Mostrando postagens com marcador CRÔNICAS. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador CRÔNICAS. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A HERESIA SAGRADA

Imagem: blog Canção Nova


Quando eu era menino lá no interior da Bahia, minha mãe me exibia orgulhosa para as amigas e falava triunfante:

– Escrevam aí: esse menino, quando crescer, vai ser padre! Um belo padre!

Mais não poderia dizer por que, tendo filho padre, teria comunicação direta com Deus. E estaria eu hoje de batina se no despontar de minha infância não tivesse caído no vício de encostar jega no barranco e descoberto maravilhado que o paraíso é aqui mesmo. Mas minha mãe não desistiu de seu intento e, quando nos mudamos para Alagoinhas, me obrigou a segurar no badalo do padre, como assistente de missa, ou coroinha, como é mais conhecido o garoto que toca o sininho e segura a bandeja na comunhão. A emenda saiu pior do que o soneto, pois angariei mais um vício no meu livro de pecados: o de encher a cara de vinho canônico no vacilo do padre. Descoberto, fui expulso do Clube São Domingos Sávio, o padroeiro dos coroinhas.

O tempo passou e finalmente minha mãe se convenceu de que pau que nasce torto morre torto. Escreveu ao Vaticano pedindo suas escusas ao papa e carinhosamente me expulsou de casa. Dentre suas crenças, uma dizia que todo herege está fadado a ser assado na fogueira santa e ela não queria se envolver com os tribunais eclesiásticos. Sem ter para onde ir, zanzei pelo Baixo Alecrim, a zona da cidade, e fui consolado por mulheres soturnas que bebiam feito esponja e fumavam como condenadas. Senti-me o próprio Salomão e suas quase duas mil mulheres até o dia que o comissariado de menor resolveu pedir minha identidade. Foi o supra-sumo da humilhação: expulsaram-me do pedaço e as mulheres que eu amava passaram a noite no xilindró.

Envergonhado, peguei um pau-de-arara e dei com os costados na Baía de Todos os Santos e por lá fiquei por longos anos a fio a consumir batida de limão e a admirar as belas mulheres da praia do Porto da Barra. Um dia a ressaca bateu forte e, quando dei por mim, era protagonista de um cerimonial de núpcias na igreja do Rio Vermelho. Nesse dia, tornei-me amigo do padre e voltei a freqüentar a sacristia, o que deixou a minha mãe esperançosa, mas depois ela descobriu que as minhas idas diárias à igreja eram apenas para entornar o vinho canônico. Dessa vez, acompanhado do padre, um biriteiro de marca maior. Mas ele não resistiu à sedução das noitadas e sucumbiu aos olhares lascivos de uma de suas beatas: sem pestanejar, largou a batina para se casar e abandonou os amigos da garrafa, vindo a se suicidar tempos depois, talvez, por solidão, conforme está relatado no conto “Carta de Apresentação”. Que bela ironia: enquanto padre, vivia na esbórnia; largou a batina e deixou subjugar-se pela mulher como se fosse boi de canga.

Assim fui consumindo os meus pecados, matando a minha mãe de tristeza, até que no ano passado me convidaram a escrever o prefácio de um livro de conteúdo religioso, com a devida aprovação do bispo da região. Desafio aceito, de repente me vi debruçado na Bíblia Sagrada à procura de fundamentos para a empreitada e acho que dei conta do recado. Dentre todos os textos do livro, o único leigo é o meu, apesar do ceticismo dos amigos e até ironia de alguns, principalmente dos meus irmãos e da minha inestimável consorte. Já a minha mãe, quando recebeu não-sei-quantos exemplares para distribuir nas igrejas de sua cidade, fez questão de levar o primeiro exemplar ao bispo e ainda desdenhou com o orgulho de mãe quando fala do filho pródigo às amigas:

– Tá vendo, Dom Raimundo, meu filho escreveu melhor do que os padres e vocês ficam dizendo que ele é um herege. E agora, como sustentar sua heresia se pode até ser canonizado pelo Papa?

O bispo baixou a cabeça sem dizer nada. Tempos depois me escreveu reticente e cerimonioso, como a escrever ao Papa. Queria a minha intervenção no Vaticano para sua promoção a cardeal.



segunda-feira, 27 de abril de 2009

CADA DOIDO COM SUA MANIA

O primeiro doido que conheci respondia pela alcunha de Doido Ursino, mas nunca o vi rasgando dinheiro. Pelo contrário, quando caía em suas mãos uns tostões vadios, o mesmo corria para a venda de Josias Cardoso e gastava com doces e pães. Também não jogava pedra nos outros nem ameaçava as criancinhas. Para não dizer que não tinha um comportamento atípico, gostava de soliloquiar. Mas quem, na amplidão daquela solidão, não tinha o hábito de falar sozinho?
Ao contrário dele, Zé Doidinho falava pelos cotovelos quando havia alguém disposto a escutá-lo. Apesar do apelido sugestivo, tinham-no como um sujeito normal. A diferença estava no fato de ser o Doido Ursino um cidadão sem eira nem beira, enquanto Zé Doidinho era herdeiro de algumas dezenas de cabeça de gado.
Neste entretanto Lindemberg de Enoque era um sujeito normal. Trabalhava para o Governo em Alagoinhas e quando tinha folga voltava para o arraial do Junco ao encontro dos pais e amigos da birita e da sinuca. E foi numa noite comum de folga, depois de desarrumar a mala, que ele surtou. Quebrou os móveis da casa e saiu correndo pela rua a jogar pedras nas pessoas. Deu muito trabalho para entrar no Jipe da Prefeitura e seguir viagem para uma clínica especializada em Alagoinhas.
Esses doidos da minha infância em nada se comparam aos doidos cibernéticos que conheço, que surtam de repente e aprontam mil loucuras sob o olhar complacente do monitor. Há os ladrões de identidade, os copiadores de textos, os que encarnam personagens de revistas em quadrinho e aqueles que pensam ser Manuel Bandeira ou Camões. É muita doideira virtual, principalmente nesses sites e grupos de Literatura.
Sexta-feira passada recebi uma mensagem de alguém que se dizia filho de uma dessas amigas virtuais anunciando a sua morte. Sem entrar em detalhes, dizia que a mãe havia se suicidado na noite anterior, que não haveria velório nem enterro. O corpo seria doado para uma faculdade de medicina. A mãe pedira apenas reza. Como bom cristão que sou, procurei uma igreja e mandei rezar missa na intenção de sua alma. A morte, por si só, é algo que nos deixa transtornado. Imagine receber a notícia do suicídio de uma amiga, apesar de virtual, logo cedo da manhã! Mesmo inocente, não há como se evitar certo sentimento de culpa pelo acontecido, principalmente quando se tem consciência de que o ato do suicídio está em envoltório de fatores externos e que falhamos como amigo.
Após dois dias de sofrido pesar, recebi a notícia de que tudo não passara de um surto psicótico da suicida. Ela mesma escrevera a mensagem para ver a reação dos amigos no seu post mortem. Estava vivinha da silva, gozando de plena saude e rindo do desespero das pessoas. Sendo escritora, confundiu-se com os personagens de suas estórias, achando que poderia morrer e ressuscitar quando bem quisesse, sem pensar nas consequências dessa loucura.
Achou magnífico ressurgir das cinzas como se de fato fosse o pássaro mitológico, sem levar em conta aquela estória do menino mentiroso, que no dia que estava se afogando de verdade ninguém o salvou pensando tratar-se de mais uma de suas mentiras. Assim, quando chegar a hora final da nossa Fênix, quem haverá de acreditar e chorar o acontecido? Se bem que, para mim, ela morreu mesmo na quinta-feira, 23.


segunda-feira, 13 de abril de 2009

TIRADENTES: HERÓI OU PARVO?


Charge do Clayton


Hoje comemora-se o aniversário de enforcamento e esquartejamento do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o inconfidente mineiro, também conhecido como Tiradentes, precursor da nossa Independência, assunto debatido exaustivamente nas aulas de História do Ensino Fundamental e esquecido nas outras séries do ensino subsequente. Como o brasileiro tem memória curta, quase nenhum adolescente ou adulto se lembra mais quem foi o nobre mártir.

Para aqueles que hoje têm “uma vaga lembrança”, ou os que nunca frequentaram um banco de escola e aprenderam a ler pela Internet, falarei um pouco de um dos nossos heróis, porém devo ressaltar que a História não tem verdade absoluta nem versão definitiva, podendo haver controvérsias ou teses dos adeptos do “Muito Pelo Contrário”, principalmente sobre a titularidade de herói dada a Tiradentes e a real importância da Inconfidência Mineira sobre o advento republicano, vez que revolução se faz com armas e homens e os inconfidentes sequer tiveram tempo de dar um tiro. E na hora do pega pra capar, poucos foram condenados.

Assim como o ouro de Serra Pelada colocou o estado do Pará em posição econômica de destaque, para mais tarde os tucanos entregarem sua riqueza às mineradoras internacionais, nas primeiras décadas do século XVIII a Capitania de Minas Gerais viveu o seu apogeu aurífero, transformando-se em uma das mais prósperas da colônia, surgindo vários núcleos habitacionais no entorno das minas, florescendo ricas cidades, hoje chamadas de “cidades históricas”, a exemplo de Ouro Preto, São João del Rei, Mariana, etc. e tal. Ao contrário do que ocorreu em Serra Pelada, naquela época havia um rígido controle da Coroa sobre as minas e os mineradores. Cobravam-se impostos extorsivos e se promovia um rigoroso combate ao contrabando. Quando o ouro começou a escassear, na segunda metade do século XVIII, Sua Majestade Maria I, rainha de Portugal, não corrigiu a tabela de impostos e muita gente boa foi à bancarrota, endividada até o pescoço, sem condições de honrar suas dívidas com o Tesouro d’além-mar.

A corrida ao ouro transformou-se na maratona do desespero quando a Coroa resolveu cobrar os impostos atrasados de mineradores e não mineradores, aos moldes da Receita Federal de hoje. Com uma pequena e fundamental diferença: quem não pagasse, ia ver o sol nascer quadrado e teria os bens confiscados pelos enviados da Rainha. A tal operação pente-fino chamava-se “Derrama”, e esse nome não foi dado pela Polícia Federal.

Joaquim José da Silva Xavier, como se vê pelo “da Silva”, nasceu um autêntico brasileiro: pelo nome e pelas dívidas. Órfão aos nove anos da mãe, e aos onze, do pai, pequeno fazendeiro da hoje cidade de Tiradentes, foi morar com seu padrinho, o cirurgião Sebastião Ferreira Leitão, mais conhecido como Dr. Tião, pois, no Brasil, desde o seu Descobrimento, todo José é Zé, todo Manoel é Mané e todo Sebastião é Tião. Em Alagoas, todo Benedito é Biu desde a colonização.

O nosso herói e mártir ou mártir e herói - tanto faz, pois a ordem dos tratores não altera o viaduto - logo cedo virou ajudante do seu padrinho. Não por livre e espontânea vontade, mas porque era obrigado a trabalhar para pagar a comida que comia. Deste modo,  tornou-se um exímio tirador de dentes, sendo procurado pelos dentes podres da região e de outros cantos. Por causa da profissão, deram-lhe o epíteto de Tiradentes.

Cansado de tanta sangria e mau hálito, ainda jovem, mudou de profissão: comprou uma mula e virou mascate, comprando e vendendo mercadorias de Minas para a Bahia e vice-versa. Cansou-se das traiçoeiras e perigosas estradas “baianeiras” (mistura de baiana com mineira), cheias de salteadores e cobradores de impostos, pegou as economias que tinha juntado no seu tempo de arrancador de dentes, vendeu a mula e comprou umas terrinhas e quatro escravos. Não sabendo lidar com terras ou com escravos, faliu em tempo recorde e por pouco não virava escravo dos quatro escravos.

Aos trinta anos foi ser alferes da 6ª Companhia do Regimento de Cavalaria Paga de Minas Gerais (posto, hoje, equivalente ao 2º tenente do Exército), sendo destacado para missões perigosas de combate ao banditismo e ao contrabando de ouro, obtendo êxito total, promovendo a limpeza da região aurífera dos meliantes e contrabandistas.

A Conjuração Mineira foi um caldeirão de interesses endêmicos e convergentes, onde se misturaram interesses econômicos, ideário libertário e maçonaria e, se Tiradentes não tivesse se transformado em herói, podia ser chamado de inocente útil, pois, revoltado com sua promoção a capitão que nunca chegava por falta de um sobrenome de peso ou de padrinhos poderosos, indignado também com a pobreza que lhe rodeava, era a pessoa ideal para boi de piranha dos conspiradores, caso algo desse errado. Tanto contavam com um revés, que nunca deixavam prova documental de suas reuniões. Eram tantos os conspiradores que o conde de Barbacena, governador de Minas Gerais, mandou suspender as investigações por temer despovoar a capitania. Desconfia-se também que houve intervenção da maçonaria junto à Corte, pedindo pelos conjurados presos e por outros que ainda poderiam ser e não foram.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade era o lema dos “Pedreiros Livres”, os maçons, movimento criado na França e que dinamitou a monarquia naquele país, cuja revolução, coincidentemente, começou dois meses depois da data marcada para a Conjuração Mineira. Na bandeira dos inconfidentes havia um triângulo semelhante ao triângulo da bandeira revolucionária francesa, que justificaram como a Santíssima Trindade. Ser maçom declarado, naqueles tempos, era pedir para morrer queimado na fogueira santa da Inquisição.

Não foi por dinheiro que o coronel Joaquim Silvério dos Reis traiu os seus companheiros. Foi pela falta dele, para pagar as dívidas com o governo e suspender o processo de sequestro de seus bens, movido pelo fisco. De nada adiantou sua ignominiosa atitude: morreu pobre e miserável na capital do Maranhão. 

Havia também mais dois delatores: os militares portugueses Basílio de Brito Malheiros e Inácio Correia Pamplona, mas os livros de História só dão destaque ao coronel Silvério dos Reis.


Um bom advogado teria provado que um simples alferes não poderia jamais comandar seu comandante (Silvério dos Reis que era coronel e comandante do Regimento de Cavalaria), muito menos o clero, os intelectuais e a elite política e econômica da então região mais rica da colônia. Mas a farsa estava montada e Tiradentes passou três anos isolado na prisão da Ilha das Cobras. Foi condenado à pena de morte na forca juntamente com mais treze companheiros, porém, na hora da cobra fumar seu cachimbo de cânhamo, sobrou apenas para ele, que, além de “zé”, era um “da silva”.





terça-feira, 31 de março de 2009

A Nova Versão da Paixão de Cristo



“Coelhinho da Páscoa, que cores tu tens?” D.P.

Na Semana Santa é comum as cidades de interior encenarem a Paixão de Cristo pelas ruas, com grande participação popular, quer como atores, quer como figurantes, mas a maioria é de espectadores aflitos com a catástase bíblica. Em uma cidadezinha do interior de Alagoas, que muito lembra o arraial do Junco, essa representação teatral vem de longos anos e desde a sua primeira encenação que os atores são os mesmos, apesar do tempo a cada ano talhar novos sulcos no rosto do elenco.
No ano passado, faltando um mês para a apresentação do espetáculo, o diretor reuniu a trupe e falou sem meias palavras:
– É o seguinte pessoal: há muito tempo que estamos com as mesmas pessoas representando a Paixão de Cristo e alguns personagens já não convencem mais, pois ficaram defasados do projeto original. Este ano haverá mudanças no elenco e quero a compreensão de todos, pois não é mais possível continuarmos apresentando um Cristo careca, gordo, barrigudo e próximo dos sessenta anos. E Maria Madalena, então? Está vinte anos à frente da verdadeira. Pilatos? Né bom nem falar! Vocês já viram algum Pilatos desdentado e adunco?!
Ninguém ousou contestar. Contra fatos não há argumentos. A realidade se impunha cruamente quando se olhavam no espelho. Já era passada a hora de pedirem o boné.
Abriu-se a temporada de teste cênico. Vários candidatos se apresentaram. Um ator jovem, malhado e cheio de ginga foi o escolhido para fazer o papel de Jesus Cristo. Tatuagem no braço, brinco na orelha, não lembrava um mínimo o personagem central, mas levava uma carta de apresentação do Prefeito, principal financiador do espetáculo. Pelo menos tinha uma aparência Global, arrancaria suspiro das mulheres, tal qual Tiago Lacerda em Nova Jerusalém.
O antigo ator principal não ficou sem função. Em reconhecimento aos longos anos de serviço prestado à companhia teatral, arranjaram-lhe o papel do soldado que chicoteia Cristo no caminho do Calvário. Diante do destacamento policial da cidade, ele parecia um atleta e ninguém se lembraria do fato de que soldados romanos não se tornavam sexagenários.
Depois do clássico julgamento em que Pilatos lava as mãos, Jota Cristo foi condenado sem direito a recorrer aos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Sem maiores delongas, puseram a coroa de espinho de plástico flexível na sua cabeça, e o empurraram aos tapas para a saída, onde a cruz de isopor estava à sua espera. Caminhou trôpego para cumprir as profecias, seguido por uma multidão de figurantes e espectadores. Estava escrito nas estrelas e assim teria que ser. Algumas pessoas mais sensíveis choravam às cântaras com o realismo do espetáculo e se auto-flagelavam açoitando as costas com galhos de cansanção. Não bastava a dor: tinham que sentir o ardor e assim expiar a culpa do suplício de Nosso Senhor Jesus Cristo no dia de Sua Paixão e Morte.
A encenação seguia normalmente até a hora que o soldado chicoteador, com raiva do ator que havia tomado o seu lugar, deu uma chicotada violenta, imprimindo rancor e ódio ao látego. O intérprete de Jota Cristo acusou o golpe, sem denunciar a dor. Pediu baixinho, rangendo os dentes:
– Devagar, cara! Isso aqui é uma encenação! Bata leve, de mentirinha!
O soldado fez ouvido de mercador. Lembrou-se das chicotadas que levou durante aqueles anos todos para depois ser preterido por um almofadinha com pinta de surfista. Sua raiva triplicou ante tal lembrança. Engoliu saliva com gostinho de vingança e baixou o sarrafo. Uma, duas, três chicotadas seguidas, rasgando a roupa e tirando sangue das costas do condenado. Jota Cristo jogou a cruz de lado, se livrou da coroa de espinho, deu um urro, arrebatou o chicote da mão do soldado e o surrou com raiva e fúria.
O povo, tomado pela forte emoção do espetáculo, pensando tratar-se de um novo enredo para a Paixão nos moldes da coragem sertaneja, aplaudiu entusiasticamente a reação de Cristo, elogiando sua atitude corajosa, de macho. Naquela terra de homens valentes, ninguém aprovava Seu jeito cordeirinho de aceitar morrer resignadamente, ainda mais sendo filho de quem era. Bastava dizer um “abracadabra” para a terra engolir todos os seus inimigos.
– Dá-lhe, Cristo! É assim que reage um cabra-macho! Acaba com esse fariseu safado! Pau nele!
Por conta desse realismo fantástico, foi reescrita uma nova versão do Evangelho, com um novo final histórico: em vez de ser crucificado, Jota Cristo foi recolhido ao xilindró por soldados à paisana, que não faziam parte do elenco.
O povo, em vigília solidária, varou a noite na porta da cadeia, exigindo a liberdade do ator. Sem a crucificação, não haveria Sábado de Aleluia e consequentemente o Judas não poderia ser malhado. As crianças perderiam o chocolate do Domingo de Páscoa e não poderiam cantar as cores do coelhinho.


terça-feira, 3 de março de 2009

O arraial do Junco e a violência urbana



A primeira vez que ouvi falar em maconha foi nos preparativos de mudança do arraial do Junco para Alagoinhas. O povo falava à minha mãe para ter muito cuidado com a cidade onde se dizia que a maconha rolava solta e os assaltos eram useiros e vezeiros por causa da erva maldita.

Entretanto essas conversas ao pé do fogão a lenha eram totalmente equivocadas sobre o uso da cannabis sativa. Diziam que os meliantes fumavam a maconha para fazer o povo dormir e assim eles tinham livre acesso ao patrimônio alheio. O medo de então não era o de ver os filhos enveredar pelo mundo devastador da dependência química, mas pelo simples fato de se ser roubado devido ao “boa noite, Cinderela” supostamente contido na maconha.

Eram os tempos da inocência plena. A violência no arraial do Junco limitava-se apenas a alguma briga de bêbado às segundas-feiras, dia de feira. Eram brigas verbais e raramente se chegava às vias de fato. Dos presos e perturbadores da ordem pública, o único que me lembro foi um batedor de carteira que apareceu por ocasião da festa da Padroeira. Pego no flagrante, levou tantos bolos do delegado João Vieira que, anos depois, devia chorar quando se lembrava da surra. Como naqueles tempos não havia direitos humanos, o infeliz foi exibido na festa como um troféu do delegado.

Outro preso de destaque foi um motorista da Petrobrás que buzinou o carro ao passar por um cavaleiro na Ladeira do Cruzeiro. O cavalo se assustou, empinou e derrubou seu montador. Nada teria acontecido se o dito cavaleiro não fosse o delegado da cidade, que, mais tarde, deu voz de prisão ao petroleiro para ele aprender a não sair buzinando a torto e a direito. O infeliz passou dois dias preso, porém não apanhou como o batedor de carteira.

Curiosamente nos anos oitenta um rapazinho roubou um cavalo na roça e foi vender na feira. Teve o azar de oferecer ao próprio dono do cavalo que, surpreso, chamou a polícia.

Bons tempos aqueles em que se comprava fiado em qualquer bodega. Depois veio a modernidade, os supermercados, a televisão, as parabólicas e, com eles, a corrupção, a ladroagem política, a favelização e a miséria passou a rondar a periferia da cidade. As verbas públicas tiveram destinações privadas, o desvio de função pública se tornou dever de ofício, o povo aprendeu a trocar o voto por migalhas e o que se vê, hoje, é uma cidade sitiada pelo medo da violência e pelo terror das drogas. Do ano passado para cá, oito pessoas morreram vítimas da violência bestializada, gratuita, onde até um velhinho foi assassinado a golpes de machado para ter sua aposentadoria roubada. Ora pois, o que seria o sossego da velhice, está sendo o objeto do medo.

O arraial do Junco, que figura na rabada do IDH, se tornou a terra do sem porvir risonho: governos corruptos e impunes, desemprego crônico, jovens sem perspectivas no futuro, velhos desassistidos e crianças sem ocupação lúdica. Como diz o velho ditado: “Mente vazia é oficina do Diabo”. Quem elege o corrupto pensando tirar proveito, se esquece que está deixando atrás de si uma hoste de miseráveis. E a miséria conduz à violência. E a violência é sinônima de dor. E a dor não tem cor, ideologia ou status social. O corrompido um dia tornar-se-á vítima de sua própria esperteza.

Sumiram com as verbas da habitação popular e teve gente que achou interessante, pois era mais um novo-rico que surgia do nada, como aconteceu nos últimos tempos. Isso gerou o processo de favelização da cidade e a conseqüente degradação moral, com o tráfico de drogas rolando solto a desafiar a Lei e a Ordem. Antes do carnaval mataram um; essa semana que passou, dois. E assim caminhamos para a banalização da violência e a perda total da capacidade de indignação até o dia em que, ao abrirmos a porta da casa, esteja lá um corpo estendido na calçada apontando seu dedo frio e rígido como a dizer que poderemos ser o próximo da lista.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Carta de apresentação

Sou Ronaldo Antonio por obra e graça de Maricas Coxeba, a escrivã do arraial do Junco, e do meu irmão mais velho, na época, jornalista do Jornal da Bahia, que um dia resolveu matar a saudade da roça e se arrepiou quando soube o meu nome:

- Mamãe, não tá vendo que Toninho não pode se chamar Tonho de Lisboa?! Isso é uma ofensa a qualquer cristão.

- Foi uma promessa que fiz, pra Santo Antonio de Lisboa, porque ele nasceu muito feio e fiquei com medo do seu pai fazer alguma maldade a ele pensando tratar-se de um monstro.

- Mas a senhora não sabe que é melhor ser feio com nome bonito do que bonito com nome feio?!

Dito isso, ganhou o caminho da cidade, o pequeno arraial do Junco, um amontoado de casas a desafiar a poeira, a seca e a solidão do sertão nordestino. Voltou quando a vermelhidão do crepúsculo cedia ao azeviche noturno. Trazia novidades:

- Conversei com Maricas Coxeba. Ela concordou em mudar o nome de Toninho. Tonho de Lisboa é coisa do passado. O nome dele agora é Antonio Ronaldo. “Antonio”, do seu santo, e “Ronaldo”, em homenagem a um grande amigo meu.

Maricas Coxeba, a escrivã, podia tudo. Ganhou esse nome por causa de um defeito na perna direita, que a deixava com o andar capenga, coxo. Achava-a ranzinza, implicante, metida a besta. Com o passar do tempo compreendi que era instinto de autodefesa. Vivia só, entre homens rudes, e a falta de companhia devia lhe consumir o espírito solitário. E a solitude da terra contagiava. As noites no arraial do Junco são tão silenciosas e melancólicas que até se ouve densamente as conversas dos fantasmas errantes que povoam a solidão noturna.

Ela teve a chance de me ferrar em duas oportunidades, porém não tomou nenhuma atitude hostil. Uma, foi quando descobriu dois sapinhos no leite que eu lhe entregava, mal o sol raiava, trazido da roça no lombo de um jegue. Era o truque de multiplicar o leite no tanque de Zeca Vieira, localizado no caminho entre a roça e a cidade. Em vez de contar para o meu pai, preferiu me pregar um sermão memorável, citando todos os preceitos morais, éticos, espirituais e religiosos que norteiam a vida do cidadão. Duas horas e meia de falatório. A outra, a qual lhe devo eterno agradecimento, foi ter me livrado do estigma de Tonho de Lisboa. Antonio Ronaldo, este sim, é que é nome!

Sendo Tonho de Lisboa de batismo e Antonio Ronaldo de registro, não senti nada mudar. Afora a professora Serafina que me chamava de Antonio, o resto da população me chamava de Toninho. Um ano depois nos mudamos para Alagoinhas e as professoras preferiram me chamar pelo sobrenome Torres. Os novos colegas acompanharam as mestras. Quando concluí o quinto ano primário, foi preciso me inscrever pro exame de admissão ao ginásio, uma espécie de vestibular de acesso ao ensino ginasial. Tive uma surpresa na hora de anexar a certidão de nascimento aos documentos exigidos: Antonio Ronaldo era mera fantasia.

A partir de então passei a existir, oficialmente, com o mesmo nome que trago até hoje. Nascido em 21 de fevereiro de 1956, sob o signo de Peixes, fui registrado em 21 de janeiro do mesmo ano, sob a regência de Aquário. Antes de ser, eu já existia. Sobrou a vantagem de poder escolher o signo de Aquário quando a maré não estiver pra Peixes. Ou vice-versa.

Em 1977, quando precisei do batistério pra me casar, tinha Ronaldo Antonio por nome oficial e Tonho de Lisboa por de batismo. A Igreja relutava em aceitar as minhas alegações da troca de nome. “Você é um meliante, um falsário, um transgressor das Leis e merece ser preso por falsidade ideológica”, me disse um bispo de Salvador. No meu caso, não valia a máxima: “Quem não tem a quem reclamar, reclama ao bispo”. Recorri ao padre Machado - que não cortava pau, porém estava na iminência de quebrar um grande galho - na paróquia do Rio Vermelho, companheiro de copo nas farras homéricas no bar de Diolino, que, depois de duas talagadas da batida de tamarindo mais famosa da Bahia, mandou o bispo às favas, ignorou os severos regulamentos eclesiais e autorizou a minha entrada na igreja de Nossa Senhora Santana de terno e gravata, protagonizando o cortejo nupcial. Tinha pressa. Muita pressa. A protuberância do ventre da noiva aumentava em proporcionalidade direta ao tempo e o meu sogro ameaçava desengavetar o trabuco, a bem da honra e dos bons costumes.

Por castigo divino, o meu amigo Machado se apaixonou por uma beata, abandonou a batina, a cachaça, os amigos de farra, amarrou a trouxa e foi morar com ela. Perderam: os fiéis, um padre bom de missa; perderam: os bêbados errantes, seu padre confessor. Anos depois, deprimido pela falta do vinho canônico e do bate-papo mesclado a fumo e a álcool das noites boêmias do Rio Vermelho, o meu amigo não resistiu à pressão interna da psicopatologia e se enforcou. Não deixou testamento nem carta de despedida, porém houve muita cachaça no seu velório.

“Seria essa a sua última vontade”, nos disse, entre soluços, a viúva. Alguém se lembrou de erguer um brinde fúnebre ao ausente Kléber, morto um mês antes. Não seguiu o exemplo do ex-padre, contudo bebia feito um condenado. Morreu de cirrose hepática antes de completar os trinta anos. Lembrei-me da teoria do meu irmão, nos primórdios dos tempos. Talvez ele tivesse razão. Kléber era um sujeito feio, horrendo, todavia tinha um nome bonito. E por causa do seu nome ninguém dava importância à sua feiúra.

Intimamente agradeci a Maricas Coxeba e ao meu irmão. Sem a conspiração dos dois, quem seria eu afinal? Qual patrão daria emprego a um Tonho de Lisboa? Qual mulher dormiria, em sã consciência, com um Tonho de Lisboa? Que igreja daria guarida a um Tonho de Lisboa? Pedi silêncio aos presentes no velório para um breve discurso de despedida, a elegia final:

- Meus amigos, peço-lhes que façamos um brinde ao meu irmão mais velho e a Maricas Coxeba, a escrivã de minha terra. Devo a eles a dádiva de poder estar aqui, hoje, com vocês. Sem a intervenção dos dois, eu seria um suicida em potencial, provavelmente um morto-vivo. Ergamos os copos para o céu e digamos amém!

Ninguém entendeu nada do que falei, mas brindaram assim mesmo. Quando estamos diante de um morto, estar vivo é um bom motivo para se comemorar.

domingo, 11 de janeiro de 2009

AS TRAÇAS DA BIBLIOTECA ANTONIO TORRES


Uma das grandes obras do governo Robério foi a criação da Biblioteca Pública Antonio Torres, um sonho do grande amigo e primo Luiz Eudes. Cidade pobre, sem muita opção de lazer ou de leitura, a biblioteca era um caminho para se tirar as crianças, os jovens e adultos da ociosidade mental. Hoje, até nas cidades bem situadas economicamente, há diversas bibliotecas de acesso gratuito ao público, inclusive em entidades privadas. E as salas de leitura ficam cheias de estudantes, pesquisadores e até mesmo de simples leitores. Devo lembrar que uma das obras que imortalizaram Ptolomeu II, foi justamente a construção de uma biblioteca, a de Alexandria, no século III, AC.


Robério não teve a pretensão de Ptolomeu II, mas, certamente, sentiu o orgulho dos antigos egípcios. Era um inovador. Um pioneiro na construção de um bem abstrato e que de concreto só lhe renderia elogios. Lembro-me da solicitude de dona Nice, a primeira-dama, que respondia pela Biblioteca, me mostrando o acervo e fazendo questão que eu visse todos os livros doados, inclusive a obra completa do escritor da terra, Antonio Torres. Mostrou também a organização da sala de leitura, onde vários estudantes da região liam ou faziam pesquisas. O seu orgulho era visível, escancarado.


Já se disse muito a respeito do livro, mas não se disse tudo. O benefício que a leitura de um livro traz ao leitor é imensurável, incalculável, mas, infelizmente, não são palpáveis como numa boa transação comercial e por isso alguns governantes ignaros, adeptos do atraso intelectual do povo, fazem nada no sentido de levar a luz do conhecimento à sua juventude sedenta do saber.


Quanto mais ignorante o povo, mais os corruptos se locupletam. A leitura instrui, abre a mente, incita o leitor a pensar. E a questionar. Mas o lampejo visionário que teve o prefeito Robério, parece que feneceu na mesquinharia do poder pelo poder. O acervo da biblioteca se esvaiu, os livros foram surrupiados ladinamente, e até mesmo os do escritor-patrono, Antonio Torres, sumiram das prateleiras. Roubaram o direito da leitura das crianças, dos jovens e adultos e todo mundo fica calado, como se nada acontecesse ou que se fosse normal doações feitas pela benevolência alheia, conhecida ou não, parar em mãos inescrupulosas e escrotas que, pela sua ignorância dissimulada e mesquinharia escancarada, deve usar os livros apenas como papel higiênico.


Se Robério teve a magnanimidade dos grandes administradores, pequena se fez a administração carangueja ao permitir que o patrimônio público fosse devorado pelas traças humanas ou que escoasse pelo ralo da incompetência gerencial. Cadê o Ministério Público que não viu isso? Afinal ele existe, também, para fiscalizar a lisura e competência administrativa das prefeituras, pois a inabilidade no trato da coisa pública, traz incalculáveis prejuízos à população. Quando escrevi o livro “arraial do Junco”, em 2004, havia no acervo cinco mil livros. Hoje, passados cinco anos, há pouco mais de mil livros. Onde foi parar o restante, inclusive as doações feitas ao longo desses anos?


Vamos torcer (e cobrar) para que Joaquim Neto dê especial atenção à Biblioteca, promovendo concurso público para bibliotecário, conforme manda a Lei. Quem tem que cuidar do patrimônio público são funcionários qualificados na função em caráter permanente e estável, imunes ao troca-troca de prefeitos e a pressões políticas, e que possam ser responsabilizados na falta de zelo ou omissão.