quinta-feira, 15 de abril de 2010

Dias Inúteis e Dias de Homenagens


Essa crônica era pro dia 13, mas fiquei sem o micro onde estava salva. Mas ainda está dentro do prazo.

De Beija eu




Hoje eu acordei com uma novidade sussurrando ao meu ouvido: como se não bastasse tantas invenções inúteis, inventaram também o dia do beijo.

Em boa hora eu me lembrei dos cadernos de confidências das minhas primas, aqueles cujo teor intimista das perguntas, justificava o nome: confidência. Havia de tudo que povoa a inocência da época, desde qual o gosto do beijo ao supra-sumo do erotismo – o beijo de língua. Em alguns, havia a informação de que “o beijo é como o ferro elétrico: liga em cima e esquenta embaixo”.

Mas triste daquele ou daquela que precisa de um dia no ano para beijar. Já nascemos beijando e sendo beijados, e negar-se a tal carinho depois de grande, é, lamentavelmente, triste.

Ninguém inventa nada a troco de nada. Se não receberam verbas governamentais em forma de subsídio para inventar tal inutilidade, no mínimo, pensaram tirar proveito do dia. Eu mesmo estou pensando em montar um stand no único shopping center da cidade para vender beijos, a preços módicos. Como fui surpreendido hoje de manhã, não dá mais tempo de diversificar o estoque, pois só tenho no depósito o beijo do Judas, o beijo da mulher-aranha, o beijo sem sal, o beijo da morte e o famoso beijo de Drácula. Como minha cara-metade – a que me contou a novidade – disse haver infinitos tipos de beijo, quem souber onde posso encontrá-los, fineza deixar recado. Principalmente o tão procurado e tão escasso “beijo amigo”.

O beijo é lenda que virou realidade. Há várias teorias para sua origem, inclusive até de Darwin, mas quem precisa saber disso para beijar e ser beijado? Em compensação, o autor ou autores desse brilhante invento é ou são completamente desconhecidos, sem nenhuma especulação a respeito. Mas, sugerem os meus botões, que foi algum tímido com necessidade de beijar e precisava de um incentivo.

Hoje também se comemora outra data, de suma importância, sem lenda e com autoria. É o dia do Hino Nacional Brasileiro, aquele que toca nos estádios no dia que a seleção brasileira de futebol joga. Você ainda se lembra o que é o Hino Nacional? Mas com certeza nunca se esqueceu do primeiro beijo...

Pois então reavive a memória:

O HINO NACIONAL BRASILEIRO

O hino é a expressão de sentimento coletivo de um povo, a exaltação melódica aos seus heróis, o louvor ufano à sua história, invocação à divindade, em forma de poema ou cântico. Data da antiguidade, em que era composto e cantado em honra dos deuses e dos heróis. O Antigo Testamento é recheado de belíssimos hinos de louvor ao Messias, destacando-se os salmos de Salomão e do seu pai, o rei Davi.

O Hino Nacional Brasileiro é o nosso maior cântico de louvor à Pátria, a emulação de nosso brio patriótico, estimulante do nosso sentimento nacionalista, e, por isso, é executado em solenidades oficiais ou em festividades cívicas e devemos cantá-lo ou ouvi-lo com orgulho, de pé, mão no coração, em demonstração de amor e respeito ao símbolo máximo da nossa nação.

É considerado um dos mais belos hinos do mundo. Sua melodia foi composta em 1822, pelo maestro Francisco Manuel da Silva, para comemorar a Independência do Brasil. Tornou-se popular apenas em 1831, quando ganhou a primeira letra, que continha versos hostis ao imperador D. Pedro I, que acabava de abdicar (Os bronzes da tirania/ Já no Brasil não rouquejam/ Os monstros que a escravizam/ Já entre nós não vicejam). Com a coroação de D. Pedro II, em 1841, foi escrita a segunda letra, e exaltava a figura do novo imperador (Negar de Pedro as virtudes/ Seu talento escurecer/ É negar como é sublime/ Da bela aurora o romper), porém a bajulação ao Imperador foi esquecida pelo povo, que consagrou a música do maestro Francisco Manuel da Silva e esqueceu a letra.


O hino se tornou oficial por força da popularidade, sem que houvesse qualquer decreto nesse sentido. Com o advento da República, em 1889, houve concurso para a escolha de um novo hino, em sintonia com o novo regime. Convidaram o maestro e compositor Carlos Gomes, que se recusou. Venceu a composição de Leopoldo Miguez e Medeiros e Albuquerque, cuja letra canta estes versos adaptados em recente samba-enredo de escola de samba do Rio de Janeiro: “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós! Das lutas na tempestade, dá que ouçamos tua voz”, porém a mudança do Hino não contava com o apoio do povo e o Marechal Deodoro, em consonância com o sentimento popular, no dia 20 de janeiro de 1890, dia do concurso, oficializou a melodia de Francisco Manuel da Silva como o Hino Nacional Brasileiro. O hino vencedor do concurso, de Leopoldo Miguez e Albuquerque, foi proclamado como o Hino da República.

Em 1909 houve outro concurso para a composição poética que mais se adaptasse à música do Hino Nacional, pois a melodia sem letra é mais difícil de se memorizar. O poeta e jornalista Joaquim Osório Duque Estrada fez uma adaptação da Canção do Exilio, de Gonçalves Dias, inclusive copiando alguns versos, os quais se encontram aspados na letra original (nossos bosques têm mais vida/ nossa vida, [em teu seio], mais amores) e se tornou o grande vencedor. Em 06 de setembro de 1922, cem anos depois da composição musical, após algumas pequenas modificações promovidas pelo próprio autor, o presidente Epitácio Pessoa assinou o Decreto 15.671 oficializando a letra do nosso Hino Nacional, tal qual ela é cantada hoje.

“Ninguém poderá ser admitido ao serviço público sem que demonstre conhecimento do Hino Nacional” (Art. 40º do Decreto-Lei nº 5.700 de 1º de setembro de 1971).

Se forem fazer teste do Hino com os servidores públicos, não sobrará ninguém para prestar serviço à comunidade. Já numa cidade da Bahia, durante a troca de comando de um batalhão do Exército, o novo comandante tentava pôr os soldados em forma para cantar o Hino Nacional.

- Tropa! Para cantar o Hino Nacional, sentido! – ordenou, com o devido vigor de comando.

Os soldados olhavam para ele como se nada entendessem. Falava grego? Repetiu o comando:

- Tropa! Para cantar o Hino Nacional, sentido!

Ninguém mexeu uma palha. Alguma coisa estava errada. Dirigiu-se ao antigo comandante, que tirava suas coisas pessoas da escrivaninha. Contou o ocorrido. O ex-comandante falou:

- Ah! Colega. Aqui não é assim não. Vamos lá!

Chegando ao local em que os soldados estavam em forma, o antigo comandante deu as ordens em baianês:

- Ô, meu rei, durin, durin pra cantar euvirundum!

Imediatamente os soldados se colocaram em sentido e cantaram o Hino Nacional. Ou o “Euvirundum”.





quarta-feira, 14 de abril de 2010

A perigosa busca dos atalhos - Cineas Santos




De BBB


Viceja entre nós, como erva daninha, uma praga perigosa que se alastra com enorme velocidade. Trata-se da cultura do atalho que, grosso modo, poderia ser resumida assim: está difícil ou custoso conseguir o que se quer pelas vias normais, busca-se um atalho. Tal prática tanto serve à mocinha preguiçosa que não gosta de estudar, mas sonha com o mundo glamoroso das estrelas, como ao político carreirista que faz alianças até com o diabo para não desapear do poder. É uma espécie de vale tudo onde os fins justificam os meios, por mais torpes que sejam. Creio que o melhor espelho dessa cultura nefasta é o Big Brother, programa televisivo que arrebanha gente de todos os estratos sociais que, como animais enjaulados, exibem-se despudoradamente naquele circo de aberrações. Em artigo memorável, publicado no Jornal do Brasil, a professora Bárbara Musumeci Soares afirma: “O que se vê é o reforço das aspirações imediatistas de conquista de fama e dinheiro. Não a fama de quem investiu na criação de algo, de quem se arriscou para salvar alguém ou de quem se empenhou para transformar alguma coisa. Nem, tampouco, o dinheiro que resulta do trabalho e que retorna para a cadeia produtiva, realimentando circuitos vitais. O que se vende, como um bem que passa a valer por si mesmo, é a possibilidade de reconhecimento fácil, de quem se torna instantaneamente famoso por desempenhar, diante de milhões de brasileiros, o papel de pessoa comum. É a atração do ganho imediato, que não requer nenhum talento, nenhuma grandeza, nenhuma capacidade, nenhuma inspiração”. Melhor definição, impossível.

Por que volto a esse tema tão repisado? Explico: o caderno Folhateen (05/04/10) trouxe estampada na primeira capa a foto de uma jovem (19 anos de idade) com a língua bifurcada, piercings e tatuagens espalhadas pelo corpo. Uma figura bizarra, para dizer o mínimo. Título da reportagem: Muito Prazer. A matéria de capa relata histórias de garotas, recém-saídas da adolescência, que “faturam com a sensualidade” em shows na webcam. Por um punhado de dólares (reais também servem), as meninas se insinuam, exibem-se e até se masturbam para quem se dispuser a pagar. Nenhuma das entrevistadas é tão pobre a ponto de necessitar de tais expedientes para sobreviver. Na verdade, buscam bem mais que os caraminguás que faturam com esse tipo de prostituição virtual; buscam os holofotes, o brilho, a fama, mesmo que seja aquela efêmera, de apenas 15 minutos, prevista por Andy Wharol. Para a psicóloga Leila Tardivo, “a coisificação de si ou do outro é um problema: o ser humano não é um objeto. Isso pode trazer consequências, elas podem ser vítimas de bullyng, por inveja ou por preconceito. A garota se expõe e pode ser vítima de ataques“.

Vai longe o tempo em que as meninas queriam ser professoras, enfermeiras, advogadas, aeromoças etc. Hoje, sem o menor pudor, meninas de classe média, universitárias, buscam os atalhos, por mais perigosos ou abjetos que sejam. O tempora, o mores!

terça-feira, 13 de abril de 2010

A Feira de Santo Amaro - SP - Leila Barros

De Santo Amaro



Imagine um dia de calor na cidade de São Paulo.

Agora, imagine um dia de muito calor no centro do bairro de Santo Amaro...

O asfalto parece mais brilhante de tão quente e o burburinho do lugar assemelha-se ao de uma imensa fornalha que se alimenta de ruídos, buzinas, músicas de todos os tipos e os gritos dos lojistas e ambulantes anunciando seus produtos.
Quase não dá para andar no seu centro comercial, que fica no Largo Treze de Maio.

Existem lonas espalhadas pelo chão e em cima delas podemos escolher uma imensa variedade de artigos interessantes, como CDs, meias, cuecas, calcinhas, batons, gorros de times de futebol, entre outros.

Quase todas as lojas colocam um som bem alto, os camelôs gritam o tempo todo, e ainda podemos ouvir a cada dez metros os relógios despertadores, que para chamar a atenção dos “fregueses”, ficam tocando o alarme. Como há muitos nordestinos no bairro, existe todo um universo de produtos típicos da região.

É divertido observar...

As Casas do Norte vendem queijo qualho, ingredientes para feijoada, um biscoito quadradinho e seco que só vejo nessas lojas, umas gelatinas já prontas com umas listas rosadas e brancas, fumo de rolo e outros artigos típicos. Certa vez, vi um cidadão com um carrinho de mão, desses que pedreiro usa para transportar areia e cimento, carregado de camarão seco. Encontrei também uma moça vendendo feijão verde, que ela me disse ser "feijão de corda".

A igreja da matriz está - coitada - tão velhinha e desativada... Eu tenho a impressão de que meus pais se casaram naquela igreja, que naquele tempo devia ser bonita.
Perto do centro comercial há uma Casa de Cultura e de vez em quando aparecem uns gatos pingados cantando com suas violas ou violões, alguns recitando, outros fazendo performance e ainda outros lendo a Bíblia em voz alta, como se a arte pudesse curá-los de toda carência e dureza que eles enfrentam, por morarem em um dos bairros mais carentes de São Paulo.

São eles os verdadeiros heróis, porque estão sempre sorrindo e cantando seus forrós, mesmo enfrentando a chuva, sol, calor, poluição de todo o tipo e o cansaço. E haja farofa, churrasco grego, morenas bonitas, pagodeiros e crianças com as bocas meladas de doces, sorvetes de creme. Tudo é festa para esse povo!

Salve o bairro de Santo Amaro!

E salve esse povo heróico do brado retumbante, e bota retumbante nisso, gente!

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Crianças - Monteiro Lobato


De carro de boi, na cidade de Caetité, Bahia, Brazil



A gente anda por aí e de vez em quando dá de cara com uma raridade jogada ao léu, olhando pra gente feito cachorrinho abandonado, com aquele olhar pidão de “quero aconchego”. Foi assim que Edna deu de cara com um livro não muito conhecido (ou não muito divulgado) de Monteiro Lobato, porém não menos perspicaz que seus outros livros. Chama-se “Mundo da Lua e Miscelânea”, um verdadeiro achado do diário de Monteiro Lobato. Transcrevo abaixo a primeira estória do diário, por muito se parecer com o arraial do Junco dos meus tempos.

Crianças

As primeiras impressões da vida começada a folhear como a um grande álbum de figuras...

Tem três anos o filho do meu vizinho. Está no período encantado, em que se voltam as primeiras páginas do livro da vida, as páginas de cor onde aparecem o boi, o cachorro o cavalo, os gatos. Adora-os e sempre que pode planta-se à janela à espera de bichos. Bate palmas se avista um longe, e espera-o atento, lábios entreabertos, nesse enlevo das crianças que é metade medo, metade surpresa.

Bois, conhece-os a fundo, visto que mora fronteiro a um armazém onde todos os dias batem carros vindos das fazendas próximas. Mas só os conhece assim – na canga, jungidos ao carro, formando um bloco cheio de pernas, chifres, fueiros e rodas. O boi é, para ele, esse conjunto monstruoso, que anda, muge, roda, rechina.

Ora, aconteceu que passou pela rua uma vaca. O menino empertiga-se, franze a testa, abre a boca e, num pasmo, grita para dentro:

- Mamãe, venha ver um boi sem rodas!...

Lobato, Monteiro. Mundo da Lua e Miscelânea. Editora Brasiliense. 15ª Edição. 1982. P. 15.


domingo, 11 de abril de 2010

Balada para o centenário de Dona Rachel



Por Antonio Torres



De Rachel de Queiroz


Como no tempo do Serviço de Alto Falantes a Voz do Sertão, quando alguém, com muito amor e carinho, dedicava uma bela página do cancioneiro popular – Tu és/ divina e graciosa... - à moça de azul e branco a passar na calçada da igreja, o autor destas linhas já escolheu a trilha sonora para as comemorações do centenário da inesquecível Dona Rachel, no dia 17 de novembro deste ano de 2010: uma terna balada em louvor à sweet comic Valentine/ you make me smile, ora na interpretação melosa de Frank Sinatra, ora na lancinante versão instrumental do trompetista Miles Davis. E assim o locutor que vos escreve contemplará dois aspectos memoráveis da vida e obra da homenageada. A veia cômica e a força dramática.

Na ficção, ela pintou, com cores fortes, cenários inclementes, quadros sociais deploráveis, trágicos destinos humanos. E isto, a bem dizer, desde menina, quando, antes de completar 20 anos, estreou nas letras nacionais com um pequeno romance que causou um grande assombro. Tanto que até hoje basta citarmos O quinze para se saber de qual Rachel estamos falando. Aquela que nos legou reflexões como esta:

“A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado”.

Na intimidade, porém, ela era funny, sim, muito engraçada.

Veja-se, por exemplo, o que o escritor Carlos Heitor Cony conta em sua bem humorada crônica Da arte de falar mal, ao recordar-se de “uma amiga famosa, romancista histórica, que me quis tornar imortal como ela”, e que, adoentada, sem poder sair de casa, pediu-lhe, por intermédio de uma sobrinha e secretária, que fosse buscar o voto. “É evidente que fui, pois muito queria vê-la” – escreve Cony, acrescentando:

“Ela me recebeu nordestinamente afável. Sentada em sua cadeira de palhinha, com ares de senhora-de-engenho, esticou-me o envelope branco:

- Toma. Aqui estão os meus votos. Agora não falemos em literatura. Vamos falar mal de todo mundo!”

E eis como Cony conclui esse episódio:
“Saí tarde da sua casa. Não deixamos pedra sobre pedra [...] Só falamos mal dos ausentes, que era o restante da humanidade, pois em sua sala só havia o visitado e o visitante”.

A primeira vez que me vi em frente dela foi num jantar da cearense Madalena Sá, moradora do Leblon, para a cronista Elsie Lessa, que vivia em Cascaes, Portugal, e estava de passagem pelo Rio. A partir de então, passei a invejar a famosa Dona Rachel, por sempre dizer o que lhe dava na telha, sem se preocupar com o que os outros pensassem disso. O que deve lhe ter sido profilático, se considerarmos a sua longevidade, que em muito ultrapassou a média da expectativa de vida geral. Ela beirou os 93 anos, quase sempre em forma, atilada, de língua afiada. Recordo-a ao telefone, quando retornei a ligação de um tradutor francês, seu hóspede, e que não se encontrava, naquele momento. Dona Rachel aproveitou para esticar conversa, informando que o moço havia saído com a namorada, também francesa, com quem iria se casar em breve, ela informava, com surpresa, pois não punha a mão no fogo quanto à masculinidade do seu visitante. Comentava isso de maneira divertida, mas que hoje seria considerada politicamente incorreta.

Ela não perdoava nem os seus mais respeitáveis confrades. Comentando um encontro em Lisboa com um célebre poeta, que lá estava para receber o Prêmio Camões, detonou: “Ele ficou tão bêbado que não teve pernas para ir à cerimônia. O prêmio acabou sendo recebido pelo nosso embaixador”.


Uma vez, em Fortaleza, ela foi entrevistada por Pedro Bial, no palco de um auditório lotado. Pergunta vai, resposta vem, seu entrevistador comentou o desagrado dos paulistas com o trecho de suas memórias sobre Mário de Andrade.

- Ora! – ela exclamou. – Todo mundo em nosso meio sabia o que Mário de Andrade era, e que ele próprio não negava. Agora, só porque eu escrevi aquilo, dizendo que ele era... – e aí ela pronunciou com todas as letras a palavra chula, fazendo a platéia cair na gargalhada, sem sequer esperar a conclusão da sua frase... - São Paulo quer me linchar?

Em síntese: escrevendo, ela era densa, intensa, dramática. Falando, podia ser hilária, por sua arte ao falar mal. Talvez assim ela quisesse as comemorações de seu centenário: com todos os presentes desancando os ausentes, e dando umas boas risadas.





sábado, 10 de abril de 2010

A PALMATÓRIA


Ela era uma pequena peça circular de madeira, provida de um cabo. Algumas tinham orifícios para exaustão do ar e aumentar o poder de impacto e, conseqüentemente, a dor. Usada como instrumento de castigo para bater na palma das mãos dos castigados, foi o maior instrumento disciplinador dos primeiros sessenta anos do século XX, cujo poder de persuasão extrapolava as raias do convencimento político-ideológico. Tal instrumento se dizia altamente democrático, mas, como ocorre nas democracias, só sobrava para os mais fracos: fracos de espírito, de conhecimento, de discernimento, que, pra variar as estatísticas, ocorria com mais freqüência entre os economicamente mais fracos.

Nas escolas era tida como auxiliar de disciplina; nos lares como estimulador do bom comportamento; e, nas delegacias, como a maior invenção científica para fazer os meliantes confessarem seus crimes.

A professora Tereza a usava com desdém; a professora Serafina, formada na disciplina rígida do Convento das Freiras, na Soledade, em Salvador, abraçou a causa dos direitos humanos e relaxou no seu uso; a professora Suzete nunca usou tal instrumento de tortura e o professor Lau – Laudelino Mendonça - , que apareceu no arraial do Junco nos anos 1920, trazido por Mané Moço para ministrar aula particular de Português e Matemática, a usava com todos os requintes de crueldade. Extremamente rígido na disciplina e exigente no aprendizado, castigava o faltoso, invariavelmente, com meia dúzia de “bolos”, como era chamada a surra de palmatória. Isso fazia com que os alunos ficassem temerosos, medrosos e cabulassem aula.

E foi por conta disso que o velho Professor se deslocou de sua casa para ir até a fazenda de Adelino Torres, em busca de notícias de um aluno que nunca mais havia comparecido às aulas, apesar de ele, Adelino, o pai, pagar as mensalidades rigorosamente em dia, de um filho que não freqüentava a aula.

- Como assim, “não frequenta a aula”?! – espantou-se Adelino Torres, entre um gole de café e o admirar do pôr-do-sol atrás do Cruzeiro dos Montes – Todo dia ele e Raimundo vão para a aula... Valdooo! Raimundoooo! – gritou.

Os dois apareceram cabisbaixos, sorrateiros, desconfiados.

- Raimundo, por que você vai pra aula do Professor Lau e o seu irmão Valdo não?

Raimundo relutou em responder, tentou embromar, fez-se de desentendido, mas, sob a ameaçava de levar uma surra, confessou:

- Eu chamo ele pra ir, mas ele prefere ficar na entrada da cidade, na sombra de uma árvore do Tanque Velho, fumando charuto com os moleques da “Rua”. E ameaçou me bater se eu contasse pro senhor.

Adelino Torres, que se orgulhava de nunca ter dado uma surra em um filho, nesse dia fez valer a palmatória por todos os anos que ficou parada, pendurada na parede, como enfeite ou alimento dos cupins. Valdo levou seis “bolos”. Raimundo ganhou o dobro, para aprender a não esconder os erros do irmão. No outro dia, no caminho da escola, levou uma surra de Valdo e dos moleques da “rua”, para aprender a não dedurar os outros. Chegando à escola do professor Lau, levou mais meia dúzia de “bolos” para não mentir mais para o professor.

Com o Golpe Militar de 1964 o uso da palmatória nas delegacias foi proibido. Ou melhor: substituído pela tortura requintada do pau-de-arara e do choque elétrico. Do mesmo modo, foi terminantemente proibido nas escolas, sendo substituída pela (in)finita paciência dos professores e pelo uso moderno da psicologia. Temia-se que o baixo salário dos professores tornasse o seu uso uma válvula de escape.

Extraido do livro "Arraial do Junco: Crônica de sua existência", desse escriba que vos fala.




quinta-feira, 8 de abril de 2010

Democracia em farrapos, almas arruinadas - Cláudio Canuto



De Compro voto


Com a celeridade característica dos novos tempos, as eleições se aproximam mais uma vez. Com elas, os dublês mal-ajambrados de cientistas políticos, então submersos em sua faina cotidiana, emergem, proferindo com a experiência de um Nostradamus, seus vaticínios profundos como um pires. Com seus dotes de prestidigitador e cartomante, vociferam os prováveis futuros eleitos de candidaturas ainda não anunciadas, arvoram-se detentores legítimos de segredos doravante revelados pela força de suas profecias e pelas revelações de pesquisas eleitorais não realizadas. São os áulicos do poder, os lambe-solas, os goelas de aluguel.

Enquanto pregam isenção ética com o furor de um Napoleão em guerra, certos jornalistas venais buscam um troco oferecendo suas páginas dentro das conveniências do mercado, chamando de vossas excelências, bandidos comuns que se assenhorearam da fragilidade política de nossas instituições para enriquecimento ilícito.

Quanto aos postulantes eleitorais, é duro vê-los outra vez - imunes, pela força vacilante da lei, do último golpe, da última fraude, do último assalto - legitimados por esta massa ignara e disforme que os idealistas chamam povo. Na verdade, alheia ao processo político que lhes guiará o próprio destino. Estes eleitores, corruptos, vendem-se por dez tostões e entregam prazerosamente a seu algoz o chicote de sua própria sordidez e desonra, transformando-se em uma multidão humilhada, desdenhada, subserviente e sem a menor noção da real importância da titularidade do seu voto.

Alguns teóricos ainda encontram certa nostalgia romântica quando falam do povo, sobretudo como forma de representação política autêntica: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, ou como a grande promessa de um devenir histórico grandioso:”O povo unido jamais será vencido!”. Ambas as concepções ruem como um castelo de cartas graças ao poder dos cifrões. Esta multidão vai ofertar sua titularidade de representação eleitoral à escória social, aos insensíveis políticos carreiristas, por alguns tostões momentâneos e novamente mergulhar na miséria do seu cotidiano apenas suportável graças ao peso de décadas de privação e miséria, suas únicas heranças.

É doloroso antecipar que os grandes gatunos locais serão mais uma vez alçados a condição de autoridades incontestes, exercendo uma atividade que se esvaziou completamente, desfilando com soberba sua autoridade arrogante e plena de ignorância orgulhosa, colocados por força das circunstâncias a um palmo acima da lei e dos habitantes desta província condenada a sonolência e a insensibilidade.

A assembléia legislativa de Alagoas, um poder fundamental para o exercício pleno da cidadania, virou um valhacouto de salafrários, completamente desvirtuada de suas verdadeiras funções constitucionais. O judiciário os acoberta – o que os estimula -, e o executivo busca encontrar o seu apoio para o mínimo de governabilidade, em uma troca ilícita. Larápios, comandantes de órgãos estatais ineficientes , burocratas que se comprazem em infernizar os cidadãos.

Nós vivemos em um regime sob a égide do capital, que é avassalador, pois tudo pode comprar: glória, honra, poder, a representação divina, o perdão eclesiástico e, claro, o voto – assim como a fiança, este reconhecimento explícito de que a justiça tem um preço . Falsa pudica e morta de vergonha, esta lady dona de lupanar, vendou os olhos horrorizada com a sua própria transformação, evitando mirar-se no espelho onde, refletida, duplicada, impõe-se, tardia e falha, à prova da sua própria ignomínia.


Nota do Blog: Cláudio Canuto é jornalista e professor de Sociologia da Faculdade Integrada Tiradentes, e é o mais novo colaborador do blog.






quarta-feira, 7 de abril de 2010

A Teia da Diversidade - Cineas Santos





O que aconteceria se, de repente, integrantes de todas as tribos culturais do país decidissem se encontrar, numa cidade ensolarada, para falar, ouvir, ensinar, aprender e, principalmente, conviver solidariamente? A resposta é simples: tudo e mais alguma coisa, principalmente alegria e beleza. Foi essa a impressão que guardei do encontro nacional de pontos de cultura – TEIA: tambores digitais - realizado entre os dias 25 e 31 de março do ano em curso, em Fortaleza. Consta que pelo menos 4 mil representantes de pontos de cultura de todos os recantos do Brasil marcaram presença. O número pode parecer superestimado, mas não duvido de que esteja bem próximo da realidade: em menos de 24 horas, encontrei 3 catingueiros que, como eu, olhavam abismados aquele dilúvio de gente. Uma moça de Caracol, outra de São Raimundo Nonato e um rapaz de Anísio de Abreu, gente de minha antiga aldeia. Confesso, com muita alegria, que nunca me senti tão enturmado. Pela vez primeira na vida, encontrei uma caracolense bem mais articulada do que eu. Com uma câmara digital na mão, a moça registrava tudo, enquanto eu me limitava a espiar. Conclusão: uma teia capaz de alcançar o Caracol é, efetivamente, abrangente.

De repente, o monumental espaço cultural Dragão do Mar ficou pequeno para comportar tantas e tão distintas manifestações culturais. Num mesmo caldeirão musical, misturavam-se a Orquestra de Câmara Eliezer de Carvalho, banda de pífanos dos Irmãos Aniceto, Jorge Mautner, Dona Zefinha, Fagner, Tambores do Tocantins, Orquestra Popular Meninos da Ceilândia, Chico César, Bloco Afro Ilú Obá de Min, Reisado de Santana, Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene, Carimbó dos Quentes da Madrugada e o escambau. Acrescente-se a isso a troca de experiências, debates apimentados, projetos ousados, mostras de arte e artesanato e muita alegria. Um caldeirão cultural fervilhante de luz, cor, sons, magia... Para o encerramento do encontro, organizou-se o Cortejo da Ebulição dos Libertos, com a participação de mais de 2000 pessoas. A melhor parte: os políticos não tiveram espaço para suas arengas costumeiras. A festa tinha dono: o povo brasileiro.

Ainda é cedo para que se faça uma avaliação adequada do legado do governo Lula para a cultura brasileira. Mas é inegável que, sob a batuta de Gilberto Gil e Juca Ferreira, a cultura dos “grotões, chapadas e morros” pôde mostrar a cara sem medo de ser feliz. Os pontos de cultura propiciaram aos “despossuídos” de todas as aldeias a oportunidade de gritarem ao mundo: ESTAMOS VIVOS! Azar de quem não quiser ouvir.





terça-feira, 6 de abril de 2010

Uma luz na escuridão das almas americanas



Por Antonio Torres


De Luz em agosto - Faulkner



Cesse tudo que as Musas novas cantam, que um valor antigo se alevanta. Calma, rapeize! Este começo provocativo, obviamente paródico, expressa mais o estado de humilhação do próprio autor destas linhas, ao reler agora essa obra-prima indiscutível que é Luz em agosto (relançada recentemente no Brasil numa bela edição da Cosacnaify), do que a intenção de humilhar quem quer que seja. Porque nesse romance, tão caudaloso quanto o Mississipi, o Pai das Águas, William Faulkner parece nos dizer que estamos, no mínimo, a três doses abaixo do seu talento, “grande demais”, conforme o espanto até de um Sherwood Anderson, aquele que o ajudara a publicar o seu primeiro romance, Paga de soldado, tão logo Faulkner dele se acercara em Nova Orleans, aí pelo ano de 1925, em busca de ensinamentos, por considerá-lo “um milharal com uma história a contar e uma língua com a qual fazê-lo”.

Ao ler as primeiras páginas daquele candidato a seu discípulo, Anderson anteviu a nascente de um rio largo, profundo, deslumbrante, perturbador, a ser contemplado num misto de exaltação e ultraje, pois sua grandeza chega a dar raiva. Valha-nos Deus! Ainda bem que nós, pobres mortais, já não precisamos abatê-lo às garrafadas. Ele mesmo se encarregou disso, dizendo: “Entre o uísque e nada, escolho o uísque”. O que era uma blague do memorável final de seu Palmeiras selvagens: “Entre a dor e o nada, escolho a dor”.

Tal escolha o levaria a não ver a luz de agosto de 1962. Entrou em trevas totais em 6 de julho daquele ano, à distância de dois meses e dezenove dias para chegar aos 65, que completaria em 25 de setembro. Quem sabe a parodiar-se: “É o uísque, e não a dor, que faz você recordar-se de centenas de ruas selvagens e ermas”.

Não, não foi aí que ele virou um monstro-sagrado. Nem no dia 10 de dezembro de 1950, quando a Academia Sueca lhe entregou o Prêmio Nobel, correspondente ao ano anterior. Muito antes da guerra de 1939, e antes mesmo de conquistar o pleno reconhecimento nos Estados Unidos, Faulkner adquirira uma sólida reputação na Europa, sobretudo na França, onde Jean-Paul Sartre se tornara o seu intérprete e propagandista, considerando-o, ao lado de John Dos Passos, o escritor mais importante e mais original já surgido no século 20. Albert Camus e André Malraux viriam a fazer coro com Sartre. E quando Luz em agosto foi publicado na Suécia, em 1944, todos os jornais locais babaram nas gravatas. Saudaram-no como a revelação de uma arte nova, visceral, ao mesmo tempo primitiva e requintada, e que abria largas perspectivas sobre a condição humana, e na qual se sentia o fim de uma civilização condenada. A do arruinado Sul dos Estados Unidos, que se amargurava pelo fracasso na Guerra da Secessão, incapaz de expiar o seu passado escravista. A decadência levava-o à frustração, e daí à escuridão do fanatismo patriótico e religioso, da intolerância racial, da violência insana, o que o impedia de ver uma luz no fundo de sua alma.

É nesse cenário que se movem os personagens de Luz em agosto, “todos em busca de seu lugar num mundo que reservou para eles apenas um destino trágico”, como escreveu o nosso Marçal Aquino, na apresentação desta nova tradução brasileira, de Celso Mauro Paciornik. E diga-se: sem desmerecer a anterior, de Berenice Xavier (publicada em 1948 pela Editora Globo e, em 1983, pela Nova Fronteira), esta de agora é um tour-de-force admirável. Nela, Paciornik consegue captar o cipoal retórico de Faulkner, em sua prosa polifônica com períodos longos, maneiras de falar no passado e no presente, incluindo o pidgin-english dos escravos e seus descendentes, ritmo tempestuoso, obscuridades verbais, fusão de palavras etc. Mas voltemos a Marçal Aquino: “Há escritores que escrevem grandes livros. Há outros, mais raros, que instauram mundos. William Faulkner pertence a essa linhagem”.

Nem sempre o viram assim. Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, o New York Herald Tribune protestou, por preferir um laureado “mais sorridente num mundo que se entristece”. E o Times, de Londres, acusou-o de escrever num “estilo de oráculo”, além de “maltratar as palavras do vocabulário com a maior sem-cerimônia”. Bullshit, deve ter pensado o sombrio Faulkner, dando uma risadinha, enquanto voava para as luzes de Paris, e de várias cidades japonesas, e de São Paulo, Brasil, onde, ao acordar de ressaca, puxou a cortina da janela do hotel e exclamou: Oh, my God, Chicago again?!

Meu Deus! Haverá leitor no mundo que deixe de exclamar isso, diante de uma página de Faulkner? Ele parece ter fundido a Bíblia às obras de Shakespeare, Dostoievski e James Joyce, para transformá-las numa originalíssima fábula americana, ao mesmo tempo tenebrosa e iluminada. Não é à-toa que se tornou um escritor para escritores. Não foram poucos os que se renderam ao poder da sua magia, o que é visível em Carson McCullers (a de Balada do café triste), William Styron (A escolha de Sofia), Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llhosa, Juan Rulfo (confira no extraordinário Pedro Páramo), Milton Hatoum, o autor de Cinzas do Norte. Ah, sim: o cineasta Glauber Rocha também o incluía entre as suas influências.

Eis aí. Entre Faulkner e nada, eu também escolheria o Faulkner.




segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sobre Pessoas - 13



A BELA TONIA E O VELHO BRAGA

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Tonia Carrero e Rubem Braga



Primeiro, recordo uma noite na Fiorentina, ali no Leme, aqui no Rio, quando a senhora diretora da Casa Laura Alvim, Eliana Caruso, me pôs a uma mesa, ao lado da não menos amável Tônia Carrero, que sempre associei a duas figuras tão ilustres quanto ela: Paulo Autran e Rubem Braga. Associação, aliás, que deriva de sua própria história – de vida e afetos. Mas não foi sobre o sabiá da crônica que conversamos então. Consumimos o tempo numa única rememoração, em torno da vez em que Tônia Carrero e Paulo Autran estiveram na cidade (portuguesa, com certeza) do Porto, para levar à cena a peça Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, num cinemão completamente lotado. O público portuense, contido por natureza, não lhes poupou aplausos.

No dia seguinte, criei coragem e fui procurá-la no hotel em que se hospedara, com uma única fala decorada: “Sou brasileiro e seu fã”. E perdi a respiração ao me ver a poucos passos de distância de uma beleza que só devia nascer a cada cem anos. “Você mora aqui?”, ela me perguntou, com um sorriso piedoso. “Tadinho! Como está agüentando todo esse frio?” Sim, o inverno do Porto é muito longo, sombrio, sujeito a chuvas de granizo, um castigo para quem nasceu nos trópicos. O papo foi rápido porque ela já estava de malas prontas. Paulo Autran ficou. E voltou a subir no mesmo palco, para um recital de poesias, o que sempre fez, magistralmente. Naquela outra noite, porém, sem dividi-lo com a Tônia, ele ficou parecendo um verso de pé quebrado.

Desde aquele encontro com lady Carrero na Fiorentina, venho pensando em contar umas histórias do seu outro amigo. Afinal, também recentemente, ela foi a primeira celebridade convocada para a inauguração de um memorial a Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, a cidade do Espírito Santo onde o célebre cronista nasceu.

A primeira delas se tornou lendária no meio jornalístico carioca. É do seu tempo na revista Manchete, onde escrevia toda semana, assim como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. Um dia, Rubem Braga decidiu ir à sede da empresa, para reivindicar aumento de salário. “O quê? Cinqüenta contos por uma crônica?” – perguntou-lhe o patrão, que se chamava Adolfo Bloch, à beira da apoplexia. Calmamente, Rubem respondeu: “Sim. Por uma crônica e cinqüenta anos de vida”.

Outra: o poeta português Alexandre O’Neill — já devidamente apresentado neste livro — estava num café de Paris, com uma amiga brasileira. Ao olhar em volta, viu um homem sozinho, que tinha a cara de Rubem Braga. “É o próprio”, ela garantiu-lhe. “Mas não vá puxar conversa. Deixe-o na paz da sua solidão”. O’Neill ficou um tempo a observá-lo. Achou-o com um rosto triste. E pensou: “Vai ver é por nunca ter escrito um romance”. Uma conclusão meio doida, de quem, provavelmente, já tinha bebido além da conta.

Há mais uma que entrou para o anedotário como um clássico do gênero. Caribé, o artista argentino que virou baiano, estava de passagem marcada para o Rio. “Rubem Braga vai hospedar você”, disse-lhe Jorge Amado, passando-lhe o endereço da famosa cobertura da Barão da Torre. E assim ele veio, com garantia de casa e comida. Na hora de voltar à Bahia, dirigiu-se ao seu anfitrião, para despedir-se dele e lhe agradecer pela hospitalidade. E acrescentou: “Rubem, durante esses dias aqui, observei todos os seus movimentos. Por isso vou lhe dizer uma coisa: perto de você, Dorival Caymmi é um operário-padrão”.

Na verdade, ele dava duro para viver, como escritor e editor, ao seu tempo de sócio de Fernando Sabino, na Sabiá. Fui levado a conhecê-lo, sem aviso prévio, pelas mãos da pintora Regina Vater. Ela era amiga do velho Braga, a ponto de tocar-lhe na porta, sem telefonar antes.

“Peguem uísque e gelo e se sirvam”, ele disse. Depois, a passos lentos, caminhou para uma rede. E nela, continuou a ler um livro, apanhado no chão. Era o Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que iria publicar, com o sucesso que se sabe. Saí de perto, para não incomodá-lo mais. Aquele que tinha fama de preguiçoso estava trabalhando, enquanto parecia descansar. Vida de artista.




sexta-feira, 2 de abril de 2010

A Nova Versão da Paixão de Cristo

“Coelhinho da Páscoa, que cores tu tens?” D.P.


Na Semana Santa é comum as cidades de interior encenarem a Paixão de Cristo pelas ruas, com grande participação popular, quer como atores, quer como figurantes, mas a maioria é de espectadores aflitos com a catástase bíblica. Em uma cidadezinha do interior de Alagoas, que muito lembra o arraial do Junco, essa representação teatral vem de longos anos e desde a sua primeira encenação que os atores são os mesmos, apesar do tempo a cada ano talhar novos sulcos no rosto do elenco. 

No ano passado, faltando um mês para a apresentação do espetáculo, o diretor reuniu a trupe e falou sem meias palavras:

– É o seguinte pessoal: há muito tempo que estamos com as mesmas pessoas representando a Paixão de Cristo e alguns personagens já não convencem mais, pois ficaram defasados do projeto original. Este ano haverá mudanças no elenco e quero a compreensão de todos, pois não é mais possível continuarmos apresentando um Cristo careca, gordo, barrigudo e próximo dos sessenta anos. E Maria Madalena, então? Está vinte anos à frente da verdadeira. Pilatos? Né bom nem falar! Vocês já viram algum Pilatos desdentado e adunco?!

Ninguém ousou contestar. Contra fatos não há argumentos. A realidade se impunha cruamente quando se olhavam no espelho. Já era passada a hora de pedirem o boné.

Abriu-se a temporada de teste cênico. Vários candidatos se apresentaram. Um ator jovem, malhado e cheio de ginga foi o escolhido para fazer o papel de Jesus Cristo. Tatuagem no braço, brinco na orelha, não lembrava um mínimo o personagem central, mas levava uma carta de apresentação do Prefeito, principal financiador do espetáculo. Pelo menos tinha uma aparência Global, arrancaria suspiro das mulheres, tal qual Tiago Lacerda em Nova Jerusalém. 

O antigo ator principal não ficou sem função. Em reconhecimento aos longos anos de serviço prestado à companhia teatral, arranjaram-lhe o papel do soldado que chicoteia Cristo no caminho do Calvário. Diante do destacamento policial da cidade, ele parecia um atleta e ninguém se lembraria do fato de que soldados romanos não se tornavam sexagenários.

Depois do clássico julgamento em que Pilatos lava as mãos, Jota Cristo foi condenado sem direito a recorrer aos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Sem maiores delongas, puseram a coroa de espinho de plástico flexível na sua cabeça, e o empurraram aos tapas para a saída, onde a cruz de isopor estava à sua espera. Caminhou trôpego para cumprir as profecias, seguido por uma multidão de figurantes e espectadores. Estava escrito nas estrelas e assim teria que ser. Algumas pessoas mais sensíveis choravam às cântaras com o realismo do espetáculo e se auto-flagelavam açoitando as costas com galhos de cansanção. Não bastava a dor: tinham que sentir o ardor e assim expiar a culpa do suplício de Nosso Senhor Jesus Cristo no dia de Sua Paixão e Morte. 

A encenação seguia normalmente até a hora que o soldado chicoteador, com raiva do ator que havia tomado o seu lugar, deu uma chicotada violenta, imprimindo rancor e ódio ao látego. O intérprete de Jota Cristo acusou o golpe, sem denunciar a dor. Pediu baixinho, rangendo os dentes:

– Devagar, cara! Isso aqui é uma encenação! Bata leve, de mentirinha!

O soldado fez ouvido de mercador. Lembrou-se das chicotadas que levou durante aqueles anos todos para depois ser preterido por um almofadinha com pinta de surfista. Sua raiva triplicou ante tal lembrança. Engoliu saliva com gostinho de vingança e baixou o sarrafo. Uma, duas, três chicotadas seguidas, rasgando a roupa e tirando sangue das costas do condenado. Jota Cristo jogou a cruz de lado, se livrou da coroa de espinho, deu um urro, arrebatou o chicote da mão do soldado e o surrou com raiva e fúria. 

O povo, tomado pela forte emoção do espetáculo, pensando tratar-se de um novo enredo para a Paixão nos moldes da coragem sertaneja, aplaudiu entusiasticamente a reação de Cristo, elogiando sua atitude corajosa, de macho. Naquela terra de homens valentes, ninguém aprovava Seu jeito cordeirinho de aceitar morrer resignadamente, ainda mais sendo filho de quem era. Bastava dizer um “abracadabra” para a terra engolir todos os seus inimigos.

– Dá-lhe, Cristo! É assim que reage um cabra-macho! Acaba com esse fariseu safado! Pau nele!

Por conta desse realismo fantástico, foi reescrita uma nova versão do Evangelho, com um novo final histórico: em vez de ser crucificado, Jota Cristo foi recolhido ao xilindró por soldados à paisana, que não faziam parte do elenco.

O povo, em vigília solidária, varou a noite na porta da cadeia, exigindo a liberdade do ator. Sem a crucificação, não haveria Sábado de Aleluia e consequentemente o Judas não poderia ser malhado. As crianças perderiam o chocolate do Domingo de Páscoa e não poderiam cantar as cores do coelhinho.






quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Acampamento da Petrobrás

No arraial do Junco arcaico a Sexta-feira da Paixão era só penitência. Do raiar do dia ao cair do sol, todos os prazeres da vida se tornavam proibidos, sob pena do infrator queimar eternamente no fogo do Inferno. Os homens faziam reunião em conversa de inverno, as mulheres preparavam o banquete ao pé do fogão a lenha – apesar do jejum, comia-se à tripa forra – e os pirralhos dispersavam-se pelo mundo porque também era proibido se castigar filho arreliento.

Tínhamos como vizinho um garoto chamado Jesus. Apesar do sagrado do nome, mais parecia o Cão chupando manga. Falava-se que ele era um anarquista mirim, um projeto de comunista, o Senhor das Estripulias. Meter-se em seu caminho era encomendar confusão. Só perdia para meu primo Cabaú, outro encrenqueiro de marca maior, cujas safadezas encontravam condescendência da minha tia, por ser o seu filho caçula. Pedro, seu irmão mais velho, era o contrário dele: sossegado, pacífico, e só se envolvia em confusão quando se metia com Jesus ou para tirar o irmão de alguma. Badego, meu irmão mais novo, fora batizado José Guedes em homenagem a uma paixão antiga de uma tia nossa. Mais tarde, ela se casou com outro e obrigou Maricas Coxeba, a escrivã, a trocar o nome do meu irmão para Badego. Era um chantagista de marca maior: se não o deixássemos nos acompanhar, ele abria o bico em casa. Assim, formavam-se os seguidores de Jesus que, por ser o mais velho, o mais forte e o mais brigão, detinha um grande poder de convencimento.

Aproveitando-se da inviolabilidade da conduta cristã no dia da Paixão, Jesus propôs que fôssemos ao acampamento da Petrobras em busca de rolimãs para fazermos patinete. Apesar do medo em deixar a segurança da cidade, a proposta era tentadora. Assim, antes do Sol ligar sua caldeira principal, nos embrenhamos rumo ao desconhecido que, segundo Jesus, ficava depois do campo de futebol, coisa de meia légua. E “meia légua”, na nossa cabeça, era coisa pouca.

Não era. Andamos por estradas nunca dantes viajadas por nós e quando o sol começou a ferver o nosso juízo, avistamos o cobiçado acampamento. Nossos corações dispararam de contentamento e júbilo. A alguns passos, dentro de uma grande construção de madeira e zinco, a redenção: um monte de rolimãs nos esperando. Naquele momento de êxtase se formou em nossa cabeça “a gang da calçada e suas patinetes voadoras”.

Ao darmos com o costado no acampamento, uma decepção: o portão estava fechado a cadeado. Batemos palmas. Gritamos. Apareceu um vigia com um rádio de pilha na mão. Ficamos maravilhados com o invento. Na cidade havia rádios de pilha, mas eram verdadeiros monstrengos fabricados em Serrinha. Nada que se comparasse àquele objeto falador como um corno.

O vigia parecia ser gente boa. Disse-nos que era dia de folga por causa do feriado e os petroleiros só retornariam ao trabalho na segunda-feira. Falou para voltarmos na outra semana que teríamos quantos rolimãs quiséssemos. Infelizmente, ele era apenas um simples vigia e não poderia retirar nenhum material de lá de dentro. Perderia o emprego se fizesse isso.

Pedimos água, bebemos, demos meia-volta, volver. Jesus decidiu cortar caminho: voltaríamos por dentro do mato, em diagonal, até cruzarmos com a estrada, adiante. Andamos rápido pela caatinga, usando a caixa d’água do acampamento como referência. Uma hora depois perdemos a caixa d’água de vista e não havia nenhum sinal da estrada. Que rumo tomar?

– Estamos perdidos! – falou Pedro.
– A caipora nos pegou – vaticinou Jesus, materializando nosso medo. A caipora era um bicho tinhoso, gostava de pregar peça em quem adentrava seus domínios sem lhe levar presentes, principalmente dia de sexta-feira ou feriado. E era sexta-feira e feriado. Sua ação seria intensificada. Havia relatos de caçadores atacados pela caipora que perderam o rumo para sempre e viviam andando a esmo pela mata, sem encontrar o caminho de casa.

– Alguém trouxe fumo?
– Quem ia dar fumo pra criança, Jesus? – perguntei.
– E fósforo? Alguém trouxe fósforo?
– Nós viemos buscar rolimã e não fazer fogo – falou Pedro.
– É que Chico Caçador me disse que na falta do fumo a caipora aceita fósforo como presente. É pra acender seu cachimbo. Ou então cachaça.

Não havia fumo, não havia fósforo, não havia cachaça, muito menos comida. A sede começava a apertar.

– Vamos voltar pro acampamento – disse Jesus.
– E de que lado fica o acampamento?! – perguntamos.

O Sol estava a pino, sinal de que devia ser meio-dia. A caatinga é flora sem serventia, não é árvore nem mato. Caminhamos a esmo até encontrar uma árvore que nos deu sombra. Havia uns pés de murici e cambuí, carregados, e aplacamos um pouco a fome. Como eram frutinhas leitosas, acalmamos também a sede. Nossa esperança era de que já tivessem sentido a nossa falta lá na cidade e viessem atrás de nós. Nas atuais circunstâncias, uma surra seria bem-vinda.

Jesus e eu subimos na árvore até o topo para observarmos os arredores. Nenhum sinal da estrada; nenhuma indicação de que houvesse vivente naquele fim de mundo. Cabaú e Badego ameaçaram chorar, mas foram contidos por Pedro, que segurava um cacete. Jesus divisou um vulto à distância. Era gente ou a caipora? Observamos. Pelo chapéu na cabeça e o andar, era gente. Gritamos. Ouvimos nosso eco. Cabaú chorou forte e nós rezamos. Os anjos vieram em nosso socorro. Ouvimos a voz da Providência nos chamando:

– Pedro?! Cabaú?!
– Paiêêê!!!!!!!! – responderam.

Estávamos a dois passos da estrada e não vimos. Retornamos cabisbaixos, soturnos, mas felizes, apesar do sermão do nosso tio doer mais do que surra de cipó-caboclo. Por ser uma Sexta-feira Santa, não apanhamos, porém nunca mais pudemos brincar com Jesus.

quarta-feira, 31 de março de 2010

A Galopante Escalada do Medo

“Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços” – CDA

Por Cineas Santos


De Medo


Segundo os entendidos, o medo é o mais visível e palpável de todos os sentimentos. Faz-se sentir/notar nos olhos, na boca, no coração, nas pernas e, principalmente, nos intestinos. O homem, por ter consciência do perigo e da finitude, fez do medo permanente companheiro de jornada. Ainda assim, viver sob o domínio dele tem efeitos devastadores em nosso organismo. Deixemos, contudo, de filosofice, que o objeto desta arenga é o chão do chão.

Há 30 anos, juntei os caraminguás amealhados a duras penas e comprei um terreno numa área pouco habitada, nas imediações da Universidade Federal do Piauí. A rua não era calçada, faltava água com muita frequência, a iluminação era precária, mas os vizinhos (mucuras, bem-te-vis e camaleões) eram discretos e amistosos. Resolvi construir uma casa que, de alguma forma, me remetesse ao sertão do Piauí. Fiz um casarão de fazenda, com cumeeira alta, varandas amplas e até mourões para amarrar meus cavalos imaginários. Decidi que não me cercaria de muros. Finquei estacas, pus uma tela de arame e plantei uma bela trepadeira. As chuvas se encarregaram do resto: uma viçosa cerca viva me propiciava a sensação de morar no meio de uma roça. À noite, deitado em minha rede de caroá, sentia-me nas brenhas do sertão onde nasci. Como não gosto de ar condicionado, costumava dormir com as janelas abertas. O medo não me tirava o sono.

Tudo ia muito bem até o dia em que surpreendi, entre tufos de helicônias, um indivíduo que, tendo furtado o animal de estimação de um vizinho, escondera-se justamente no meu quintal. Por pouco, não me acusaram de acoitar bandidos em minha casa. A contragosto, resolvi construir um muro civilizado, se é que essa coisa existe. Um muro baixo, de tijolos aparentes, rústico e belo.

Em pouco tempo a rua ganhou novas edificações, calçamento, água e até rede de esgoto. Foi o suficiente para atrair os indesejáveis “visitantes” que, sem o nosso consentimento, apropriavam-se do que nos pertencia. Os vizinhos, apavorados, resolveram construir cercas elétricas. Assim, de um dia para outro, vi-me meio cercado, refém do medo dos outros. Não demorou muito para que eu descobrisse que, sem cerca elétrica no muro da frente, minha casa tornou-se o alvo preferencial dos larápios. Tentei resistir, mas acabei vencido pelos fatos. No ano passado, no meio da noite, dois pivetes – 14 e 16, respectivamente – entraram em minha casa, arrombaram meu carro e, por pouco, não me converteram em notícia ruim. Naquela noite os dois “visitaram” 8 casas, algumas delas cercadas de toda a parafernália vendida pela indústria do medo. O mais novo deles já foi detido 17 vezes. É inteligente, cínico e violento. Se necessário, barbariza, certo da impunidade que lhe garante o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Cansado, vencido, acovardado, fui obrigado a “proteger-me” com cercas elétricas. Finalmente, tornei-me prisioneiro do meu próprio medo. A partir de agora, depositarei, mensalmente, aos pés do deus pavor, o meu dízimo.

O Poeta tinha razão: um dia “morreremos de medo/e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”

terça-feira, 30 de março de 2010

Semana Santa - Momento de Reflexão

Por Luiz Eudes


De Paixão de Cristo



Desde que me entendo por gente que ouço a minha avó Iná falar:

– Jesus morreu para livrar-nos do pecado. É verdade. Ocorre que alguns homens são maus e permearam novamente o mundo de pecados. E todos os anos é celebrada a Paixão de Cristo numa tentativa de nova remissão.

No arraial do Junco a comemoração da Paixão de Cristo é preenchida com celebrações de missas, confissões comunitárias, procissões pelas ruas da cidade e o acender de velas e badalar de sinos. Também há a encenação ao ar livre da Paixão de Cristo, com grande presença de público, que, ano pós ano, desde a primeira encenação nos anos 1980, vai às lágrimas com o calvário vivido por Cristo.


Este ano a minha filha Sarah, 13 anos, chegou a casa com a novidade de que irá participar da confissão comunitária promovido pelo novo sacerdote da Paróquia, embora eu duvide de que, com essa idade, tenha alguma pendência com o Divino. Os participantes da confissão comunitária ficam obrigados a participar de todos os eventos religiosos da comunidade.

A Semana Santa é o momento oportuno para comungarmos com nosso próprio eu, nessa busca incansável da remissão dos pecados e do combate sem trégua aos nossos conflitos interiores.

Portanto, seguindo os passos daquele que veio para salvar o mundo, desejo aos leitores do blog Onde Canta a Acauã, principalmente aos da minha terra, uma semana de intensa reflexão, culminando com uma feliz Páscoa.


N.A. – Quero render homenagem aos meus tios Fernando – in memoriam – e Antonieta, pioneiros na encenação da Paixão de Cristo.

domingo, 28 de março de 2010

Sobre Pessoas - 12


Blues para Cortázar

(E para o saxofonista Rodolfo Novaes)

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres



Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas.

Não custou a perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.

O garoto cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse querendo arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.

O conto se chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que enchiam de calor as noites de Paris. Só que este tinha toda a pinta de um Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.

Tudo isto vem a propósito de um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio, em tradução de Eric Nepomuceno. Trata-se de O fascínio das palavras, que reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor, o livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação com a literatura, aquela coisa da escrita automática, de improvisação da escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras, do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.

Por essas e outras é que achei que havia qualquer coisa de O perseguidor no filme Round midnight (Por volta da meia noite), do franco-suíço Bertrand Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.

Júlio Cortázar não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para ouvir um blues em sua homenagem.