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domingo, 12 de maio de 2024

Ai de mim, Copacabana!

 


Porque Copacabana vai além de sua calçada e do seu mar revolto. Eu, quando ainda menino besta do interior, conheci o calçadão na capa de um livro de crônica de Rubem Braga; gemi meus ais de mim, e ai de ti se não te conhecesse logo, Copacabana! Mas, entre a cidade e a roça, existia um oceano de distância.

O meu irmão mais velho, e velho de morar em Copacabana que até incorporara o linguajar carioca, sabendo dos meus sonhos de menino descalço pelas ruas do sertão, me deu uma passagem de presente por ter passado no Exame de Admissão ao Ginásio.
Assim, como Rubem Braga redesenhou a crônica na minha vida, vi Burle Marx redesenhar as ondas nas pedras portuguesas do calçadão de Copacabana.





sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Vida de açougueiro

 Duas mulheres de programa conversavam no ponto de ônibus:

- Tou tão dura que hoje dou até por um quilo de carne.
- E eu tou lascada! Só vou poder usar as mãos ou a boca.
- Por quê?
- Tou de boi!

Pelo visto, o sexo virou um negócio de açougueiro.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Goodbye, Columbus e outras reminiscências



Hoje, acordei sentindo um gostinho do passado na memória ao lembrar da minha introdução à literatura norte-americana, acontecida em 1970, na casa do meu irmão, no Rio de Janeiro: o romance Goodbye Columbus, lido e relido em um fôlego só. Para um pretenso debutante na vida de interior, foi um mar de aprendizagem.

Fico aqui a tecer conjecturas sobre o que seria de mim, como ser autônomo, se não tivesse um irmão jornalista e que sempre me brindava com as melhores publicações. Como diz o jovem ancião Cineas Santos, o vate piauiense, eu seria eu sem mim.

Mas não foi só isso. Nessas mesmas férias, conheci Garcia Marquez (achei Macondo o próprio Junco), Hemingway, Rubem Braga, o primo de Maria Lúcia Rangel, Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), a Tropicália, Luiz Gonzaga e o Bondinho de Santa Teresa. Ah! Conheci também o MAM e o quadro mais famoso do mundo, cujo pintor foi de uma genialidade incrível: uma tela em branco com um ponto feito a grafite no centro e que deixava os experts em arte babando em “oooooooohs!”

De tudo, o mais importante, foi ouvir o LP “Arena conta Zumbi”, a Renascença teatral que se fazia no teatro de Arena, berço do Teatro do Oprimido. Paixão à primeira audição e eu disse: “Quando eu crescer quero ser Boal!” Meu irmão, entre amarelo e sem jeito, pois pensara que eu diria querer ser ele, me disse que era uma boa escolha.

Nos trilhos urbanos de Alagoinhas, o expresso da meia-noite nos acordava em voz grave e potente: “Encomenda para seu Antônio Ronaldo!” Eram livros de mancheia, como diria o príncipe dos poetas.

Em retribuição a essa sorte que tive e que acontece uma entre milhões, não meço esforço para incentivar a leitura como a pedra fundamental na transformação de indivíduos em sujeitos autônomos. O conhecimento só faz sentido se compartilhado. Sem isso, é como a roda de um moinho mergulhada em um lago.

O meu irmão jornalista-leitor virou escritor, entrou para a Academia Brasileira de Letras e só vive me convidando para acompanhá-lo nos debates na mais alta corte literária. Vou não, seu moço! Esse negócio de imortalidade é para vampiros. Eu quero descansar em paz. 


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O politicamente correto

 Fui censurado em Salvador porque pedi um doce chamado "nego bom". Disseram-me que era politicamente incorreto. Aí retruquei:

- Mas na embalagem está escrito nego bom! Vou pedir como?
- Doce moreno.
- Aí você vai me acusar de racismo!
- Então fale outra coisa. Veja: ô, moço! Moço! Me dê aquele doce afrodescendente de coração bondoso!
- Qual? O nego bom?
(risada sem jeito, de dente travado como se fosse fazer um selfie)
ras 5

domingo, 15 de janeiro de 2023

POR QUE LAMPIÃO NÃO PASSOU NO JUNCO?

- Lampião passou por aqui?

- Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio.

- Por que Lampião não passou por aqui?

- Ora, ele ia lá ter tempo de passar nesse fim de mundo?

Antônio Torres in Essa Terra.

 

"Lampião não foi, mas se tivesse ido não ia encontrar ninguém pra molestar", me disse o meu pai quando lhe perguntei sobre o malogro de Lampião. "O povo todo correu para as roças, se escondendo debaixo da cama. Quem tinha casa na roça. Os da rua fugiram para Serrinha, Biritinga e Nova Soure e só voltaram duas semanas depois. Êta povo corajoso!"

Depois dessa conversa fui pesquisar o porquê de Lampião não ter cumprido a sua promessa. O povo do Junco não merecia. Ademais, Lampião não era de faltar com a palavra. Então, baseado em fatos reais (lembrando de que a literatura é a realidade paralela) encontrei o verdadeiro motivo que levou o rei do cangaço a desfeitear o povo da minha terra.

No Junco de antigamente, então um lugar esquecido por Deus e pelos governantes, só havia um velho soldado conhecido como “Quarenta”. Ganhou esse apelido por causa da sua mania de chamar polenta de “quarenta”. No início ele não gostou, achou que era um desrespeito à sua autoridade, mas quando viu que teria que prender toda a população, resolveu se fazer de mouco. O tempo foi passando, ele se acostumando até o dia que incorporou de vez o apelido ao nome e passou a se apresentar como “Soldado Quarenta”.

Como o lugar ainda era distrito de Inhambupe, o Soldado Quarenta assumia a função de juiz, delegado e soldado. Só não assumiu a de escrivão porque era analfabeto. Gostava de desfilar garbosamente com sua farda rota, exibindo uma velha pistola de dois canos, chamada de “dois tiros e uma carreira”.

Nesse dia que Lampião disse que ia e o povo achou que ele não foi, antes de invadir o lugarejo ele reuniu a cabroeira na entrada para traçar um plano de invasão. O rei do cangaço era precavido e não queria ser surpreendido como fora em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde teve que fugir feito ladrão de galinhas. Tinha que saber quantos soldados estavam à sua espera. Aprisionaram um fugitivo retardatário e o espremeram feito um de umbuzada:

– Tem quantos “macacos” no povoado? –  perguntou Lampião, apertando a goela do pobre coitado.

– Tem muitos não, meu capitão! – respondeu o morador, trêmulo e sem conter a expressão de terror – Só tem Quarenta!

Lampião resolveu contar seus homens: dezoito! Empurrou o “informante” para o lado, pegou seu embornal, colocou a espingarda em bandoleira e ordenou:

– Vamos embora que estamos em desvantagem numérica! Também, roubar pobre é pedir esmola pra dois!

O morador foi libertado e voltou bambo para casa, mas saboreando o orgulho de ter sido capturado e solto pelo legendário chefe do cangaço. Queria contar a todos e talvez virasse nome de rua ou de escola, mas não havia ninguém no povoado. Até o valente Soldado Quarenta fora abduzido por um disco voador, e, durante semanas, o fedor de mijo e de merda ficou impregnado nos lugares em que nosso herói passou.


A Praça Kennedy e o Estádio Carneirão

 

Quando vim morar em Alagoinhas, essa era a praça de se jogar bola e se chamava Praça da Rua de Inhambupe. Mas um dia o Marechal Castelo Branco sobrevoou de helicóptero a cidade, nos viu no meio de uma pelada, pousou, nos pediu, para jogar, deixamos,  então, devolvendo a nossa gentileza, nos prometeu um campo melhor. Anos depois, não se sabe se foi projeto dele ou não, foi construído em Alagoinhas um estádio muito bacana. A praça também fora reformada e  batizada de John F. Kennedy. 

Na inauguração, todos os moradores da cidade foram obrigados a assistir a um filme sobre a vida e morte de Kennedy,  exibido na parede dessa igreja da foto. E ai de quem não se revoltasse na hora do tiro que matou o artista principal! Dezenas de camburões estavam estacionados na Praça.

Semanas depois desse evento perguntei a uma vizinha, que se dizia membro do TFP,   porque ela havia chorado tanto quando assistia ao filme. Ela me respondeu fazendo cara de choro: 

- Ô, Tom, é que aquele filme me lembrou tanto da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Assim, graças a uns moleques peladeiros que deixaram o Marechal jogar de beque, Alagoinhas ganhou uma praça e um estádio de fazer inveja a certas capitais. Só que nunca nos deixaram jogar pelada no seu gramado.


sexta-feira, 17 de junho de 2022

A vida é bela

A vida aqui só é ruim porque se ganha em real, o que nos deixa bem próximos da realidade. Mas pelo menos podemos sonhar em euros, já que não temos mais cruzeiros e sobra cruzados nos apontando suas canhoneiras.

Séculos antes da pandemia, ela ganhava o suficiente para ter uma vida confortável. Se economizasse, dava até para fazer um pé de meia. Mas seu porquinho se chamava esbórnia: torrava tudo nos botecos, em longas noites de farra. Idolatrava o "sextou!"
Cansada de trabalhar quarenta horas por semana, foi para a Europa. Lá, para sobreviver, teve que fazer faxina, lavar latrina, ser garçonete e, nas horas vagas, se prostituir em extra para pagar o aluguel. Não havia mais "sextou!". Tudo era "segundou!", sem direito a uma gota de ressaca.
Um dia veio passear no Brasil. Parou em Maceió. E, na tranquilidade do mar à nossa porta, desfazendo a espuma da cerveja no seu copo, ela me disse:
- A Europa é que é lugar de se ganhar dinheiro.
Olhei para seu belo corpo luzidio e lamentei não poder lhe provar que aqui também se podia faturar um extra.
É que ela só transava em Euro.

domingo, 4 de julho de 2021

Santo Antônio casamenteiro

Na minha linda infância no velho Junco ninguém festejava o dia dos namorados. Num território arcaico, namorar era coisa de vadias. Mas a mulherada gostava de atanazar o juízo de Santo Antônio na véspera do seu dia, na beira da fogueira. E haja santo dormindo de cabeça para baixo! Haja brasa da fogueira a ser jogada na bacia de água fria!

 Havia o tal responso de Santo Antonio que nunca entendi o que era. As minhas tias e as minhas irmãs prendiam a ponta de uma chave dentro de um livro, duas apoiavam a cabeça da chave no dedo indicador e perguntavam:

 "Santo Antônio está presente?" – se o santo estivesse presente, a chave balançava e o livro pendia para o lado. E continuavam:

"Eu vou me casar com quem? O primeiro nome começa com a letra A? Letra B?"

 E seguiam perguntando até chegar na letra do pretendente. Era nessa hora que acontecia o milagre: a chave virava e o livro caía. Elas pulavam eufóricas, gritavam triunfantes e se abraçavam. Sorriam felizes, certas de casamento consumado.

 Como eu disse acima, nunca entendi direito esse sistema de se arranjar casamento por interferência de Santo Antônio, mas tenho absoluta certeza de que o santo enganou as mocinhas. A minha irmã que o santo dizia que ia se casar com a letra P, se casou com A, um petroleiro que foi levar o progresso para o velho Junco. A outra, cuja chave girava na letra L, se casou com outro A, também petroleiro. E as minhas tias, que faziam dupla com minhas irmãs e pulavam e gritavam felizes quando o santo soprava na letra J, morrerão virgens de pai e mãe e com as tabacas ensebadas, como dizia Zé de Valério, o carreiro do meu pai.

 Será que estavam destinadas a Jesus Cristo?

 

domingo, 25 de abril de 2021

Por que Lampião não passou no Junco?

- Lampião passou por aqui?

- Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio.

- Por que Lampião não passou por aqui?

- Ora, ele ia lá ter tempo de passar nesse fim de mundo?

Antônio Torres in Essa Terra.


"Lampião não foi, mas se tivesse ido não ia encontrar ninguém pra molestar", me disse o meu pai quando lhe perguntei sobre o malogro de Lampião. "O povo todo correu para as roças, se escondendo debaixo da cama. Quem tinha casa na roça. Os da rua fugiram para Serrinha, Biritinga e Nova Soure e só voltaram duas semanas depois. Êta povo corajoso!"


Depois dessa conversa fui pesquisar o porquê de Lampião não ter cumprido a sua promessa. O povo do Junco não merecia. Ademais, Lampião não era de faltar com a palavra. Então, baseado em fatos reais (lembrando de que a literatura é a realidade paralela) encontrei o verdadeiro motivo que levou o rei do cangaço a desfeitear o povo da minha terra. 


No Junco de antigamente, então um lugar esquecido por Deus e pelos governantes, só havia um velho soldado conhecido como “Quarenta”. Ganhou esse apelido por causa da sua mania de chamar polenta de “quarenta”. No início ele não gostou, achou que era um desrespeito à sua autoridade, mas quando viu que teria que prender toda a população, resolveu se fazer de mouco. O tempo foi passando, ele se acostumando até o dia que incorporou de vez o apelido ao nome e passou a se apresentar como “Soldado Quarenta”.


Como o lugar ainda era distrito de Inhambupe, o Soldado Quarenta assumia a função de juiz, delegado e soldado. Só não assumiu a de escrivão porque era analfabeto. Gostava de desfilar garbosamente com sua farda rota, exibindo uma velha pistola de dois canos, chamada de “dois tiros e uma carreira”.


Nesse dia que Lampião disse que ia e o povo achou que ele não foi, antes de invadir o lugarejo ele reuniu a cabroeira na entrada para traçar um plano de invasão. O rei do cangaço era precavido e não queria ser surpreendido como fora em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde teve que fugir feito ladrão de galinhas. Tinha que saber quantos soldados estavam à sua espera. Aprisionaram um fugitivo retardatário e o espremeram feito um de umbuzada:


– Tem quantos “macacos” no povoado? –  perguntou Lampião, apertando a goela do pobre coitado.

– Tem muitos não, meu capitão! – respondeu o morador, trêmulo e sem conter a expressão de terror – Só tem Quarenta!


Lampião resolveu contar seus homens: dezoito! Empurrou o “informante” para o lado, pegou seu embornal, colocou a espingarda em bandoleira e ordenou:


– Vamos embora que estamos em desvantagem numérica! Também, roubar pobre é pedir esmola pra dois! 


O morador foi libertado e voltou bambo para casa, mas saboreando o orgulho de ter sido capturado e solto pelo legendário chefe do cangaço. Queria contar a todos e talvez virasse nome de rua ou de escola, mas não havia ninguém no povoado. Até o valente Soldado Quarenta fora abduzido por um disco voador, e durante semanas o fedor de mijo e de merda ficou impregnado nos lugares em que nosso herói passou.


sexta-feira, 23 de abril de 2021

PÁTRIA DE CHUTEIRAS E PRAGMATISMO POLÍTICO

A vantagem dos anos pares é que em alguns deles há Copa do Mundo e Galvão Bueno com sua fórmula mágica para ganharmos a Copa sem combinarmos com os adversários. Futebol, o ópio do povo, dizia Marx, meu vizinho. Depois da Copa do Mundo de Futebol vem a parte mais interessante na nossa vida: os comícios. Neles, depositamos todas as nossas esperanças e frustrações, vez que a seleção brasileira só é decepção nas últimas Copas. A fé de que algo vai mudar se renova a cada discurso nos comícios. A pandemia nos privou da companhia de Galvão Bueno por uns tempos, mas dos políticos, infelizmente, não. - Minha gente, nessa cidade tem luz? - pergunta um candidato em cima da carroceria de um caminhão improvisada como palanque numa cidadezinha qualquer. - Nãããããooooo!!!!! - responde o povo numa única voz. - Tem água? - Nãããããooooo!!!!! - Tem médico? - Nããããããããããããooooo!!!!! - Então por que vocês não se mudam dessa porcaria?!! - !!!! - Êta povo besta, meu Deus! - exclama Carlos Andrade ao burro que vai devagar acompanhando a multidão no grito de guerra que se ouviu logo depois: Mitô! Mitô!...

domingo, 30 de agosto de 2020

Seis anos sem Ariano Suassuna

 Na bienal do Livro de Brasília, em abril de 2014, Iara Maria Ramires Melo, Marcelo Torres, Maurício Melo - pai do Maurício Melo Júnior  - e eu, paramos numa birosca pra fazer um lanche. Lamentávamos não haver mais convites para a palestra do Ariano Suassuna, um dos homenageados da bienal. De repente parou uma senhora, nos olhou e perguntou:

- Vocês querem dois convites pra palestra do Ariano Suassuna?

Como não querer?

- Claro que queremos!!!

Ela nos entregou dois convites. Iara explicou a Marcelo como me entregar a domicílio - eu era hóspede do casal Melo  - nos despedimos e saímos correndo. Estava em cima da hora.

Atravessamos uma daquelas pistas imensas e movimentadas (segundo Marcelo é a maior do mundo, mas tive minhas desconfianças porque esse meu primo já chegou achar que o Junco era a melhor cidade do mundo pra se viver) nos arriscando a sermos atropelados e chegamos a tempo de sermos os últimos da fila.

Lá dentro, uma multidão. Faltava chão para sentar. Descemos as escadas - pisa daqui, empurra dali - e paramos na segunda fileira das cadeiras. A primeira estava bloqueada. Sentei no colo duma dona e Marcelo escolheu o colo de um paraibano que disse matar e morrer por Ariano. Mas foi coisa rápida, não deu nem pro meu primo esquentar o colo do cidadão: dois caras sentados na segunda fila eram ôtoridades do governo e foram chamados para fazer parte da mesa. Assim, antes que alguém tomasse a dianteira, Marcelo e eu invadimos a ala vip e ouvimos a palestra de primeira classe. Ou melhor: de segunda fileira.

E foi mais de uma hora de êxtase pleno. Pena que não haverá mais Ariano para alegrar a monotonia de palestras de bienais e feiras de livros.


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O despertar do poder feminino

A escola estava em revolução. Alunos e alunas em passeata gritavam palavras de ordem contra o regulamento interno que ia de encontro ao estatuto da criança e do adolescente. Os professores entraram em pânico, a coordenadora pedagógica descabelava a peruca, a vice-diretora lembrou-se mui oportunamente que tinha uma consulta médica marcada trezentos anos atrás e, antes da imprensa local ser avisada, chegou, com todas as honras e pompas de negociadora, a autoridade maior, sua excelência, a diretora. Sem maior delonga, reuniu sua equipe. 

- O que está acontecendo aqui? 
- Os alunos estão revoltados porque não podem trazer brinquedos de casa – disse a coordenadora pedagógica. 
- E os brinquedos da escola? 
- Eles querem brincar com os seus próprios brinquedos. 
- E quem organizou esse protesto? 
- A Gil. 
- Gil? Mas ela só tem oito anos! 
- E já é comunista! – meteu-se na conversa a professora de Religião que já não aguentava as contestações religiosas da líder mirim. 
- Levem a Gil para a sala da diretoria para a gente negociar! 

Depois que a orientadora e a professora de História garantiram que não haveria retaliação, e sim, negociação, a líder dirigiu-se à sala da diretora seguida por outros estudantes que gritavam o velho bordão “criança unida, jamais será vencida!” 

Gil era uma garota delicada, usava óculos de intelectual, cabelos meio punk, magra, mas nada frágil. Entrou de cabeça erguida na sala da diretora. 

- Sente-se, Gil, por favor! 
- Não. Estou bem de pé. 
- Qual é a reivindicação de vocês? 
- Por que só alunos do primeiro ano podem trazer brinquedos de casa? Por que essa preferência desleal, só eles podem e nós não? Só porque temos oito anos deixamos de ser criança? Qual é a ideia que a senhora faz do que é ser criança e poder brincar com seus próprios brinquedos? O que é ser criança para vocês da escola? 

A diretora ficou atônita, muda, estupefata com os argumentos daquele pingo de gente que já se anunciava empoderada e dizia coisas que ninguém havia pensado antes. 

A partir de então todas as crianças puderam exercer seus direitos universais de ser crianças dentro dos muros da escola.


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Dos nomes que a gente tem


Aqueles que nunca tiveram um apelido na infância, jamais terão uma boa história para contar. Se batizar João, se crismar João, se formar João e morrer João ou outro nome qualquer, que graça tem? Êta vida besta, meu Deus! A verdadeira felicidade consiste em se ter um nome para cada ocasião. Quem não tem, trate de inventar um.
Jorge Silva Pacoa, o dileto sobrinho de Maricas Coxeba, empacou ao ler um livro meu e descobrir que a sua tia, uma Guimarães de rocha, tinha esse apelido. Ao contrário do povo do Junco que todo mundo foi, é ou será Cruz e o que diferencia uns dos outros são só os apelidos, o povo de Inhambupe tem essa mania de grandeza com o nome e sobrenome, apesar de agora abundar os “dos Santos” e “da Silva”. Vou lhe processar! disse-me ele com todos os sinais gráficos do mundo. Desafiei-o: vamos ao Junco saber se lá existiu alguma Maria José Guimarães. Ele foi. Andamos de boteco em boteco entrevistando o povo, pagando cachaça a uns, tira-gosto a outros, e ninguém nunca ouvira falar nesse nome. Nem os mais velhos, nem os mais moços, nem os que ainda iam nascer. Mas quando a pergunta era sobre Maricas Coxeba, ah! todo mundo abria um largo sorriso: foi uma grande mulher! Até os fedelhos diziam que sabiam quem era. Ou melhor, quem foi.
Maricas Coxeba foi a mulher mais importante do Junco, depois da primeira-dama e da esposa de Zé do Padre, o motorista do ônibus que acordava o povo às cinco da manhã para conduzi-lo até Alagoinhas. Escrivã da terra, aquela que escrevia “é verdade e dou fé”, se se candidatasse a prefeita ganhava de lavagem. Mas como a política é machista, nunca lhe deram essa chance.
Devo a ela a minha sobrevivência. Sem ela, seria um moço mais triste do que sou hoje. Ou melhor, já teria morrido de tristeza. O que ela fez por mim é digno de entrar nos anais da história.
Era um dia de sol, como todos os dias eram, e o meu irmão mais velho, famoso no lugar por ser jornalista em São Paulo, chegou na surdina para tomar um copo de umbuzada, coisa que em São Paulo não tem, disse ele. Quer dizer, acho que disse, pois eu era pequeno e não me lembro bem. Foi uma festança. Meu pai mandou matar um carneiro e as mulheres da redondeza ocuparam o terreiro. Era mulher que não acabava mais, cada uma carregando uma cesta de umbu.

No auge da festa, ele prestou atenção em mim. Era a primeira vez que eu o via. Perguntou à minha mãe:
- Mamãe, como é o nome desse moleque?

- Moleque – respondeu ela, carinhosamente sentido asco.
- Não. Falo do nome de registro.
- Tonho de Lisboa.
- Tonho de Lisboa?! A senhora não sabe que isso não é nome de gente?
- Olhe pra ele: vê se isso é gente!
Ele me olhou penalizado, me deu um cascudo que afundou a minha moleira e retomou a conversa.
- A senhora não sabe que maltratar animal é crime?
- Mas ele não é um animal. É só um coisa. E Tonho de Lisboa é só um nome.
A maioria dos Tonhos de Lisboa se suicida antes de completar os quinze anos.
- Sei disso. Foi por isso mesmo que dei esse nome a ele.
- E papai, o que diz?
- Toda vez que olha pro moleque, ele diz: “Se tivesse nascido mais feio podia matar que era monstro”. Satisfeito?
- Não. O moleque ainda tem jeito. Vou falar com Maricas Coxeba.
Assim falou Zaratustra. Não sei o que ele fez para convencer a escrivã a mudar o meu nome, só sei que, graças a ela, consegui me livrar de ser um Tonho de Lisboa e transpor a adolescência sem a vontade de me matar.


terça-feira, 7 de abril de 2020

No Paiaiá é assim: escreveu, não leu, é analfabeto

- Estamos aqui no Paiaiá entrevistando o senhor Teodulo e...
- Olha o acento por favor!
- Obrigado, mas prefiro ficar em pé.
- Falo do acento no meu nome, o circunflex.
- Está bem. Estamos aqui falando com seu Teôdulo e...
- O circunflex, seu burro! Teódulo.
- Ah! Mas aí é agudo!
- Não tem Gudo nenhum! É Teódulo!
- Eu sei, mas o acento...
- Taí, pode se sentar.
- Não, do seu nome.
- O circunflex? Ah! Não sou carro, mas tenho o circunflex.
- Não entendi.
- Você é burro mesmo! Carro circunflex, que usa álcool ou gasolina.
- Ah! Flex.
- Circunflex. O meu é circunflex porque usa gás também.
- Tri fuel!
- O que é isso?
- O seu carro.
- Não. O meu é Volks.
- Falo do motor.
- O que é que tem o motor?
- É tri fuel. 
- Você veio aqui pra me entrevistar ou pra botar defeito no meu carro?! Vou chamar meu compadre Asclepíades para lhe ensinar a respeitar o carro dos outros.
- Quem?
- Asclepíades, irmão do advogado famoso chamado Tonho do Paiaiá.
- Precisa não,seu Teodulo, já...
- Teódulo, olha o circunflex! Você já está me irritando!
- Desculpe, já estou indo embora.
- Mas a entrevista?
- Vou procurar outra pessoa que tenha nome de gente, com ou sem circunflex. Passar bem!







segunda-feira, 30 de março de 2020

Carpe diem quia tempus fugit

(Ou: Abril vem aí)

Aproveite o dia enquanto os seus olhos batem. Haverá um dia que você acordará e verá que não mais respira. Não o oxigênio tão raro em Marte, mas a liberdade que nos foge feito fumaça entre os dedos. Haverá uma manhã que você verá o sol nascer quadrado por um pronunciar de palavras rebeldes que abandonarão seus lábios em busca de ecos para abafar o seu grito torturado. E dará graças ao Divino por ainda saber que em algum lugar o sol resiste. Foi assim no passado que martela sua memória volátil e não pense em encontrar um futuro dessemelhante. A diferença é que, hoje, você está tecendo a corda que irá apertar o seu próprio pescoço.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Fábula-enredo por uma democracia em farrapos

Cinderela perdeu seu lindo sapatinho de cristal-néon na fuga para a carruagem inglesa em formato de abóbora. No dia seguinte, que em inglês se diz "day after", o gari do palácio o encontrou (ou como se diz na minha terra "encontrou ele") perto da escada e o entregou ao seu chefe imediato. Imediatamente o chefe imediato o passou ao encarregado que se encarregou de fazer um relatório à supervisora. Esta, tremenda puxa-saco real, entregou o sapatinho ao príncipe encantado dizendo que ela havia achado embaixo da escada do palácio e que devia ser de alguma princesa bêbada e irresponsável, pois só uma maluca calçaria sapato de cristal para ir a um baile de carnaval. O príncipe encantado ficou encantado com o brilho da luz néon e deu de presente à sua avó, mãe da rainha, que havia perdido uma perna em acidente da carruagem real. A avó real, por causa do forte cheiro de chulé não real, mandou lavar o sapatinho de cristal-néon. A criada real assustou-se quando a água causou um curto no circuito da luz néon e deixou o sapato cair, fazendo um estrondo de estilhaços de cristais. Então a avó real pegou a sua bengala real de ouro com madrepérolas no cabo e quebrou na cabeça da criada desastrada, causando um sulco entre a fronte e a nuca.
Moral da história: seremos milhões de criadas com a cabeça partida se não cuidarmos do sapatinho de cristal chamado DEMOCRACIA.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Treze de Maio

Treze de maio, mês das noivas, mês de Maria. Lá no Junco das minhas recordações era mês de se comer e beber refrigerante de graça nos casamentos que pululavam. Não que fosse convidado. Não. Ninguém convidava pirralho para os comes e bebes. Nosso trunfo era Jesus de Enock - que Deus o tenha em bom lugar. Ele era coroinha e sabia de todos casamentos e batizados que aconteceriam na igreja.
Os casamentos de lá não tinham luxo. E a cidade só tinha luz até às vinte e duas horas. Acabava a cerimônia, os noivos caminhavam em cortejo até a casa onde haveria a recepção. Para nós, os moleques de rua, era fácil fazer cara de bom moço e se passar por filho de algum convidado.

Maio também era mês de trezena a Nossa Senhora de Fátima. No dia treze era o auge, e a igreja lotava. Maria de Venança, a soprano, e tia Naná, contralto, puxavam o coro das centenas de timbres e tessituras das vozes masculinas e femininas cantando "A treze de maio na cova da Iria..." e de repente um moleque se manifesta:
- O que é Iria, mamãe?
- Cala a boca, fio do Cão! Vai levar um cascudo!
O moço da frente, penalizado, senhor simples, da roça, chapéu de palha na mão, explicava baixinho para não atrapalhar o hino:
- Iria é como se uma pessoa fosse e não fosse, entendeu?
-  E a cova?
- É porque Jesus quando morreu, iria pra cova, mas colocaram ele numa gruta porque, se Ele tivesse sido enterrado, não poderia ressuscitar.

E assim, aquele povo temente a Deus e devoto de Nossa Senhora do Amparo, preenchia de sonoridade o silêncio assustador da noite de Fátima no sertão.
E hoje ainda ecoam nos meus tímpanos e na minha alma aquelas vozes sincronicamente melódicas a cantar louvores de fé e esperança numa boa colheita, pois era da terra que eles tiravam o seu parco sustento.





sábado, 5 de janeiro de 2019

Quer namorar comigo? (II)

Quer namorar comigo? era a pergunta mais difícil de se fazer e a mais fácil de se responder, mas as garotas faziam beicinhos, charminho, e em vez de um sim ou não, preferiam outra pergunta:
- Posso responder daqui a cinco dias? É que vou pensar.
E pensava, pensava, os cinco dias pareciam cinco séculos, e no sexto a resposta tão ansiosamente esperada:
- Posso pensar mais um pouco?
E quando vinha um sim, o mundo desabava em felicidade. Primeiro pegava timidamente na mão. Depois dava um abraço. E quando tudo caminhava para a normalidade de um romance, ela sentenciava:
- Beijo só depois que você pedir ao meu pai para namorar na porta!
Deus do Céu, que tortura! Mil vezes o pau-de-arara aplicado pela ditadura!
- É pegar ou largar! Não sou moça de namorar na rua pra ficar falada.
- Eu pego!
E lá vai o Romeu numa noite de sábado falar com o inquisidor. Pernas bambas, lábios ressabiados, coração acelerado.
- Então, o que o senhor pretende para a minha filha?
Não pretendo nada, só dar uns amassos. Ainda nem fiz dezoito anos. Será que esse coroa nunca foi adolescente?
- Eu pretendo me casar com ela quando me formar.
- Está bem. Mas não deixe de estudar pra ficar namorando.
Vencido uma etapa, beijos de boca, beijos de língua, nascia o desejo de ir avante. Pegar nos seios da namorada era o suprassumo da masculinidade. Eram os famosos amassos. Sem eles, namoro nenhum tinha credibilidade
- Nos seios não, benzinho! Só depois de casar.
Ele não iria esperar tanto tempo.  Insistia todo santo dia, até que numa noite de lua cheia ela aquiesceu:
- Está bem, eu deixo, mas só e somente só se você me prometer de que não vai contar pra ninguém.
- Ah! Então não quero!
- Por que não, meu amor?
- Porque contar pros amigos é o mais gostoso.

Quer namorar comigo?

Já que existe a probabilidade de retornamos aos tempos medievais, há coisas do século passado que adoraria que o Coiso trouxesse de volta para que os coxinhas solteiros sentissem na pele a ditadura das garotas sobre os garotos na hora da paquera. Nada de peguete ou ficante, piriguete ou santinha do pau oco, muito menos sirigaitice. Nada de se ir ao cinema sem levar à tiracolo o irmão pirralho da pretendente. Na roda gigante, cada um na lateral e o pirralho no meio (isso quando a mãe tinha medo de altura) chupando algodão doce. E nada ainda estava certo. Era só distrações para engabelar a garota enquanto a resposta de uma proposta feita dias antes não chegava.
- Quer namorar comigo?
- Não sei... Posso pensar um pouco?
- Quanto tempo?
- Cinco dias.
E o domingo no parque era o quinto dia aprazado para o sim ou o não, duas palavrinhas com o poder de transformar ou destruir o mundo. E a garota era a única com a chave das ilusões. No raro momento de "enfim sós", hora de tirar a prova dos nove:
- E aí, pensou na resposta?
- Que resposta?
- Se quer namorar comigo.
- Ah! Nem tive tempo de pensar! Posso lhe responder daqui a dez dias?
Que fazer!? Enquanto há vida, há esperança. Pior deve ser na guerra. Enquanto isso, a roda gigante sobe e desce em trajetória circular tal qual a Terra em rotação. Quando para no alto, o Diabo se apodera dos desejos, mas falta coragem para jogar o pirralho no vazio. O pretendente olha a mocinha com olhar de peixe morto, apelativo, e suspira resignado. Sente vontade de beijá-la, tirar o vermelho da maçã do amor manchando os lábios, mas o pirralho tá no meio comendo algodão doce, atrapalhando o romance. A roda gigante para, eles descem, os pais da garota aparecem e ele vai para casa dormir sem saber a resposta. É dia de Reis e no outro dia o parque estará desmontado e seguindo viagem na direção dos sonhos. E com muita sorte, no natal seguinte, a garota já terá a resposta.

Menino que fui menina

Quando eu estava para vir ao mundo, a minha mãe quis que eu nascesse igual a Jesus Cristo. Na hora do parto mandou chamar a parteira Tindole e correu para o curral. E assim, conforme as Sagradas Escrituras, o meu berço foi uma manjedoura, que lá no Junco era conhecida como "coxo". Como não havia roupa de príncipe para me vestir, ela me cobriu com uma toalha vermelha comprada na quermesse do Natal para ajudar nas obras da igreja. Quando comecei a caminhar com as próprias pernas (perdoem o pleonasmo, pois, afora os seguidores do Cramulhão, todo mundo caminha com as próprias pernas, por isso se faz necessário reforçar a ideia para não me confundirem com os sem pernas) a minha mãe me olhou carinhosamente, me abraçou chorando e disse:
- Vai, meu filho, ser guache na vida!
E eis-me aqui, séculos depois, refletindo sobre o poder alucinógeno do chá da goiabeira e da capacidade de destruição do cérebro dos seguidores desse que não se deve falar o nome. São tão ignorantes que não sabem que acabar com a ideologia de gênero é justamente destruir esse conceito arcaico de que menino veste azul e menina veste rosa. Acabar com ideologia de gênero é pôr a pique essa história de que menino brinca de bola e menina de boneca.
E viva Marta, a rainha do futebol!