. Até a vinda de D. João, o Brasil não passava de índio e mataréu no interior e senhores, feitores e escravos nos núcleos de povoamento da costa, muito afastados entre si e rarefeitos. Em toda essa fase o Brasil não dá de si nenhum bruxoleio de arte.

E assim vai até que um tranco de Napoleão dá com o rei de Portugal para cima do Rio de Janeiro. Apesar da pressa com que arrumou as malas, D. João VI trouxe todos os ingredientes para uma boa implantação aqui: fidalgos de orgulhosa prosápia, nobres matronas, almotacés, estribeiros-mores, açafatas da rainha, vícios de bom tom, pitadas de arte e ciência e mais ingredientes básicos de uma monarquia preposta a pegar de galho”.

Ele vê a fuga da corte de D. João VI, quando da invasão napoleônica, de modo bem irônico, beirando o sarcasmo:

“Na lufa-lufa do embarque em Lisboa muita peça se quebrou, outras caíram ao mar, outras ficaram esquecidas lá no palácio. Perderam-se sobretudo muitos parafusos e porcas, e disso veio que, ao armar-se novamente, o Estado ficou meio bambo, frouxo de mancais e ferro.

Entre as coisas avariadas pela água do mar apareceu a Urna – a Urna das Eleições! Remendaram-na como puderam, mas nunca funcionou a contento nas terras do Brasil. Algo essencial se perdeu na travessia”.

Dois frasquinhos de drogas homeopáticas ninguém descobriu onde paravam: um com a Noção do Dever, e outro com a Noção da Responsabilidade”.

As idéias de Jeca Tatu sobre a criação do estilo:

“Não vem dos grandes mestres das artes plásticas a feição estética duma cidade. Vem antes de humildes artistas sem nome – do marceneiro que lhe mobília a casa, do serralheiro que lhe bate o ferro dos portões e grades, do entalhador de guarnições e molduras, do fundidor, do estofador, do ceramista, de quantos direta ou indiretamente afeiçoam o interior da casa urbana. Como tais obreiros são numerosíssimos, dilata-se-lhes a zona de influência. Sai-lhes inteirinha das mãos a casa popular como ainda a burguesa, e em boa parte o palacete rico”. Ele segue dizendo que era preciso cuidar da educação artística do operário, ensinando-lhe o bom gosto, desabrochando-lhe o senso da arte, norteando-lhe o impulso da criatividade, para dar moldes indeterminados, mas individualíssimos, à cidade futura.

Para ele, era assim que se criava estilo: como feição peculiar das coisas, um modo de ser inconfundível, a fisionomia, a cara da obra de arte. Em síntese, Jeca Lobato ou Monteiro Tatu definia toda a arte como produto conjugado do homem, do meio e do momento, mas que só adquire caráter pelo estilo. E aí vem uma cacetada em quem não o tem, a começar pela arquitetura:

“Não ter cara é um mal tamanho que as cidades receosas de criá-la própria importam máscaras alheias para fingir que têm uma”.

Ele conta que quando Anatole France esteve no Brasil, mostraram-lhe nossos monumentos, crentes de que ele iria esboçar uma exclamação diante deles. Mas que nada. O requintado artista só torceu o nariz:

- Já vi isto mil vezes – ele disse.

- Onde?

- Em toda parte. Europa, Bombaim, Port-Said.

“De quanto viu só lhe interessaram velhas igrejas. Descobriu nelas uma arte ingênua, porém mais eloqüente que o esperanto arquitetônico da Avenida Paulista”.

E tome diatribe. Contra as nossas casas, que “mentem à terra, ao passado, à raça, à alma, ao coração. Mentem em cal, areia e gesso, e agora, para maior duração da mentira, começam a mentir em cimento armado”.

O indignado Jeca Tatu não via sequer um trinco de porta que lembrasse coisa nossa. E desancava:

“Dentro de um salão Luis XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos à francesa, Tomé de Souza e os 400 degredados berram ao nosso sangue; Fernão Dias geme; Tibiriçá pinoteia...

É acerba a sua crítica à maneira como o brasileiro mobíliava-se:

“Nosso mobiliário dedilha a gama inteira dos estilos exóticos, dos rococós luizescos às japonezices de bambu laçado. O interior das nossas casas é um perfeito prato de frios dum hotel de segunda. A sala de visitas só pede azeite, sal, vinagre para virar salada completa. Cadeiras Luis 15 ou 16, mesinha central Império, jardineiras de Limoges, tapetes da Pérsia, ‘perdões’ da Bretanha, gessos napolitanos, porcelanas de Copenhague, ventarolas do Japão, dragõezinhos de alabastro chinês – tudo quanto o comerciante de missanga importa a granel para impingir ao comprador boquiaberto”.

Então ele se admirava dos povos capazes de individualidade. E ensinava:

“Na casa holandesa o estigma local começa no telhado e desce aos mais humildes utensílios da cozinha. Tudo nela cheira à raça; o jardim com sua tulipa, os móveis esculpidos, os ornatos, os quadros – tudo é emanação de terra, criação lógica do ambiente”.

Para Jeca Lobato Tatu o que nos faltava em estilo sobrava aos outros:

“No lar britânico o inglês está dentro de uma moldura natural; nada destoa da sua psíquica fleumática de pirata enriquecido.

Na casa nipônica, que maravilhosa harmonia entre a gaiolinha incapaz na aparência de resistir às brisas mas que agüenta terremotos, e o japonês de aspecto frágil mas que derrancou o russo!”

E de casa em casa pelo mundo ele conclui que a China tem estilo e o americano (do Norte!) impõe o seu, “filho do ‘big’, do ferro e do milionarismo”, que resulta num estilo missionário, haurido nas velhas igrejas e conventos da era espanhola da Califórnia e do Texas. Monteiro Tatu via nisso uma forma superior de arte.

A nossa falta de estilo era uma simples questão de incultura – ele avaliava. “Como não nos educam o gosto e não nos ensinam a ver, não temos a bela coragem do gosto pessoal”. Daí porque o nosso homem culto, quando endinheirado, e bem situado no mundo político, quando ia comprar um objeto de arte olhava ansioso para o nome do autor, e só por ele se guiava.

Em resumo, no limiar da década de vinte do século passado tínhamos o seguinte quadro: incultura nos incultos; meia-cultura nos cultos; esnobismo nos “entendidos” e cubice paranóica nos paredros supremos. E dentro dele evoluía a feição estética da cidade.

E qual, afinal, seria o estilo que devíamos buscar?

Jeca Bento Monteiro Lobato Tatu achava que este devia ser decorrente do que os avós nos dotaram, coando-se a alma colonial através dum temperamento profundamente estético, filho da terra, produto do ambiente, alma aberta à compreensão da nossa natureza: e a arte colonial surgiria “moderníssima, bela, fidalga e gentil e moderníssima de um verso de Olavo Bilac”.

Ele prossegue:

“Seja assim a nossa arquitetura: moderníssima, elegantíssima, como moderna e elegante é a língua do poeta; mas, como ela, filha legítima de seus pais, pura do plágio, da cópia servil, do pastiche deletério”.

De acordo com as idéias de Jeca Tatu, a obra de arte, além dos elementos que lhe são intrínsecos - e que são permanentes, tais como os regidos pelas leis eternas das proporções e do equilíbrio -, não pode prescindir desse outro, mais sutil, por vezes abstrato ou indefinível, digo eu, mas visível, chamado estilo. É ele que revela a personalidade do artista, e o vínculo forte do seu temperamento emotivo. E as artes mais suscetíveis de se impregnarem desse coeficiente pessoal seriam a poesia, a pintura e a escultura. Já na arquitetura, não seria apenas o homem, e sim o meio, que imprime estilo à obra. Neste caso, mesmo que o elemento individual dê algo de seu, quem dá tudo é a coletividade.

Eis aí um rascunho do Idéias de Jeca Tatu, que foi o quarto livro de Lobato, conforme a cronologia de suas obras completas. E o consagrou como crítico, na opinião pública. Homem de múltiplos interesses, Lobato, muito antes de celebrizar-se como o nosso incomparável autor de histórias para crianças, imprimiu a sua marca de contista e ganhou notoriedade como polemista. Não perdoava São Paulo, do ponto de vista arquitetônico, a seu ver um puro jogo internacional de disparates.

Homem de múltiplos interesses, envolveu-se em temerárias causas. Uma delas, foi a sua campanha contra os modernistas, seus conterrâneos: “’Arte moderna’: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira [...], como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena... que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-primas de quantas deixaram marcas de luz na história da humanidade”.

Mas a sua luta insana mesmo foi a que chamaria no título de um de seus livros de O escândalo do petróleo. Hoje, pareceria até improvável que um dia um brasileiro tenha ido parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existência de petróleo em nosso país, quando todo o aparelho do Estado, em conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de tudo para negá-la. Por ironia do destino, o primeiro poço de petróleo aberto no Brasil surgiu no Lobato, aqui na Bahia. Aconteceu isto em 1939. O curioso é que, menos de dois anos antes, em 1937, na primeira edição de O Poço do Visconde, o livro em que Monteiro Lobato ensina a geologia do petróleo às crianças, há um capítulo com os pontos onde ele deveria jorrar. Vejamos o quão profético se tornaria este trecho: “A Bahia perfurou na zona dos camamus e encheu-se de petróleo; e até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital, abriram-se poços de excelente petróleo”.

José Bento Monteiro Lobato deu dez anos da sua vida a essa campanha, da qual saiu esgotado, esmagado, mas podendo proclamar-se um vencedor. Não tardou ao país passar a colher o que ele semeou. Sim, nós temos petróleo. Por proclamar isso, com convicção, Lobato acabou sendo condenado pelo Tribunal de Segurança da ditadura de Getúlio Vargas, o mesmo que quando presidente democraticamente eleito, criaria a Petrobras.

Terminemos com uma avaliação feita pela sua própria filha Ruth:

“Misto de filósofo, homem de ação e artista, sofria conflitos entre a razão e o sentimento. Tolerante por princípio, não o era por temperamento. Equânime por filosofia, perdia a cabeça quando se lhe antepunha obstáculos. ‘Blaguer’ e irritadiço, calmo nas horas de tumulto e inquieto nas horas de paz, era todo um conjunto de qualidades aparentemente paradoxais mas bastante compreensíveis para quem o conhecia bem”.

Para ela, o maior legado que Lobato deixou foi sua coerência de caráter. Nela residia sua força e também sua coragem, num mundo de hesitações e canalhices.

E não é que estamos necessitados de homens públicos com o caráter, as idéias, a coragem para defendê-las, de um Jeca Tatu?

sábado, 5 de dezembro de 2009

Eis que vos apresento: o arraial do Junco

Pequena amostra do Casamento da Rosinha




O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão. A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-do-sol mais longo do mundo. O cheiro do alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer:


- Hei de te amar até morrer.

Essa é a terra que me pariu”.

Antonio Torres. In “Essa Terra”

...

O Junco é o Junco, nada mais que o Junco. No princípio era o Verbo. Depois um Substantivo. Real: um cruzeiro. Concreto: uma igreja. Abstrato: uma estrada que leva ao mundo dos anseios e dos sonhos.

Terra dos confins. Léguas da promissão. De errantes navegantes que se aventuram de corpo e alma nesse mundão sem dono. Ou melhor: eles são o seu dono. Antonio Torres, o escritor; Marcelo Torres, o jornalista; Cristiana Alves, a poetisa; Décio Torres, o professor, e Udileston Lopes, o venturoso, que chegou ao distrito federal com u’a mão à frente, outra atrás, pra se tornar um empresário bem sucedido do ramo alimentício. Herval Santana, o oficial de justiça em Salvador. Com uma câmara na mão e uma ideia na cabeça tenta resgatar a memória cultural da terra à moda glauberiana. Também não nos esqueçamos de Aimé Cruz, a boa cristã, que passa o ano em Alagoinhas arrecadando brinquedos para doá-los às crianças carentes no Natal do Junco.

Mas a estrada de saída é a mesma de chegada. Há os que nasceram em terras alhures, chegaram e ficaram. Luiz Eudes, o empreendedor, hoje guardião dos cofres públicos, filho do comerciante Luiz de Rouxinho, que até hoje mantém o antigo hábito de vender fiado pra se pagar na safra. Quando há safra. Joaquim Neto, o médico, hoje prefeito, sobrinho-neto de Ioiô Cardoso, um dos idealizadores da emancipação política e primeiro prefeito do arraial do Junco. Tem também o Abimael Borges. Chegou sonso e permaneceu calado e hoje é um cineasta premiado por mostrar a feira do Junco em rede nacional. Esse seu curta-documentário se encontra postado aqui no blog, com o nome “Caminho de Feira”.

Outros há, e de monte, a contribuir com o progresso. Se não ocupam uma posição de destaque, destacam-se pela sua importância no contexto econômico nacional. Uns mais, outros menos, mas todos contribuem para rodar as engrenagens do desenvolvimento da nação. Não há estrofes na poesia concreta da pauliceia desvairada que não contenham versos escritos pelas mãos calejadas de um junquês.

Em fevereiro tem carnaval. Tem a festa da padroeira. E que festa! Três mil e quinhentos carnavais não traduzem a alegria emanada do povo. É o dia convergente, o chamado da terra aos que partiram em exílio voluntário. É o dia do encontro entre os que estão e os que são apenas saudades no resto do ano.

Junho é o mês joanino. Maior festa da Bahia: São João. Todas as cidades se enfeitam de bandeirolas e fogueiras, onde alguns se casam, outros se acasalam e as crianças soltam fogos ao pé da fogueira, indiferentes às ações dos adultos. É o forró, o rala-bucho, o pau-de-porteira. Licor de jenipapo, passas, quentão. É a poeira subindo, a fumaça sufocando, a sanfona rangendo e o couro da zabumba gemendo. E no arraial do Junco ainda há mais: o Casamento da Rosinha, no dia 24 de junho, que atrai um monte de gente do lugar e de outros rincões. Uma festa à antiga em tempos modernos. Chova ou faça sol, por trinta anos o cortejo segue rua acima, rua abaixo, arrastando multidões que não resistem ao chamado da sanfona e da zabumba. E aos encantos da Rosinha.

Portanto, eis o arraial do Junco, hoje Sátiro Dias, o herói abolicionista nacional, que em 1884 teve a coragem de abolir a escravidão no Ceará, e seria hoje uma terra como outra qualquer se não existisse um fator relevante: é a terra que me pariu.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Indicação de Leitura

Fogo morto,
romance vivo

Por Antonio Torres


De Fogo Morto - José Lins do Rego


São raras as obras literárias comparáveis aos diamantes, cujo brilho nunca se apaga. Fogo morto é, sem dúvida alguma, uma dessas raridades. Publicado originalmente em 1943, foi logo aclamado como uma obra-prima, assegurando a seu autor, o paraibano José Lins do Rego, um lugar inarredável na galeria dos maiores prosadores do século XX. Lido (ou relido) agora, entende-se perfeitamente o impacto que ele provocou logo no seu lançamento, quando foi festejado por críticos exemplares como Otto Maria Carpeaux, Antônio Cândido, Tristão de Athayde, Afonso Arinos, Wilson Martins, e mais e mais, sem esquecermos o entusiasmo que despertou em dois expoentes das letras nacionais, os escritores Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Mas a força criadora de José Lins do Rego, que em seu décimo romance – e aos 42 anos de idade - chegara ao apogeu, haverá de ser sempre louvada.

Fogo morto tem por núcleo a pungente história de três personagens trágicos: o mestre José Amaro, homem do povo, de firmes convicções, condenado a um destino brutal; o major Luis César de Holanda Chacon, um citadino instruído e ocioso que, por laços matrimoniais, ascende à nobreza rural, vindo a se tornar um senhor de engenho truculento, cujo destino o condenaria a uma melancólica decadência; o patético capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, espécie de Quixote sertanejo, réprobo de suas fantasias de heroísmo – e uma criação literária simplesmente brilhante. Estes protagonistas, somados a um elenco de coadjuvantes igualmente memoráveis, compõem um amplo espectro da sociedade brasileira na transição entre a Escravatura e a Abolição.

Simbolizando o fim de uma era, Fogo morto expõe a vulnerabilidade de todo um ciclo econômico – o da cana-de-açúcar –, dependente do trabalho escravo. Com a Lei Áurea, até os senhores de engenho ficaram sem saber o que fazer de si mesmos. A trama do romance, portanto, envolve complexas tensões entre casa grande x senzala, homens x mulheres, brancos x pretos, cangaço x governo etc. E escancara uma realidade de violência, racismo, machismo e loucura, temas (ainda!) tão contemporâneos. Tudo isso entretela a sua abrangência histórica e alta significação literária.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

QUANDO ACABAR O MALUCO SOU EU

“Olha, toda boa, toda boa... 
Agora eu quero ouvir: ai, ai... eu sou toda boa 
Olha toda boa, toda boa... Ai, ai... 
Eu sou toda boa!!! 
Quando falar ai, ai... Passa a mão no corpinho assim ó... 
Ai, aí... Eu sou toda boa...”
(refrão da música campeã do carnaval baiano)
Ontem, ao meio-dia, enquanto esperava o ônibus no centro da cidade, um carrinho de cd pirata tocava uma música dessas bandas de pagode baiano. O bater do tambor imprimia um ritmo difícil de ser identificado: tanto poderia ser um samba, um pagode, um reggae, um rap, um technobrega ou tudo isso junto. Meus parcos conhecimentos eruditos não me permitiram separar o joio do trigo daquela preciosidade musical, cuja letra ainda massageia minha persistência timpânica: 
“Ela tá toda molhadinha
já sinto cheiro da calcinha
vou cheirar sua bundinha”
Uma vez, conversando com Edna sobre a péssima influência da axé music sobre os jovens brasileiros, assim ela me explicou a razão do sucesso instantâneo de alguns e de sua transitoriedade midiática:
– Acontece que essas músicas têm um ritmo forte, quente, e atraem a garotada justamente por não precisar forçar os neurônios para decorar letras complexas. Eles querem dançar, e não cantar, e nisso a melodia é muito boa. Quem oferecer melhor opção de se dançar sem precisar pensar, este será a bola da vez.
Para quem não sabe, Edna é a minha cara consorte (ou sem sorte mesmo) e é educadora (ou sofredora) e por isso falou com a sabedoria de um sábio chinês. Se é que realmente existe algum sábio chinês. 
Nunca havia pensando nas razões dessa juventude atarantada que chega a pagar mais de dois mil reais por um pedaço de pano que dá direito a se desgastar atrás do trio elétrico do Chiclete com Banana, apesar de ter acompanhado o nascimento, o auge e, espero um dia, a morte dessa praga que leva o nome indevido de “axé”. Cada vez mais aumenta a corrente dos contra na Soterópolis. Do Abaeté ao Farol da Barra, do Porto até o Largo dos Tamarineiros, na Ribeira, no carnaval passado, não se ouvia um elogio ao carnaval. Branco, preto, loiro e mulato, cada um a seu modo, reclamavam da “turistização” da festa que até vinte e um anos atrás tinha o sotaque genuinamente baiano. Nos jornais, colunistas famosos reclamavam; na rua, Carlinhos Brown pedia ao ministro da Cultura o fim do apartheid das cordas; no chão, Caetano Veloso brincava na pipoca de Margareth Menezes e se dizia contra os camarotes e as cordas; na tevê, Armandinho e outros desciam a ripa no mercantilismo carnavalesco; no Mudança do Garcia um artista plástico denunciava que “em todo bloco de corda há um pouco de navio negreiro” e “em todo camarote há um pouco de casa grande”. Na quarta-feira de cinzas o prefeito de Salvador anunciava nos jornais: “É preciso repensar o carnaval”.
O que se viu foi um carnaval completamente esvaziado do publico pipoca, aquela enorme multidão que deu voz ao carnaval baiano e que cada vez mais se sente alijado de sua festa. Da Castro Alves ao Campo Grande, do Farol da Barra a Ondina, podia se andar tranquilamente pelas ruas da folia, pois era pífia a presença do folião fora das cordas e o empurra-empurra, característica do carnaval de rua, este ano praticamente não existiu, exceto em alguns pontos badalados, como o em frente ao camarote de Daniela Mercury e do Expresso 2222, onde os artistas se esmeram no puxa-saquismo desenfreado.
Mas o carnaval não foi perdido de todo. Ainda sobra espaço para os foliões da velha guarda. O Centro Histórico é um deles. E se tornou o carnaval da família, com milhares de mamães corujas brincando com seus bambinos atrás de bandinhas de frevo e marchinha. A violência inexiste e quem ousar tocar axé, será sumariamente defenestrado do circuito. O contraponto é que a cada ano aumenta a afluência de público, principalmente o infantil, e brincar atrás de um bloco requer um verdadeiro teste de paciência e tolerância ao se tomar banho de spray de espuma, brincadeira preferida da garotada. Inocentemente, elas revivem os primórdios do carnaval, quando ainda se chamava “entrudo”.
Outro local aprazível é o bloco de protesto Mudança do Garcia, que sai na segunda-feira. Esse bloco é formado pelos sindicatos e arrasta uma multidão de foliões, sem corda nem segurança. Quem chegar cedo à concentração, ganha camisa dos vários blocos que acompanham o cortejo, animado por bandas e mini trios elétricos, e as músicas tocadas são as dos carnavais de antigamente: marcha, frevo, samba ou samba de roda. Uma grande parte dos participantes é constituída de jovens, o que significa que nem tudo está perdido. 
Hospedado no Farol da Barra, não poderia ir para casa sem apreciar a magnitude sublimada das estrelas da festa. Depois de curtir o carnaval de outrora, tomava uma overdose de axé musical antes de dormir e, para meu espanto, nossas divas se esmeraram em sucessos antigos, deixando para trás a fraca criação carnavalesca. Frevos e marchas podiam ser ouvidos constantemente, o que me trouxe a risonha esperança de que algo vai mudar sob o céu anil da mais velha capital do Brasil. 
Mas, voltando ao carrinho de cd pirata que repetiu a música “molhadinha” enquanto eu esperava o ônibus, a aberração musical incomodava os meus ouvidos e, quando pensei em pedir ao pirateiro para mudar a faixa do cd, notei que a maioria das pessoas presentes sacudia o corpo no ritmo do cavaquinho. Recolhi-me à minha insignificância e puxei conversa com uma senhora, acompanhada de duas adolescentes, provavelmente suas filhas. Tive a impressão de que ela também não estava gostando do que ouvia. Animei-me a falar da falta de imaginação (ou talvez excesso de intolerância de minha parte) dos compositores de tais músicas, quando ela me interrompeu para falar com as filhas:
– Olhaí a música que vocês gostam. Por que não aproveitam e dançam enquanto o ônibus não chega?
Por sorte meu buzú chegou e não precisei dar testemunho dessa decadência moral. O mundo se perdeu na indecência globalizada enquanto católicos e evangélicos preocupam-se apenas com o uso da camisinha ou com as pesquisas de célula-tronco, que podem salvar muitas vidas. Salvemos o mundo da indigência cultural e da mediocridade que a acompanha. 
Dançar é preciso, mas cantar é fundamental.



terça-feira, 1 de dezembro de 2009

OS SALVADORES DA TERRA

Cineas Santos

De SOS Planeta Terra


No milênio passado, trouxeram a Teresina um sábio para discorrer sobre questões ambientais. O cidadão, autor de um livro referência sobre chuvas ácidas, era professor-doutor não sei exatamente em quê. Por mais de uma hora, o moço verteu sabedoria por todos os poros e terminou sua peroração com o chavão apocalíptico: “Lembrem-se de que temos pouco tempo para salvar nosso planeta”. Tive a compulsão de questioná-lo sobre o poder e a responsabilidade que ele nos atribuía. Salvar a Terra? Isso dito por uma professorinha de escola de periferia até que se entende, mas por um sábio... Ora, a Terra, com ou sem a nossa presença, vai continuar existindo e parindo novas formas de vida. Quanto a nosotros, o máximo que podemos fazer é, se tivermos bom senso, prorrogar por mais alguns anos a nossa permanência nesta casca de noz. Nada além. Como aprendi que não se devem questionar os sábios, permaneci calado no meu canto.

Por razões que ignoro, os organizadores do evento pediram que eu me manifestasse. Limitei-me a afirmar que as minhas preocupações ambientais estavam centradas no meu quintal, na minha rua, na minha aldeia. O sábio, com um misto de ironia e desprezo, perguntou: “Quer dizer que você não se preocupa com o macro?” Peguei de bate-pronto: tanto me preocupo, meu irmão, que estou cuidando do micro. E, só de sacanagem, acrescentei: eu também me interesso pela Via Láctea, mas, no momento, estou tentando entender o mecanismo que acende os vaga-lumes. E mais não disse por que não vinha ao caso.

A lembrança desse fato ocorreu-me quando fui procurado por um grupo de jovens que queria a minha participação na “Marcha pela salvação do Planeta”, que se realizará antes da Conferência de Copenhague. Segundo um dos organizadores, “Precisamos pressionar os Estados Unidos e a China para que eles estabelecerem metas concretas de redução das emissões de CO2”. O garoto falava com tal convicção que quase me convenceu a participar da passeata salvadora. Lembrei-me de que, na remota década de 80, eu também andei “salvando o Planeta” em manifestações do gênero. Como já não tenho aspirações tão ambiciosas, perguntei-lhe: meu jovem, não seria menos complicado tentar convencer os bem-nascidos de Teresina a não lavarem seus carrões e carrinhos na beira do Parnaíba? Veja bem: os Estados Unidos não costumam ouvir a ninguém; a China, por seu turno, é muito longe. Por que não “pensar globalmente e agir localmente”, como apregoam os corifeus da ecologia?

Os jovens me fuzilaram com olhares reprovativos e se retiraram sem se despedir. Um deles chegou a declarar: “Não adiante discutir com esse tipo de gente: são todos iguais. Ambiciosos e egoístas, não pensam no futuro da humanidade”. Ao ver aqueles jovens idealistas partirem desapontados e enfurecidos, experimentei (por que não confessar?) uma pontinha de arrependimento. Meu Deus, se o mundo acabar em 2012, como preveem alguns profetas, seguramente a culpa será minha. Minha e de mais ninguém.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Mulher que se toca

Por Edna Lopes


De Autoexame


“... se tudo que você disse tivesse se transformado em ouro, se tudo que você sonhou fosse novo, imagine o céu bem lá no alto... (da cor do) azul do Caribe” [Caribbean Blue-Enia ]

Parte do trabalho que sempre fiz e faço é formação e sempre sou convidada por outros municípios para momentos assim com professores, conselhos escolares, conselho de educação, coordenadores pedagógicos e diretores. Certa vez fui convidada por um dos municípios alagoanos para realizar um trabalho de Avaliação da Aprendizagem para um grupo só de professoras mulheres. No relato da secretária de educação, um grupo difícil, com problemas de relacionamento, de convívio, um grupo que vivia se estranhando.

Perguntou se podia iniciar o trabalho só com dinâmicas de grupo e autoestima. Recomendei um profissional da área de Psicologia, pois, embora goste e utilize dinâmicas e outras estratégias lúdicas no meu trabalho, são sempre dentro de um contexto específico, voltadas para a questão ou reflexão em pauta. A secretária concordou comigo e providenciou o profissional adequado para aquela demanda e lá fomos nós fazer o trabalho.

Já que o profissional não se opôs, fiz questão de participar do trabalho junto com o grupo. Seria o momento ideal para nos conhecermos um pouco mais, já que ficaríamos juntas por uma semana. Muitas dinâmicas depois o grupo estava leve, descontraído.

Perto do meio-dia, o profissional colocou Caribbean Blue (Enia) no micro system e pediu para que deitássemos. Iniciou uma sessão de relaxamento, orientando a forma correta da respiração, sugerindo imagens, pensamentos. Com voz pausada, sugeriu que nos tocássemos. Mãos, braços, rosto, pescoço, seios. Do meu lado uma senhora já não tão jovem exclamou baixinho: “Sangue de Cristo!! Estou toda arrepiada!”

Precisei me controlar para não cair na risada. Percebi certo constrangimento em outras, mas essa senhora estava visivelmente apavorada com o que estava sentindo. Falei baixinho que se não estivesse se sentindo bem não precisava fazer, mas ela respondeu que tudo bem.

Minutos depois, já em círculo, o profissional pediu para que, quem se sentisse à vontade, avaliasse a atividade e se quisesse, comentasse também sobre o que sentiu da experiência do toque. Todas avaliaram, mas poucas ousaram comentar. Os risos amarelos diziam apenas “gostei muito”, “adorei”, “maravilhoso” e outros tantos elogios no gênero, mas havia nos olhares furtivos ou meio assustados um quê lúbrico, como se todas temessem a areia movediça do sentimento... Traduzi olhares de surpresa por terem ousado tanto. E mais: olhares também muito culpados por terem sentido algum prazer naquilo.

Ainda sem perceber onde o moço queria chegar, optei por defender a ideia do autoconhecimento, da importância que é conhecer nossos sentimentos, nossas limitações, nossas qualidades. A importância de conhecermos nosso corpo e nossas reações ao que nos cerca, ao que nos estimula e mobiliza. Lembrei a elas do quanto era importante esse “se tocar”, fazer o auto exame das mamas a cada mês, se olhar e se tocar para identificar qualquer alteração no corpo, salvar a própria vida.

- Tocar o corpo, para nós mulheres, é mais que prazer, é necessidade e não devemos sentir vergonha por isso – falei, passeando os olhos pelo grupo. Algumas assentiam, outras fugiam do olhar, riam encabuladas.

Aproveitei o silêncio que se fez e comentei do quanto é importante também conhecer o próprio corpo com relação ao nosso prazer, afinal não somos assexuadas, temos desejos, somos seres afetivos e se, culturalmente, nos cobram um papel passivo, receptivo, cabe a cada uma desconstruir essa imagem primeiro em nós mesmas, depois em quem conosco convive. Devíamos, sim, refletir por que se nossa educação marcadamente na versão religiosa nos inferiorizava tanto (mulher é o ser que induz o homem ao mal; tudo que se relacione ao corpo da mulher é impuro, é pecaminoso) e éramos nós mesmas a aceitar esse pensamento recorrente e a reproduzir isso nas nossas práticas como companheiras, mães e educadoras.

Finalizei citando Eduardo Galeano: “O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.” Não sei se me aprovaram, mas me aplaudiram.

O profissional aproveitou a deixa e comentou que tocar em si se aprende. Que é preciso gostar de tocar em si para gostar de tocar o outro. Se permitir apertar a mão, abraçar um amigo sem achar que isso já é “conjunção carnal”. Que na nossa cultura as relações afetivas reverenciam o toque como o gesto máximo, o coroamento do afeto e todas ali se abraçaram, acho eu, que para ratificar o que ele acabara de dizer.

Durante a semana tivemos muitos momentos de descontração. Bom demais o contato com aquelas mulheres! Na hora do cafezinho tinha sempre uma me fazendo confidências, me perguntando coisas sobre vida, relacionamento, educação de filhos. Muitas delas com muito mais idade que eu, mas curiosas como adolescentes descobrindo a vida. Voltei para casa cheia de presentes e com o coração transbordando de alegria pelo presente do convívio.

Lembrei dessa história porque, dia desses, encontrei Marta, a do arrepio, num evento, e depois do reconhecimento e do abraço de reencontro perguntei, maliciosa:

- E aí, Marta? Continua se tocando e se arrepiando? E ela, numa gargalhada:
- E apois!!!!



* Maceió, 27 de novembro, dia Nacional do Combate ao Câncer

Da série: VIDA DE PROFESSORA

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O livro na era virtual



Variações em torno do tema


Antônio Torres

(Texto escrito para a Semana de Comunicação PUC-Rio, e apresentado no dia 12/O5/09).

De Livro x Internet



Vou tentar responder agora a uma pergunta que me foi feita recentemente – via e-mail, como é de praxe -, por um ilustre militante do jornalismo impresso, chamado Audálio Dantas, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ex-deputado federal e ex-diretor da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, vice-presidente da ABI, a Associação Brasileira de Imprensa, até há poucos dias, e que hoje é o diretor-executivo da revista Negócios da Comunicação. A pergunta, para a qual não encontrei de estalo uma resposta convincente, é esta:

- Você vê o leitor do futuro desprezando o volume em papel para ler livro na Internet?

A dúvida entre um sim e um não me remeteu, agora, a leituras, pesquisas, conversas, entrevistas, reflexões. Ao ficar ligado na questão, percebi o quanto ela está sendo debatida em programas televisivos, seminários acadêmicos e na imprensa, que também está na berlinda, o que vem sendo exposto pelos próprios jornalistas, como vimos em uma matéria publicada na capa do Segundo Caderno de O Globo, no dia 3 deste mês de maio. Tratava-se de uma entrevista do jornalista e escritor norte-americano Gay Talese a Marília Martins, correspondente daquele jornal em Nova York. Como sabemos todos, Gay Talese é um dos inventores do “New Journalism”, nos anos de 1960 - assim como os pesos-pesados das letras norte-americanas Norman Mailer e Truman Capote -, e se celebrizou com as reportagens (entre elas a sempre lembrada Frank Sinatra está resfriado), que foram publicadas no livro cuja primeira tradução no Brasil teve o título Aos olhos da multidão. Mas sim. Do alto de seus 77 anos, e em plena atividade, ele é um dos convidados mais aguardados da próxima Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. Daí o motivo da entrevista mencionada, da qual destaquei duas perguntas e suas respostas, exemplares para o caso que nos concerne.

Marília Martins: Vamos falar um pouco do jornalismo atual. O senhor é autor de “O reino e o poder”, uma história social do jornal “The New York Times”, onde trabalhou por muitos anos. O que o senhor acha da crise da imprensa, com a queda drástica de vendas dos jornais impressos, incluindo o “Times”, diante da alta audiência de sites e blogs? O jornalismo investigativo, reinventado pelo senhor nos anos 60, está com seus dias contados?

Talese: De jeito nenhum! Uma boa história sempre terá leitores. E o jornal impresso tem algo de insubstituível: ele dá aos leitores uma visão do conjunto. Um bom leitor não é aquele que é previamente orientado por um objetivo ou um interesse. Um bom leitor passeia pela leitura e vai aos poucos juntando pedaços da sua história. Isto só o jornal impresso pode dar.

Marília Martins: Mas o senhor não acha que a difícil situação financeira atual pode levar o “The New York Times” à falência ou então fazer com que a família Sulzberger perca o controle da empresa? O empresário mexicano Carlos Slim já se tornou um sócio importante do jornal.

Talese: Não acho que a queda atual de vendas seja uma ameaça ao jornalismo impresso. O “New York Times” ainda é um dos melhores jornais do mundo, um dos que mais investem em jornalismo investigativo. Tenho 77 anos e já vi muitos jornais e revistas fecharem durante a minha vida. Mas o interesse por boas histórias, bem apuradas e bem escritas, nunca diminuiu. Acho que a direção do “Times” cometeu alguns erros estratégicos, como o de permitir o acesso ao conteúdo de graça pela Internet. Jornalismo bem feito custa caro, e o leitor precisa valorizar o que está lendo. (Ele segue apontando também erros editoriais do “Times”, como o de não ter tido uma postura crítica em relação à invasão dos Estados Unidos ao Iraque, em 2003, e o da demora do jornal para denunciar as mentiras da administração Bush sobre as tais armas de destruição em massa, concluindo que a imprensa americana perdeu muito de sua credibilidade naquela época).

Por aí podemos deduzir que nem todo mundo faz coro com os que acreditam que os meios de comunicação impressos estão com os seus dias contados. No caso do livro, há evidências de que a Internet o beneficia em várias frentes, a começar pelo seu uso pelas editoras como espaço de propaganda e vendas. Uma notinha no caderno Prosa & Verso do dia 2 de maio passado não deixa dúvidas quanto à abrangência desses benefícios: “O site Estante Virtual, espécie de Google dos sebos brasileiros, atingiu duas marcas impressionantes semana passada: chegou aos 500 mil usuários cadastrados e 5 mil cidades diferentes atendidas. O leitor número 500 mil é de Ji-Paraná, em Rondônia. A cidade 5 mil é Cacimba de Areia, um vilarejo de 3 mil habitantes e nenhuma livraria, na Paraíba. A moradora de Cacimba de Areia, Eliana Xavier, diz que compra livros numa cidade vizinha”.

O quê? Já há leitores em Ji-Paraná e Cacimba de Areia? Bendita Internet, diria agora o poeta Castro Alves - personagem inesquecível de um filme do vosso professor Sílvio Tendler -, e que romanticamente bradava:

O sec’lo, que viu Colombo,
Viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou...

Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto -
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.

Bendito foi o dia em que li este poema pela primeira vez. Chama-se O livro e a América. Foi na Seleta Escolar, o livro de leituras da minha infância, numa terra sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, como cantava Luiz Gonzaga, o rei do baião, e que hoje é uma cidade enfeitada de antenas parabólicas e conectada à Internet. Mas foi no livro com o poema de Castro Alves que descobri o mundo – o novo mundo que Gutenberg criou. Recordemos um pouco da sua história.

Se no princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, o verbo se fez literatura, já como uma criação do homem, a quem Deus deu o verbo. E ele, o bicho-homem, fabulista, fabulador, fabuloso por natureza, da palavra falada chegou à escrita. E ela, a literatura, se desenvolveu com o próprio desenvolvimento da espécie, pela sua necessidade de contar histórias, em verso e em prosa, e da preservação da sua memória. Mas a literatura só ganharia existência concreta, ou seja, corpo, forma, difusão e perenidade, a partir do advento da imprensa, no século 15 depois de Cristo.

Povos primitivos já desenvolviam uma rica produção de lendas, mitos e histórias, por vezes associada à música, à dança, à dramatização, em espetáculos religiosos e profanos. E assim se formou a tradição da literatura oral, que gerou grandes poemas épicos, os textos sacros e as representações dramáticas das civilizações antigas da Europa e da Ásia. Na Idade Média, baladas, poemas, contos gestas, adágios e adivinhações da cultura popular passaram à forma escrita através de mãos eruditas. Os textos primevos eram registrados em rolos. Depois, os pergaminhos foram sendo cortados em folhas, que eram dobradas e costuradas em cadernos (codex). A escrita era feita com pincéis, juncos ou penas. No Ocidente, os manuscritos eram realizados nos mosteiros e, a partir do século 13, nos grandes centros universitários. O avanço seguinte viria com a palavra impressa, no século de Gutenberg, o inventor dos caracteres móveis que dariam origem à tipografia, e daí às artes gráficas, à imprensa, sem as quais a indústria editorial não viria a existir.

Resultaram desse processo obras como o Saltério de Mains, de 1457 - tido como o primeiro livro de importância impresso -, o Mahabharata e o Ramayana, da Índia, a Odisséia e a Ilíada, de Homero, o Edda escandinavo e a Bíblia.

Foi no século 16 que a imprensa se expandiu pela Europa e se difundiu também na América (México, 1540), na Índia (Goa, 1557), e nos países eslavos (Moscou, 1563). Sua chegada ao Brasil demorou a acontecer, porque Portugal não admitia sua existência na colônia. E teria demorado muito mais, se a corte portuguesa não tivesse se transferido para o Rio de Janeiro em 1808, trazendo uma tipografia completa. Naquele mesmo ano D. João VI, num único decreto, criava a Impressão Régia e, também, a censura prévia. Ainda no século 19, vários aperfeiçoamentos técnicos, como a invenção da prensa metálica e a fabricação de papel em bobina, permitiram aumentar consideravelmente a tiragem e reduzir o custo das impressões. No começo do século 20, o livro só tinha o jornal como concorrente, e assim mesmo indireto. Depois vieram as revistas, o rádio, o cinema, a televisão, discos, fitas, videocassetes, etc. e... a Internet!

Alta tecnologia, aqui, agora e para o futuro – já dizia o slogan da IBM, uma empresa do tempo em que computador era chamado de cérebro eletrônico, que sabia tudo, quase tudo, mas era mudo, assim dizia a letra de uma música de Gilberto Gil, enquanto que nos Estados Unidos um anúncio intitulado “Computers don’t cry” parecia chamar a atenção para os aspectos desumanizantes dos avanços tecnológicos. Hoje, constata-se que tal pressentimento não era infundado. “Muitas pessoas estão trocando relações pessoais pelas virtuais”, lamenta um dos filhos do escritor que vos fala, e que vive numa cidade chamada Reno, no estado de Nevada, USA, de onde comanda o Clube do Hardware, um site sobre informática e tecnologia que funciona como se fosse uma revista virtual, com artigos, tutoriais e testes de equipamentos, além de um fórum de discussões extremamente ativo em que usuários podem trocar experiências e soluções de problemas, e que tem 4 milhões de leitores por mês. Isto mesmo: 4 milhões!

- Por esse número dá para perceber que o Clube do Hardware tem um alcance que nunca teria se fosse uma revista “de verdade”. Só para colocar as coisas em perspectiva, revistas de informática no Brasil possuem uma tiragem média de 20 mil exemplares/mês – o filho esclarece ao pai. Ele, o filho, se chama Gabriel. Também escritor, tem 18 livros publicados, entre eles o Manual de hardware. E teve sua carreira altamente beneficiada pelo seu site. Por entender mais do assunto do que o pai foi por este entrevistado, via e-mail:

- O que você pensa da Internet, hoje e para o futuro?

A Internet é uma ferramenta fantástica, mas trouxe o problema inverso do que tínhamos antes dela. Se antes tínhamos falta de informação, agora temos excesso de informação. O desafio é saber filtrar. Afinal a Internet está cheia de “a última onda do momento” (ex: Orkut, Twitter, Facebook, Flicker), e se você se deixar levar você não faz mais nada na sua vida a não ser ficar pendurado na Internet.

Eu fico triste em ver que muitas pessoas estão trocando relações pessoais por relações virtuais. Neste mundo conectado de hoje é raridade receber ligação de amigos. É tudo via e-mail, “torpedo”, MSN, “scrap”, etc. Eu fico me perguntando onde isso vai parar.

- A Internet matou as produtoras de discos, e vai matar a imprensa e as editoras de livros. Certo ou errado?

A verdade é que a Internet está possibilitando que artistas e escritores possam divulgar, lançar e vender suas próprias obras e ter um alcance de mercado nunca antes visto na história. Mas este alcance é relativamente restrito; para dar o próximo salto artistas e escritores precisam contar com a distribuição no mundo real. E para isso precisarão contar com as produtoras e editoras tradicionais. Mas a vantagem é que se antes um artista ou escritor em início de carreira tinha as portas fechadas, com a Internet é possível mostrar às produtoras e editoras que há demanda por um determinado trabalho. Outro fator que não podemos nos esquecer é que apesar de escritores e músicos em um primeiro momento poderem até vislumbrar a possibilidade de vender suas músicas ou livros através da Internet, por não estarem encontrando um caminho para a comercialização de suas obras, a maioria não quer se envolver com isso, e acredito que a maioria dos artistas tenha como objetivo final ter um alcance fora da Internet.

E quanto à imprensa, o público sempre precisará de veículos que façam o “dever de casa” e verifiquem a veracidade das notícias, pois o que há de sobra na Internet é informação errada. Inclusive jornalistas preguiçosos foram vítimas de inúmeras “barrigas” por terem confiado em algo publicado na Internet.

É claro que em alguns nichos de mercado a Internet pode sim acabar se tornando o meio padrão para a veiculação de trabalhos intelectuais, como é o meu caso na divulgação de notícias de informática e como é o caso da música eletrônica de vanguarda.

- Os produtores de discos, livros, jornais, revistas etc. estarão perdendo ou ganhando com a Internet?

- A meu ver, todos estão ganhando. Como disse, a Internet é hoje uma poderosa ferramenta de divulgação e de localização de novos talentos. Fora todo o funcionamento inerente à Internet, onde é fácil e rápido transferir arquivos e encontrar colaboradores em qualquer parte do mundo. Torna-se fácil, por exemplo, encontrar um especialista em qualquer área do conhecimento que você possa imaginar.

Comentários Adicionais

Eu fico realmente triste quando uma parcela da mídia tenta culpar a Internet por crimes. Como se a Internet tivesse inventado a pirataria, a pedofilia e assassinos. Aqui nos EUA um estudante de medicina matou a namorada e os canais de TV rotularam o garoto como “O Assassino da Craigslist”. Ora, então se o camarada tivesse conhecido a namorada dele por telefone ele seria vendido pela impressa como “O Assassino da Oi”? Duvido.

Ou então culpar a Internet pelos altos índices de pirataria, que particularmente no Brasil é um problema que não tem muito a ver com a Internet. Basta parar qualquer cidadão em qualquer rua do Rio de Janeiro e perguntar se ele sabe o que é “Bit Torrent”. Obviamente ele vai ficar olhando para sua cara sem entender a pergunta. Mas se você perguntar à mesma pessoa onde você pode comprar DVD pirata ele vai te mostrar o caminho direitinho.

Ou matérias onde fica parecendo que é a coisa mais fácil do mundo encontrar pedofilia na Internet, deixando pais preocupadíssimos. Sinceramente, é muito mais fácil encontrar uma garota menor de idade às onze da noite ali pelas bandas da Help do que na Internet, se é que você me entende.

Continuação da peleja livro impresso versus e – book

A febre do momento se chama Kindle, um leitor de e – books do tamanho de um livro, lançado pela Amazon para ser usado fora do computador, e que custa US$ 359. O arquivo é transposto diretamente do aparelho (sem fio), com débito automático no seu cartão de crédito. Já está com um acervo de mais de 270 mil livros, além de jornais e revistas. Você pode carregar a quantidade que quiser, desde que pague por isso. Os preços são vantajosos, podendo um livro impresso que custa 17 dólares cair para 7, no Kindle.

Desconfiado de que no Kindle só autor norte-americano tem vez, o autor destas linhas buscou na Amazon um de seus títulos traduzidos em inglês. A capa surgiu na tela instantaneamente, com uma legenda: “Peça ao seu editor para pôr este livro no Kindle”. Entendido: não basta estar disponível no catálogo da Amazon para entrar no Kindle. Tem que fazer acordo.

No Brasil, ainda passamos ao largo disso, e temos bons antecedentes para desconfiarmos que o Kindle seja mais um veículo de difusão da cultura norte-americana no mundo, como a TV a cabo e tudo o mais. É esperar, de antena ligada, para captar os sinais de que vamos nos inserir nisso ou não. Enquanto isso, o debate continua: o leitor do futuro desprezará o volume em papel para ler livro na Internet?

- Na minha opinião, quem tem que se preocupar com isso são as indústrias de papel – diz Sérgio França, diretor editorial adjunto do Grupo Record, um dos maiores do país.

O seu depoimento, na íntegra:

- O papel é somente o meio, a literatura, para usar a palavra da moda, conteúdo. Mas não creio que o e - book vai substituir o livro como o conhecemos tradicionalmente. Todos sabem da praticidade deste “produto” que é fácil de levar, pode ser aberto em qualquer lugar e a qualquer hora, até depende de luminosidade para ser lido, mas não tem bateria que acabe no meio da leitura. Não tenho nada contra o e – book. Se é mais uma plataforma que pode disseminar o hábito da leitura, que seja bem-vindo. Independente do suporte, a literatura continuará sendo escrita por escritores – acho que temos de nos preocupar é se inventarem o escritor virtual... -, as editoras vão continuar contratando-os, defendendo seus interesses, como sempre. Agora, pergunto: você tiraria da mochila um e - book que custa US$ 600 para ler seu livro no trajeto, digamos, entre Copacabana e São Cristóvão, aqui no Rio, no meio de um ônibus 474? Com um livro de papel eu faço isso sem temer nenhum assalto.

Deu no Ideias: Pendenga Google

Coluna: Informe Ideias.
Colunista: Álvaro Costa e Silva.
Veículo: Caderno Ideias/ Jornal do Brasil.
Data: 2 de maio de 2009.

“O Departamento de Justiça dos EUA está de olho no acordo que o Google fez com autores de livros e editoras do país, em outubro, para que obras literárias ficassem disponíveis ao público por meio do Google Books Search. Têm aparecido, no país, várias manifestações contra o acordo, de grupos que alegam que o mecanismo de busca irá lucrar, de forma exclusiva, com o acesso aos textos. Pela combinação judicial, as receitas seriam divididas entre o Google, os autores dos livros e as editoras – porém, ficam de fora dessa partilha milhões de obras literárias cujos autores morreram ou são anônimos”.

Quinta-feira, 7 de maio

Caderno Economia de O Globo, página 36:

Kindle em versão de luxo para ler jornais

Aparelho vai custar US$ 489

Do New York Times (com agências internacionais)

Nova York – A Amazon apresentou ontem a versão maior do leitor eletrônico de textos Kindle, com foco em livros didáticos e jornais. [...] O diretor-executivo da empresa, Jeff Bezos, disse, no lançamento, que o novo Kindle era um passo na direção de uma “sociedade sem papel”. Ele também anunciou ter feito acordos com editoras, jornais e universidades para expandir o conteúdo do aparelho. Um desses acordos foi anunciado por Arthur Sulzberger Jr., presidente do “New York Times”.
E etc.

Sábado seguinte (9 de maio).

Capa do Ideias:

Direitos autorais

Revolução
ou mão
grande?

Acordo do Google com autores e editoras provoca polêmica no mundo afora, mas tem passado despercebido no mercado brasileiro.
(A matéria continua na página 3, com o seguinte título: Uma biblioteca de Babel restrita aos norte-americanos. E não encontra respaldo para uma repercussão nacional. Praticamente todos os autores brasileiros entrevistados não estão interessados no assunto).

Mesmo sábado.

Capa do Prosa & Verso (O Globo):

A reinvenção
do livro

Seminário sobre história da edição discute os impactos culturais das transformações que marcam a era digital.

Assim começa a matéria assinada por Rachel Bertol:

“Anos de estudo sobre a história do livro e da edição dão ao pesquisador francês Jean-Yves Mollier a certeza de que, num futuro próximo, nascerá um novo gênero literário a partir dos recursos tecnológicos da era digital”.

Quem é Jean-Yves Mollier? Trata-se do professor que abrirá na Academia Brasileira de Letras (13/05/09) o II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial. Os debates prosseguirão por mais dois dias, na UFF. É coisa grande, que envolve 300 pesquisadores. Comentário de Rachel Bertol: “No momento em que cresce a certeza de que o livro de papel terá substitutos, em novos formatos, a pesquisa sobre seu sentido histórico ajuda a compreender a possível obsolescência de um suporte que tinha aura de eterno. Compreender não para congelá-lo no passado, mas para sobreviver às transformações”.

É preciso dizer mais?