sábado, 7 de agosto de 2010

A concessão do evangélico - Antonio Torres

Crônica do livro "Sobre Pessoas", de Antonio Torres


De E a vida continua


Naquele dia, um passageiro das linhas urbanas Copacabana-Centro estava cheio de pressa. Decidiu que o melhor a fazer era pegar um táxi. Entrou num conduzido por um motorista jovem, mulato, impecavelmente vestido com uma camisa branca de mangas compridas, e que ouvia uma música, bem baixinho. Deu-lhe o destino: Paço Imperial, na Primeiro de Março. "É aquele prédio onde ficam os deputados?" Respondeu que era logo ao lado. E brincou: "Você compraria um carro usado daqueles homens?" Ao que o taxista replicou: "Há gente honesta lá. Nem todos são corruptos."

Por razões que não vêm ao caso, o passageiro levava um CD dentro de uma pasta. E nele havia uma voz de mulher, que poderia ser consoladora para as tensões do tráfego e da vida, com suas inexoráveis urgências. Perguntou ao seu condutor se se incomodaria de trocar o que estava ouvindo por aquele outro. Ele quis saber qual era o conteúdo do disco. O gênero musical - falou assim. Bem falante. Os esclarecimentos foram dados, com ênfase na beleza das canções, escritas por Vinícius de Moraes. O moço ao volante sabia vagamente de quem se tratava. Ainda assim, sentenciou:

- Só ouço música evangélica.

Imposição da sua igreja? Não, o que ia no banco traseiro não se atreveu a indagar isso ao da frente, que já acedia:

- Mas vou fazer uma concessão - disse, pondo o disco em movimento.

O passageiro agradeceu-lhe e calou-se. Passou a pensar nas suas dificuldades de lidar com religiosos fervorosos que fazem de suas crenças as únicas verdades terrestres. E cósmicas. Historicamente, as religiões levam à intolerância, que leva às guerras. No entanto tinha de respeitar a fé alheia, tábua de salvação neste mundo pós-utópico, sem nenhum projeto coletivo em que crentes e descrentes possam se agarrar. E também precisava reconhecer que o evangélico ali estava sendo tolerante.

Conheceria ele os princípios filosóficos de Lutero e Calvino, que fundamentaram o protestantismo? Mas não seria exigir demais de quem vivia em trânsito permanente?

Ao final da corrida, o motorista confessou que havia gostado do disco. "Quem canta aí?"

Era Elizete Cardoso, da qual nunca tinha ouvido falar.

Ao saltar nas barbas do Palácio Tiradentes, pensei: será que ele estava se referindo aos deputados evangélicos, quando disse que nem todos eram desonestos? Vai ver admitindo que alguns fazem suas concessões. Ao demônio.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Presente de Grego - Cineas Santos

De cavalo de tróia


Antes mesmo do aniversário de Teresina (16 de agosto), a cidade recebe e agradece o “presentão”, louvado na mídia local como algo extraordinário. Engana-se quem, porventura, estiver pensando no tal mirante da ponte estaiada, na vigésima “reinauguração” da Potycabana ou em coisa parecida. A cidade está exultante com a inauguração de mais um supermercado na zona leste da cidade. Novidadeiro como ele só, o teresinense atendeu ao chamado do “progresso”: lota o gigantesco estacionamento e faz filas para conferir mercadorias, preços e prazos. Segundo uma cidadã bem-nascida que ostenta, com orgulho, um sobrenome pomposo, “Teresina, finalmente, ganha ares de cidade moderna, livrando-se do rótulo provinciano de Cidade Verde”. Acertou em cheio. Para a construção do novo templo do consumo na capital, derrubaram-se dezenas de árvores centenárias. Da noite para o dia, mangueiras, jaqueiras, oitizeiros e cajueiros foram reduzidos a pó. Onde, até bem pouco tempo, havia um dos clubes mais tradicionais de Teresina, com piscina, campo de futebol e espaçosa área verde, ergueram-se galpões modernosos, com cores berrantes, abarrotados de quinquilharias. Este parece ser o destino de todos os clubes da capital (Flamengo, River, Piauí, Tabajara, Classes Produtoras, etc). Neste ritmo, em dois ou três anos, não sobrará um.

É extraordinário o esforço que os teresinenses vêm fazendo no sentido de despir a capital do tal rótulo “Cidade Verde”, cortesia do escritor Coelho Neto, na década de trinta. Até onde sei, ainda não se fez um levantamento de quantas árvores são derrubadas em Teresina a cada dia. O tal “cinturão verde” da capital, há muito, tornou-se um amontoado de “vilas”, eufemismo usado para designar as favelas da capital. Quintais e chácaras dão lugar a edifícios de nomes sofisticados ou condomínios fechados que usam como chamariz o anzol da “segurança”. O que se vende não é um produto, mas uma ideia, uma grife, uma expectativa que não se cumpre. “Morar bem”, segundo o conceito dos expertos, é enjaular-se num apartamento com ar condicionado em cada um dos cômodos, circuito interno de televisão, porteiro eletrônico, toda a parafernália que engorda o faturamento da indústria do medo.

Compreensivelmente, todas as praças de Teresina estão às moscas, exceto as dos shoppings onde existem ar refrigerado e “segurança”. O teresinense já não consegue viver ao ar livre e, a cada dia, vai-se tornando refém do “clima artificial” e do medo que, como diria o poeta, “esteriliza os abraços”. Só assim se explica a sofreguidão com que recebe de braços abertos os presentes de grego que nos chegam a cada dia. Brava gente. Pobre gente.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Arraial do Junco sitiado pelo medo

De violência urbana


Na semana passada escrevi aqui sobre a violência que tomou de assalto a pacata população do arraial do Junco, incentivada pela ausência de investimentos em segurança pública e pela falta de ações sociais junto às comunidades carentes e aplicações de recursos em geração de emprego e renda. Como diz o ditado popular: mente desocupada é oficina do Diabo.

Some-se a isso a impunidade que permeia nas varas e tribunais, onde os ladrões do colarinho branco sempre se safam dos crimes de lesa-pátria. Ou de assalto aos cofres públicos. No arraial do Junco, com raras exceções, entram prefeitos pobres ou remediados e de uma hora pra outra se tornam grandes fazendeiros ou empresários, sem que se justifique tamanho aumento de patrimônio. E passam incólumes pelos tribunais fiscalizadores. De vez em quando um ou outro é apanhado por não ter como justificar tamanha roubalheira, mas aí a Câmara de Vereadores legaliza o desvio de conduta e o butim.

Hoje peço licença aos leitores do blog para publicar uma carta da professora, escritora e também colaboradora desse blog, Cristiana Alves, feita sob a tutela do medo, hoje de manhã, quando o Banco do Brasil do arraial do Junco foi tomado de assalto e a mesma lecionava em frente ao banco, de onde ouviu o tiroteio e a gritaria.

Sem polícia, sem delegado, os bandidos fizeram a festa.
Fiz uma revisão rápida no texto, apenas ajustando palavras desencontradas pelo medo.



Carta de Cristiana Alves


“Querido!

" A vida permanece em mim, e eu nela; o amor permanece em mim e eu nele..."



Se estiver lendo... ora, reza, pensa em coisas positivas. Tem um assalto em frente ao lugar que trabalho... estou com medo de alguém sair ferido... muitos tiros... reféns... Estou trancada no laboratório... tem muita gente lá fora... Não tenho noticias dos acontecimentos... vou ficar bem, mas temo por quem não está dentro do colégio... Há reféns no banco, não sei quem são. Por favor, perdoe-me por ficar te escrevendo agora , mas é que preciso me manter calma, a única forma é escrevendo. Sei que há violência em todos os lugares, mas assusta ver perto de nós.

Eu não diferencio tiros de bombas, pensei que eram fogos dentro da sala. Os alunos estão contidos, embora nervosos. Quem está no colégio está protegido. Liguei para minha casa; estão quase todos em casa... Não sei onde está meu pai, mas acredito que ele esteja na fazendo...

Estou aqui, mas fico preocupada com quem pode estar ferido.... Não consigo parar de escrever... Sinto paz em pensar em ti... sinto vontade de chorar também, mas NÃO POSSO, TÊM ADOLESCENTES ESPERANDO QUE EU SEJA FORTE E NÃO CHORE... Fico pensando o quanto somos impotentes, o quanto o que fazemos não resolve, precisamos de ações sociais mais efetivas, mas ignoramos as diferenças sociais.

Esta era uma cidade na qual se podia dormir com as janelas abertas, as portas e varandas não precisavam de fechadura, hoje transformam-se em presídio, estou trancada num “sair ou ficar eis a questão”, melhor ficar presa, por trás das grades de um colégio, lugar de liberdade, como se fosse um presídio e esperar que os tiros nesta floresta da violência não atinjam aqueles que nela percorrem entre ruas de calçadas que se transformam em selvas do animais que são considerados civilizados.

Pessoas que parecem iguais, não sei onde se desviam do humano, uns reféns de armas, outros reféns sociais, não sei o que se passa na cabeça das pessoas, escrevo de fluxo, não sei mais o que penso ou o que sinto neste momento.

Tenho informações que lá fora os tiros cessaram, a bordo de uma carro estão pessoas, semelhantes iguais, uns com armas na mão, outros com a vida por um fio, todos vivendo num carrossel que não para de girar, todos vivendo um mundo que há pouco parecia irreal...

Quando minha vida cessar que ela se vá escrita com algo que remeta paz, não gosto de chorar lágrimas sobre palavras, não gosto de ver o lugar em que cresci transformado numa selva em que animais como eu, são predadores de homens...

Projéteis por todo lado, vidros quebrados, as pessoas falam ao meu redor, eu não consigo deixar este teclado, estou paralisada em frente a uma tela de computador, sinto vontade de chorar, não choro com lágrimas, mas com palavras que saltam da minha mente em fluxo, não escrevo com nexo, faço uma carta a alguém especial, CONFIRO SE MINHA FAMÍLIA ESTA EM CASA, QUANDO EU ME DESPEDIR DA VIDA NÃO QUERO IR COM MAGOAS, QUERO TER A CERTEZA DE QUE AMEI E FUI AMADA DE DIFERENTES FORMAS, AOS MEU AMIGOS, nenhuma saudade, apenas a certeza de que vivi e fui feliz ao lado deles. É difícil ver a possibilidade de morrer em um minuto, penso que se eu estivesse lá fora correria riscos...não sei o que acontece... Espero que não tenha feridos, penso que em pouco tempo o que escrevo estará noticiado de outra forma em jornais, falando de vítimas e assassinos, ladrões, entretanto neste momento eu só penso nas pessoas...

Porque a vida tem que se esvair, porque a necessidade de assaltos, porque ferir, machucar, tirar vida... a criminalidade cresce o uso de drogas também, com ele o trafico, pessoas morrem e dizem que vão fecham o foram...

Estamos em terra de ninguém... Agora preciso ir ter noticias do mundo lá de fora...

Estou bem, acabou este capítulo do pesadelo, chuva de tiros, assalto a banco... mas há reféns ainda não sei quem são.

Ficarei bem, tentarei chorar com lágrimas quando chegar em meu quarto ou num banheiro escuro, não quero guardar este sentimento que me aperta o peito, quero na próxima escritura te falar de amor, de um poema ou um sonho bonito, quero uma " Poesia lírica", quero as notas de uma canção, quero dar e receber carinho e proteção, não quero falar de tiros, não quero ver corpos feridos, nem almas dilaceradas, quero uma canção mais bonita. Se eu tivesse partido hoje minhas últimas palavras teriam sido para você.

Quero escrever belas canções para os poemas vivos do meu viver, não um lamento ou canto de dor, por isso continuarei a escrever sempre coisa que desejo viver, mas não estou afastada da realidade, não sou cega vejo o mundo lá fora, as na partitura da sinfonia de tiros não vejo harmonia alguma.

Não esquece: vale cada instante em que estamos juntos, vale a vida, vale os sonhos... vale cada coisa que eu, você, as pessoas que conhecemos, filhos, irmãos, amigos, amores, pais, pessoas próximas, pessoas distantes nos proporcionaram de vida. Façamos valer a vida...

Beijos!

Cris


Desculpe-me os deslizes na gramática neste momento escrevo o que sinto sem tempo para revisão. Viver é como escrever este texto, um rascunho sem revisão.”

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Você acha que o brasileiro tá ficando burro?

Sobra criatividade ao brasileiro, mas lhe falta decoro na hora de votar. O vídeoclip abaixo é um verdadeiro tapa na cara da nossa indiferença com os resultados das urnas.


Edna Lopes - Combate à Corrupção: Uma Tarefa de Muitos

De FOCCO


Cada vez que os noticiários, tanto em nível local como nacional, divulgam atos de corrupção ativa ou passiva que envolve, em especial, representantes de órgãos públicos, cobrem de vergonha e indignação quem pauta sua vida de forma correta e não tolera qualquer tipo de ilicitude.

Quem acompanha esses mesmos noticiários sabe da ciranda de escândalos que “pipoca” de tempos em tempos em Alagoas. As operações da polícia federal com nomes sugestivos (Taturana, Guabiru...) tem desbaratado quadrilhas especializadas em dilapidar o erário. Merenda escolar, medicamentos, sinistros, donativos... aliás, tudo que pode representar lucro fácil tem sido alvo das quadrilhas que se organizam com a rapidez de água morro abaixo.

Cansado de ver, ouvir e ser enxovalhado e/ou olhado com desconfiança em qualquer lugar que chega, pois até nas redes sociais já se criou comunidade para disseminar preconceitos, o povo alagoano se organizou para dizer NÃO a essa praga que parece corroer o cerne da máquina pública daqui. No final de 2008 foi criado O FOCCO-AL - Fórum de Combate à Corrupção de Alagoas, para abrigar entidades da sociedade civil e órgãos em defesa do/a cidadão/ã , da aplicabilidade das leis e do combate a corrupção. A coordenação local está sob a responsabilidade do promotor Ubirajara Ramos, que representa o Ministério Público Alagoano.

As ações do FOCCO - AL desde então tem sido pedagógicas, de prevenção, mas também de fiscalização e monitoramento das políticas públicas no estado. Chega de ser motivo de piada e chega de impunidade! Essas ratazanas que agem na calada da noite contra a população, dilapidando os recursos públicos precisam ser denunciadas e punidas.

Por ocasião da tragédia que se abateu sobre 19 cidades, com chuvas e enchentes destruindo total ou parcialmente alguns lugares, este fórum tomou para si algumas tarefas tais como a de acompanhar, prestar orientação e dirimir dúvidas sobre o processo de compras, contratações de obras e serviços na aplicação de recursos destinados aos municípios em situação de emergência e calamidade pública. Para isso lançou uma cartilha orientando compras e contratos emergenciais.

Todas as entidades e órgãos participantes deste fórum têm a obrigação de acompanhar a aplicação dos recursos nas obras de recuperação das cidades por isso convidar os prefeitos dessas cidades para que os responsáveis pelas ações de repasse de recursos prestem conta, além de orientá-los nas licitações e nos próximos passos a serem dados, foi muito bem visto por todos.

A ação de “prevenir” possíveis erros é pedagógica. Cabe a cada um de nós nos colocarmos a disposição para exercer o papel do controle social. Não basta contatar que TUDO está errado e lamentar quando o ERRO é denunciado. É preciso participar efetivamente orientando, cobrando, exigindo punição quando algo está errado.

Resgatar a dignidade passa pelo caminho da participação cidadã. Como cidadã e educadora, participante de um conselho de direito que se sentou à mesa de abertura representando todos os conselheiros deste estado lembro a cada um e cada uma que nossa tarefa mal começou.

Mais uma vez cito o poeta africano Agostinho Neto: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”


O FOCCO-AL é integrado por 32 órgãos públicos e entidades da sociedade civil organizada. São elas: Advocacia Geral da União (AGU), Associação Alagoana de Magistrados (Almagis) Arquidiocese de Maceió, Associação dos Membros do Ministério Público de Alagoas, Comitê 9840, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, Controladoria Geral da União (CGU), Controladoria Geral do Estado, Central Única dos Trabalhadores (CUT) Defensoria Pública Estadual, Defensoria Pública da União, Delegacia da Receita Federal, Departamento de Polícia Federal/AL, Federação das Pestalozzi de Alagoas, Fórum de Conselhos de Direitos-(Facond), Fórum Permanente Pela Vida e Pela Paz (FORVIDA), Instituto Silvio Vianna, Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Movimento Social Contra a Corrupção e a Criminalidade (MSCC), Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL), Secretaria de Estado da Fazenda de Alagoas, Serviço de Auditoria do Ministério da Saúde em Alagoas, Sindicato dos Jornalistas de Alagoas (Sindjornal), Sindicato dos Médicos de Alagoas (Sindmed), Sindicato dos Policiais Federais de Alagoas (Sinpofal), Sindicato dos Servidores do Tribunal de Contas do Estado. De Alagoas (Sindicontas), Sindicato dos Trabalhadores de Educação de Alagoas (Sinteal), Tribunal de Contas do Estado de Alagoas, Tribunal de Contas da União (TCU), Tribunal Regional Eleitoral e Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e Tribunal de Justiça de Alagoas.

domingo, 1 de agosto de 2010

Luís Pimentel: No Dia em que eu vim me embora

De O seminário


A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo o que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

– Você se apresse que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.
– Quase pronto, pai. Mas posso saber para onde vamos?
– Já disse. Para o tal do seminário.
– E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?
– Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Idéia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as
frases, sem muito cuidado com as palavras.

Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um carinho no cachorro que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

– E para que essa cara de tristeza? Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo.
– Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.
– Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.
– Grande coisa!
– Você está sendo mal-agradecido.
– Eu não queria, pai.
– Sua mãe decidiu.
– Eu sei.
– Tá decidido.
– Eu sei.
– É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.
– Vou poder levar o meu cachorro?
– Não. Eles não aceitam bicho lá.

O sol sempre intenso naquele pedaço de mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

Subimos na carroceria do caminhão que nos levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

– Vai ser bom para você – ele disse.
– Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.
– Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

– Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as férias em casa.
– Não venho – reagi.
– Não vem?

Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

Continuei impiedoso:

– Não venho.
– Eu busco você.
– Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a mal criação.

A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

– Pensando na morte da bezerra?
– Em meu cachorro.
– Sua mãe vai cuidar bem dele.
– Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada neste mundo.
– Eu cuido dele.
– O senhor não tem tempo.
– Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?
– Não tem. É cachorro mesmo.
– Vou cuidar muito bem de Cachorro – repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista, que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos compridos na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.



sexta-feira, 30 de julho de 2010

A mãe, as professoras e os dias de um escritor - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", de Antonio Torres

De Aprendendo o ABC



O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois, quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas - bê-a-bá, bê-e-bé... - e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva...

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus.

Quando foi para a escola, num mês de março, já sabia ler a cartilha, o que deixou a professora Serafina muito feliz. Então chegou o dia 7 de Setembro. Escolhido para recitar um poema patriótico em cima de um palanque, viu a praça antes empoeirada e deserta apinhar-se de gente. Pensou que ia cair, tal era a tremedeira nas pernas. Ainda assim, soltou a sua voz gasgita: "Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que a luz do sol encerra/ as divinas promessas da esperança."

O público reagiu com lágrimas, num emocionado preito a uma criança capaz de memorizar todas aquelas palavras bonitas. Dali por diante, se lhe perguntassem o que queria ser quando crescesse, já tinha a resposta: Castro Alves.

Aí chegou outra professora. "Leve os meninos," disse-lhe dona Serafina. Triste notícia. Que graça teria uma escola sem meninas? A recém-chegada chamava-se Teresa, que trazia uma novidade: um livro para ser lido em voz alta, tão encardido e pobrezinho quanto aquele lugar de lavradores. Vinha a ser uma antologia de contos, crônicas e poesias. Para começar, ao personagem desta história coube um texto de José de Alencar, que nunca esqueceria: "Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba." Imagine o efeito disso. Ele não fazia a menor idéia de como era o mar.

Também não tinha familiaridade com a chuva, o tema de uma redação, dificílimo, para quem vivia no polígono das secas. Asas à imaginação. Seu desempenho na escrita ganhou fama, levando-o a ser solicitado à realização de serviços mais desafiadores, por exemplo, as cartas dos apaixonados do lugar - e suas respostas. E as das chorosas mulheres dos migrantes. Estas eram de cortar o coração.

E assim iria se fazendo um escritor nascido na roça. As leituras o levaram a trocar a enxada pela caneta, com a qual viria a cavar o seu sustento, pela vida afora. E sempre a olhar as letras com o mesmo encanto com que as viu pela primeira vez.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Pobres meninos ricos... - Cineas Santos




De Futebol de várzea


O moleque ainda se encontra no “ventre das expectativas” e já é observado por olhos rapaces. São os “olheiros” profissionais, gente com faro para descobrir o que pode render bons dividendos. Como não dispõem de capital, trabalham para ex-jogadores de futebol, cartolas, especuladores de todos os naipes. Perambulam pelos subúrbios à caça de garotos com alguma habilidade. Quando descobrem algum, correm para entregá-lo a quem o contratou. A partir daí, o passe ( leia-se a posse) do futuro craque é fatiada entre os que se dispuserem a investir nele. Inicia-se, então, a trama para encontrar um grande clube disposto a contratá-lo. Assinado o primeiro contrato, cada um recebe o que lhe cabe e o garoto vai suar a camisa. Se, porventura, tiver talento e sorte, pode marcar ou defender um gol decisivo. Aí, como num passe de mágica, passa de “promessa” a “revelação”. Sai do anonimato para as páginas dos grandes jornais, com direito a elogios e afagos. No dia seguinte, aparecem o pai (até então, desconhecido), os parentes, os aderentes, os amigos de infância, e as indefectíveis marias-chuteiras. Esse caldo de cultura costuma ser letal. Adiante-se que o garoto-revelação, há bastante tempo, vem adubando seus sonhos de consumo: carrões, joias e louras... Assim, antes de reformar o barraco da mãe, passa a circular, sempre “bem” acompanhado, por lugares badalados.

Antes que um dos meus três leitores esbraveje, adianto: o que acabei de afirmar aqui é uma caricatura grotesca, mas com gotículas de verdade. A pergunta cabível é a seguinte: o que os grandes clubes de futebol estão fazendo para melhorar o nível intelectual dessa molecada pobre, semianalfabeta, que só possui alguma habilidade com os pés? As empresas da construção civil, por exemplo, já se deram conta de que operários instruídos acidentam-se menos e rendem muito mais. Estão investindo na alfabetização dos trabalhadores. Por que os clubes de futebol não fazem o mesmo? Por que, durante o tempo que passam concentrados, os jogadores não recebem aulas de português, de inglês, de ética, de educação sexual, de cidadania? Certa feita, Rachel de Queirós afirmou: “Vida de craque não são rosas”. Tinha razão: jogador profissional passa 80% do tempo concentrado, treinando,viajando ou jogando. O tempinho livre que lhe sobra é dedicado à esbórnia, que ninguém é de ferro.

Alguns, antes da maioridade, são “exportados” para os milionários clubes europeus. No ato da transação, um desses moleques pode embolsar, de uma vez, o que um professor-doutor não ganhará ao longo de toda a vida útil. O que fazer com tanto dinheiro e nenhuma informação? Comprar carrões, piercings de diamantes, correntes de ouro e louras, um harém de louras... Com raras exceções, o desempenho dessas estrelas, em campo, decresce na mesma proporção em que se lhes aumentam os salários. Como conciliar uma carreira que exige disciplina espartana com as tentações do mundo?

Quando “pisam na bola” ( e como pisam!), a mesma imprensa que os diviniza, sataniza-os sem a menor piedade. Num átimo, passam de heróis a vilões e acabam nas páginas policiais. Pensando bem, até por piedade, o país deveria importar-se um pouco mais com o destino desses pobres meninos ricos

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Polícia! Pra que Polícia? - Ronaldo Torres

De Procura-se Polícia



Se gritarem “pega ladrão!” corra para o lado oposto, porque o meliante nunca age sozinho ou de cara limpa. E, no arraial do Junco, Polícia virou vocábulo em desuso.

A delegacia de lá é como “A Casa”, de Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada / não tinha teto, não tinha nada”. Presos não há nela não porque lhe falta um escrivão. Se houvesse segurança institucional conforme manda a Constituição Brasileira, havia superlotação na cadeia, de tantos velhacos e amigos do alheio que pululam na cidade. Sem se falar nos latrocidas de plantão no matagal à espreita do incauto velhinho e seu salário da aposentadoria.

Se faltou craque na seleção de Dunga, no arraial do Junco o crack abunda de tal maneira que uma boa parcela da população já anda de boca torta. Sem polícia para interromper o fumacê, a turma fuma seu cachimbinho na santa paz de Jah. O problema é na hora do acerto de contas com o traficante. Sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, a solução é enveredar pelo mundo do crime. Quem quiser que cuide em colocar tranca reforçada nas portas ou contratar vigilância particular.

Esse cuidado não teve o cidadão que abriu uma loja de revenda de aparelho celular, pensando em tirar proveito da novidade: uma torre da operadora TIM, que fora obrigada pela Anatel a ligar a caatinga ao restante do mundo. Até que ele teria feito seu pé de meia sem maiores delongas se o ladrão não tivesse descoberto a fragilidade da segurança da loja e a inoperosidade da polícia. Arrombou a porta e fez o rapa, sem deixar um aparelho de remédio, como diria a minha avó.

Mas houve um tempo que existia lei no arraial do Junco. Eu era menino, mas me lembro da noite que o delegado teve o prazer de inaugurar a cela e a palmatória da cadeia, que, aliás, não era nem cadeia nos padrões normais, mas uma casa alugada pela Prefeitura, cujos quartos serviam de abrigo aos meliantes. Era um garoto o tal do ladrão, quase da minha idade, que fora flagrado roubando umas miudezas na feira. O delegado, um cidadão comum da cidade investido do cargo, convocou a população para dar testemunho do seu método científico em fazer o ladrão de galinhas cantar. Como havia muita gente e não cabia na casa, ele colocou o malfeitor na calçada, pegou a palmatória e deu tantos bolos no ladrão que, se vivo ainda for, deve chorar toda vez que se lembra desse episódio. No dia seguinte o agente da Lei abriu a porta da cadeia e o soltou, com a recomendação expressa de nunca mais aparecer por lá.

O meu avô materno também foi um homem da Lei, nomeado por um político de alta patente. Não exibia uma estrela de xerife à moda do Velho Oeste, mas sentia orgulho como tal. Como os fora-da-lei passavam ao largo da cidade e ele ia torrar seu mandato sem nenhuma ocorrência policial de relevância reconhecida, resolveu então prender um petroleiro que passava no carro da Petrobrás e, ao avistá-lo montado em seu alazão, buzinou em saudação. O cavalo se assustou, empinou e jogou o cavaleiro ao chão. Ato contínuo, levantou-se, sacudiu a poeira, montou no cavalo e se dirigiu ao acampamento da Petrobrás, onde deu voz de prisão ao infeliz. O motorista delinquente passou três dias na cadeia e só foi solto depois que o cabo de turma garantiu que ele seria transferido.

Nos anos oitenta havia um delegado e um destacamento da Polícia Militar na cidade. Dava para o gasto se o Banco do Brasil não tivesse inaugurado a sucursal do Inferno em pleno sertão: hora e outra era assaltado sem a menor desfaçatez dos assaltantes, pois coincidia da polícia e do delegado estarem em diligência noutras paragens. Mas um aprendiz de ladrão de cavalos não teve a mesma sorte. Roubou um cavalo no pasto e foi para a cidade fazer negócio, se imaginando o rei do crime insolúvel. Era dia de feira e não seria difícil passar o animal adiante. Ao primeiro que ofereceu, recebeu voz de prisão: era o delegado e, por azar, o dono do cavalo.

Por exigência constitucional, delegados, agora, só de carreira. E nomeados por concurso. É que muitos xerifes, à moda do Oeste americano, se rendiam facilmente ao poder local, normalmente se agregando ao prefeito que era, na verdade, o responsável por sua nomeação. Como o acontecido no arraial do Junco. A cidade festejava mais um ano de emancipação política quando um arruaceiro foi preso. Correram ao prefeito pedindo soltura, pois era filho de um cabo eleitoral importante. O prefeito, de cima do trio elétrico onde vendia simpatia, tomou o microfone do cantor e mandou a polícia soltar o rapaz. Os agredidos se sentiram mais agredidos ainda e subiram no trio. Eram muitos. O prefeito voltou atrás e mandou a polícia levar o desordeiro pro xilindró. Outros amigos do preso intercederam. Era só um mal entendido. O prefeito mandou soltar. E nesse vai e vem, um soldado subiu no trio, pegou o microfone, e implorou:

– Seu prefeito, resolva logo: é pra prender ou pra soltar?

Hoje, infelizmente, é para se prender os autores de outros tipos de delitos, mais perniciosos e até crimes de morte. Mas... cadê a Polícia?

Ah! O prefeito?! Vai bem, obrigado.



sábado, 24 de julho de 2010

Desvio de Donativos em Alagoas: Indigna - Ação - Edna Lopes




De Ação


"Sou humano, e nada do que é humano me é estranho”. Mais de uma vez durante esta semana, essa frase atribuída ao sábio Terêncio me veio ao pensamento, por várias razões, todas elas refletindo sobre atos e fatos divulgados pela imprensa.

Não estranho quando um HUMANO se revela capaz de por em risco a própria vida para salvar um pássaro nem poupa esforços para ajudar um “estranho” vítima de um acidente de trânsito, como também não estranho quando outro HUMANO se mostra capaz de roubar os donativos das famílias que perderam entes queridos, tudo que tinham de material e aos poucos perdem a dignidade, submetidos à condições abjetas de vida.

Enquanto uma ação me emociona e mantêm acesa a esperança e a fé que tenho na humanidade, a outra me indigna, me envergonha sobremaneira. Como pode alguém descer tão baixo? Como pode alguém ser tão torpe?

No final da semana passada, quando as primeiras denúncias de desvios ventilaram na imprensa, ouvi estarrecida, alguns relatos da desfaçatez de alguns que são pagos com nosso dinheiro para nos roubar. Acobertados sempre pela impunidade, não fazem cerimônia quando a questão é “se dar bem”, lucrar, mesmo as custas da miséria alheia.

Jamais incorreria no erro de generalizar! Transcrevo aqui um comentário de alguém num dos sites que publicou a notícia e faço minhas cada palavra: “Sabedoria em 23/07/2010 às 19:19 comentou: Justiça! O povo quer justiça e garanto a vocês que os Bombeiros Também! A luta desses homens nos Salvamentos e Resgates efetuados nestes dias, não pode ser manchada com esses eventos de alguns que não merecem estar com a camisa vermelha e a fênix em seu peito. GP.”(sic)

Outro comentário que me chamou a atenção: “bombeiro em 23/07/2010 às 18:26 comentou: Fico muito envergonhado por fazer parte do corpo de bombeiros nessas horas, mas isso que aconteceu é um mal necessário, pois todo mundo sabe da corrupção que existe dentro da instituição, vários coronéis e demais oficiais são verdadeiros larápios, de combustíveis, licitações, notificações e vistorias em prédios e empresas etc. e quando as denuncias são feitas por integrantes da corporação, os punidos são os denunciantes que são penalizados devido à hierarquia nojenta que favorece a corrupção e o abuso de poder... essa era uma ótima oportunidade para de fazer uma auditoria nos quartéis do interior onde se faz verdadeiras fortunas com o dinheiro dos trabalhadores. essa é a hora MP, PF e SEDES.”(sic)

Diante da minha desolação, meu filho, ainda um menino, comenta frustrado: “Mãe, como as vezes tenho vergonha de ser brasileiro...”

Desculpa, meu filho. Sem forças para contra-argumentar... Quisera eu nos poupar disso também...

“Que criatura agradável é o homem, quando ele é um homem”


Se alguém quiser ler a notícia:

http://www.tudonahora.com.br/noticia/maceio/2010/07/23/104825/tres-militares-sao-presos-por-desvio-de-donativos



quinta-feira, 22 de julho de 2010

As três notas musicais - Luís Pimentel



De O trio



A técnica do Nogueira

Conta o folclore da música brasileira que o grande e compositor João Nogueira cumpria temporada de shows pelo Nordeste do Brasil, quando atendeu pedido de entrevista de uma estagiária de jornal.

Pergunta da moça:

– João, como você consegue cultivar essa voz tão sua, tão marcante, tão impostada e ao mesmo tempo tão suave? Que técnica você usa?

Resposta do malandro:

– Muito conhaque, muita cerveja e cigarros Hollywood à vontade.

João Nogueira, um dos maiores cantores da MPB em todos os tempos, nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Méier, no dia 12 de novembro de 1941. Aos 27 anos gravou sua primeira composição: Espera, oh nega. Três anos depois, entrou para a ala dos compositores da Portela e teve músicas gravadas por Elizeth Cardoso e Clara Nunes.

Um dos maiores defensores do gênero, na década de 1970 fundou o Clube do Samba. Parceiro, entre outros, de Paulo César Pinheiro, entre suas composições mais conhecidas estão Nó na madeira, Espelho, Um ser de luz e Clube do samba. Morreu no ano 2000.

Quem foi Adiléia?

Com esse nome, talvez ninguém identifique: Adiléia da Silva Rocha mais tarde trocou o nome para Dolores Duran. Dolores nasceu em 1930 e começou a carreira artística ainda menina – e ainda Adiléia – no popularíssimo programa Calouros em desfile, pilotado pelo já famoso compositor Ary Barroso, na Rádio Tupi. Estreou com nota máxima, caiu na simpatia do pouco simpático Ary e voltou para casa com um prêmio de 500 mil réis e o sonho de virar cantora profissional. Tinha 12 anos.

Da rádio, Adiléia – já Dolores – pulou para o Teatro Carlos Gomes, onde participou do elenco das peças infantis Mãe d´água, Primavera, O gaúcho e Aladim e a lâmpada maravilhosa. Cantora de voz doce e cálida, Dolores Duran foi também excelente compositora, como provam os destaques de sua obra Se é por falta de adeus, A noite do meu bem, Castigo e Fim de caso. Morreu vítima de um infarto fulminante, no dia 23 de outubro de 1959.

O gato do João

São inúmeras e variadas as notas do folclore envolvendo o cantor, compositor e super-instrumentista João Gilberto. A mais repetida em mesas de bar é a do gato. Dizem que João, morando sozinho em Nova Iorque, trancou-se no estúdio para preparar novo disco. Sozinho, não. Havia o gato do João.

Contam ainda que João trancou porta e janelas do estúdio, e durante 17 dias e 17 noites, sem parar para ir sequer à padaria, tocou seu fabuloso violão, sem parar, sem parar, sem parar, em busca dos arranjos cada vez mais redondos, do acorde cada vez mais perfeito. E o gato ali, sentadinho na cadeira, ouvindo, ouvindo, ouvindo.

Pois contam também que, finalizado o trabalho, João Gilberto finalmente escancarou as janelas. Era um décimo terceiro andar, mas o bichano não quis saber: atirou-se pela janela, para a morte que a livraria de tantas melodias.

João Gilberto, gênio inconteste e admirado pelos grandes nomes da MPB, considerado por muitos o pai da bossa nova, nasceu em Juazeiro (BA), em 1931. Quando gravou seu primeiro disco, em 1958, seu estilo de cantar, intimista, contrastava com tudo o que se fazia na época em termos de música. Influenciou cantores como Gal Costa e Caetano Veloso, que na década de 1960 iniciavam suas carreiras. Alguns de seus grandes sucessos são Chega de saudade, Bim-Bom, Samba de uma nota só e Desafinado.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Moacyr, o Matador

De O matador

Ele tem por nome de batismo Moacyr de Tal, mas, a depender da pessoa e do momento, também atende por Chupa-Cabra, Jurubeba e seu Madruga, o pitoresco personagem do soup ópera Chaves, pai da Chiquinha e que, invariavelmente, apanha de dona Florinda.

Seu Madruga, digo, Moacyr não é cearense dos olhos amarelos, mas se orgulha de já ter matado seis pessoas, seis “desinfelizes” que tiveram a audácia de duvidar de sua macheza, na sua cidade natal, Paulo Jacinto, a oitenta quilômetros de Maceió. Se bem que, dos seis, três morreram de susto, dois de raiva e um, cujo relato farei adiante, teve uma originalidade burlesca e ele foi obrigado a fugir de sua cidade para não morrer nas mãos dos irmãos e parentes do desencarnado, que queriam beber o morto com o sangue do seu carrasco.

O seu pai foi morto em uma briga de faca nos primeiros anos de sua existência e a sua mãe, sem ter como arranjar trabalho, fora obrigada a enrolar fumo em Arapiraca, posteriormente se mudando para lá em uma camionete paga por um político local. Moacyr viveu brincando em uma plantação de fumo até os dez anos, quando a sua mãe arranjou um amante e o mandou de volta para acabar de ser criado por um irmão do seu pai. Instalado na casa do tio, em Paulo Jacinto, desconjurou a mãe, brigou com o tio e foi morar com um fazendeiro, o antigo patrão do seu pai. Cuidava das tarefas domésticas e, nas folgas, treinava para ser vaqueiro ou ia para o centro urbano brincar de mocinho e bandido com uns amigos. Como já havia matado cinco, e a sua fama de mal corria cidade afora, ele só fazia papel de bandido.

Ele, e mais todo o pessoal que descia da roça, eram os bandidos contumazes nas brincadeiras, pois o roceiro, em qualquer situação, é discriminado pelos moradores da urbe.

Um dia Moacyr resolveu montar o seu acampamento de bandido na mata circundante da periferia. Na primeira laçada que jogou, prendeu um “mocinho”, arrastou para o seu acampamento, amarrou o moço em uma árvore, colocou uma mordaça nele para que não alertasse os outros e saiu à procura de mais “mocinhos” para fazer prisioneiro e assim ganhar a parada. Andou cauteloso pela periferia, se escondendo nos postes ou atrás dos muros, até que avistou a turma animada em uma rodada etílica em um cacete armado. Moacyr chegou de surpresa, rendendo todos, mas foi informado de que a brincadeira acabara e que a nova modalidade era o jogo de porrinha e ele estava convidado a participar. Uma rodada valia cachaça, outra cerveja, e a outra, qualquer tira-gosto da visgueira: sardinha ou salsicha em lata.

Lá para as tantas, sem atinar coisa com coisa, Moacyr montou em sua jumenta e pegou o rumo da roça. Quinze dias depois picou esporas para a cidade e procurou a turma para uma nova brincadeira. Os amigos não quiseram brincar. Estavam preocupados, pois um deles havia desaparecido desde o dia da última brincadeira. E ninguém tinha a menor pista. Moacyr levou a mão à testa, preocupado. Entretido na cachaça e no jogo da porrinha, esquecera o colega amarrado em seu acampamento. Foram todos ao local e encontraram o corpo do amigo em adiantado estado de putrefação.

Antes da chegada da polícia, saiu de fininho, sorrateiro, sonso, pegou um ônibus para Maceió e nunca mais ninguém soube de Moacyr, o Matador.

domingo, 18 de julho de 2010

A musa da Copa e as cerejeiras de Curitiba - Luiz Andrioli

Crônica falada de Luiz Andrioli


Tributo a um comunista - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres






Não, ele não espetava padres nem comia criancinhas, conforme a lenda apregoada pelos párocos em seus sermões dominicais, que transformavam os da sua classe em bichos-papões, sangüinários arautos do medo e do terror, todos condenáveis hereges. Cruz credo!

As exéquias a Apolônio de Carvalho me fizeram lembrar do comunista que conheci longe dos fervores religiosos. E em nada ele se assemelhava a um monstro. A bem dizer, foi o meu anjo da guarda. Descobri isso no meio de uma conversa que tivemos num banco de uma praça, na cidade de Alagoinhas, Bahia. Ano: 1959. Eu estava lá pensando na vida, sem saber o que fazer dela. Havia terminado o curso ginasial e o serviço militar. E estava sobrevivendo com o salário-mínimo de vendedor-pracista de uma indústria de bebidas.

Cansado de rodar o dia inteiro em cima de uma bicicleta com uma pasta na garupa, recheada de mostruários, um talão de pedidos e um maço de promissórias vencidas, sentei-me naquele banco para fazer um balanço. Estava preocupado com as vendas que fizera para bodegueiros endividados, aos quais já me afeiçoara, a ponto de me render aos seus desesperados apelos: se ficassem sem mercadorias, aí é que não iam poder pagar as contas atrasadas. Essa, porém, não iria ser a lógica do patrão, que naturalmente me poria a correr em busca de outra ocupação, já que como vendedor não passava de uma nulidade.

Foi então que chegou o comunista, com um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado daqui do Rio para distribuição naquelas bandas. Chamava-se Mário, figura de utilidade reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Ele sentou-se ao meu lado. Acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou e puxou assunto.

Depois de dizer que havia lido uns artigos que eu vinha escrevendo para uma gazetinha da cidade, perguntou-me se tinha algum plano para o futuro. ''Escrever.'' Não se mostrou surpreso com a minha resposta. ''Quer ser jornalista?'' Não foi a sua pergunta o que me surpreendeu, mas a sua garantia de que, se era isso o que eu queria, ele poderia me abrir uma porta. Na capital!

No dia seguinte, às 9 horas da manhã, aquele borracheiro que vivia todo sujo de graxa, estava à minha espera na estação ferroviária, de acordo com o combinado. De banho tomado e vestido num impecável terno branco. E já com dois bilhetes para o trem mais caro e mais bonito, tanto que era chamado de Marta Rocha, em alusão à beldade baiana que por duas polegadas a mais ou a menos (já não me lembro) não conquistou o cetro de rainha da beleza universal.

Ao chegar a Salvador, logo nos vimos diante de uma recepcionista. ''Quem deseja falar com o doutor João Falcão?'' Não foi preciso anunciar o nome. Uma voz veio lá de dentro: ''É você, Mário?''. Em questão de minutos atravessamos uma rua. E chegamos ao prédio do Jornal da Bahia, na companhia do seu dono.

Lá fiquei. Mário se foi. Deixando-me um forte motivo para querer bem aos comunistas.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Salão das Crianças - Cineas Santos





Como já afirmei em outras oportunidades, o Salão do Livro do Piauí já nasceu grande. A primeira edição, realizada em julho de 2003, atraiu milhares de pessoas e a programação atendeu às expectativas do público presente. Ainda assim, faltava alguma coisa: o oxigênio da alegria que só as crianças possuem em doses elevadas. Como o Salipi se realizou em julho, mês de férias, os alunos da rede pública de ensino não se fizeram presentes. Por sugestão nossa, mudamos a data para a primeira semana de junho e, graças a uma parceria costurada com o SETUT, levamos a meninada para adonar-se do Salão.

Uma tarde, enquanto os ônibus despejavam mais uma enxurrada de crianças no Centro de Convenções de Teresina, uma cidadã bem-nascida fez o seguinte comentário: “Só podia mesmo ter saído da cabeça de jerico do Cineas a ideia de encher o Salipi de meninos sujos e barulhentos que malinam em tudo e não compram nada”. Como esse tipo de comentário anda velozmente, cinco minutos depois, lá estava eu tomando satisfação com a madame. Fui exato e preciso: Minha senhora, desculpe o mau jeito. Convidamos essas crianças da periferia por uma razão de ordem sentimental, digamos. É que fui um menino exatamente assim: pobre, feio, estudante de escola pública, que, por falta de uma biblioteca pública na cidadezinha onde nasceu só pôde ler o primeiro romance aos 17 anos de idade. Isso, como a senhora pode ver, não o impediu de estar à frente de um evento como este. Tenho certeza de que muitas dessas crianças, se tiverem acesso ao livro na hora certa, chegarão bem mais longe do que eu. E mais não disse porque a cidadã já se desmanchava em desculpas e salamaleques.

Por oportuno, vale lembrar que o principal objetivo do Salipi é formar novos leitores. Não por acaso, trabalhamos os dois polos mais visíveis da educação formal: os professores a quem oferecemos o seminário Língua Viva e os estudantes aos quais propiciamos uma programação rica e variada. Parece-nos que a estratégia vem surtindo os efeitos desejados.

Fazer o SALIPI é sempre um desafio que nos deixa esgotados, mas felizes. Ver crianças, aos milhares, ocupando cada espaço do Salão é algo que nos anima a continuar tentando. Vale lembrar aqui um comentário do escritor Moacir Scliar, que já esteve conosco: “Filho de família muito pobre, a única oportunidade em que minha mãe me permitia gastar o que não tínhamos era no dia da visita à Feira do Livro de Porto Alegre. Eu passava o ano inteiro contando os dias que faltavam para a visita à Feira”, afirmou. É possível que pelo menos uma dessas crianças que visitam o Salipi venha a tornar-se um(a) grande escritor(a). Se isso não acontecer, não tem a menor importância. Basta que se torne um bom leitor: a Nação agradece.