sábado, 12 de fevereiro de 2011

Antonio Torres - Anchieta e os índios


Conferência proferida em Paris, no Amphithéâtre Poincaré – “Carré des Sciences” –, da antiga Escola Politécnica, em 17 de novembro de 2000.


Nunca fui santo

(Anchieta e os índios: a propósito d’O auto de São Lourenço).


Comecemos com um esclarecimento: lemos o texto de José de Anchieta numa adaptação livre do escritor Walmir Ayala. Trata-se de uma publicação destinada ao circuito escolar, em edição datada de 1997. Na apresentação, o adaptador informa que O Auto de São Lourenço é composto de 1.493 versos, 867 deles em tupi, 595 em espanhol, um em guarani e 40 em português. De acordo com o parecer de Walmir Ayala, o texto em tupi é primário, em função da sua audiência: “o índio de inteligência curta e lenta”. A exígua parte em português também comunga da mesma elementariedade, pois era dirigida a brancos rudes, incultos, lançados à aventura da colonização: soldados, marujos, colonos e comerciantes. Já o texto em espanhol é cintilante, bem mais literário, por endereçar-se a uma pequena elite possivelmente presente no Brasil à época. E, naturalmente, por ser o espanhol a língua mãe de José de Anchieta.

Um exemplo da cintilação do texto em espanhol, considerado uma jóia de poesia mística, é a abertura do Primeiro Ato, na cena do martírio de São Lourenço, na tradução do já citado Ayala:

Cantam:

Por Jesus, meu Salvador,
Que morre por meus pecados,
Nestas brasas morro assado
Com fogo do seu amor.

Bom Jesus quando te vejo
Na cruz, por mim flagelado,
Eu por ti vivo queimado
Mil vezes morrer desejo.

Pois teu sangue redentor
Lavou minha culpa humana,
Arda eu pois nesta chama
Com fogo do teu amor...
(etc.)

E assim, com técnica tomada emprestada a Gil Vicente e dicção barroca, O Auto de São Lourenço foi representado pela primeira vez no terreiro da capela de São Lourenço, sobre o morro de São Lourenço, na aldeia de São Lourenço, hoje a cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. E no dia de São Lourenço, 10 de agosto. Presumivelmente no ano de 1583.

Obra de cunho sabidamente didático, a serviço da catequese e da moralização dos costumes, O Auto de São Lourenço é um singelo poema dramático, rico de imagens. Mas é, sobretudo, uma peça de propaganda, de difusão dos dogmas da Igreja Católica, numa terra sem fé, sem rei e sem lei, e onde, na visão dos jesuítas, o diabo pintava e bordava. O demo era o índio, que levava os portugueses a caírem nas tentações de uma natureza luxuriante, do cio da terra, de uma vida selvagem sempre em festa: sol, sexo, cauim, mar e selva. Eta vida boa! Imaginemos o efeito desse excitante cenário para aqueles solitários navegantes que penaram meses e meses na travessia do Atlântico em busca de uma sombra sob as árvores das patacas, o pau-brasil. Com tanta filha de Eva a desfilar do jeito que veio ao mundo, os náufragos, aventureiros e degredados que aportaram às costas do Brasil não hesitaram em despachar o pecado de volta para o além-mar. E caíram na farra. Afinal, os franceses já não haviam descoberto que não existia pecado no lado de lá do Equador? Ah, os franceses! Eles levavam José de Anchieta ao desespero. À loucura.

Leiamos a carta que o santo homem escreveu à Corte, em Lisboa:

A vida dos franceses que estão neste Rio é já não somente apartada da Igreja Católica, mas também feita selvagem; vivem conforme aos índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles; pintam-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos mesmos índios, e tomando novos nomes como eles, de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptíssima.

Mas não foi só por isso que Anchieta, em O Auto de São Lourenço, demonizou a (boa) relação dos nativos com os franceses. O que estava em jogo era o interesse lusitano de ocupar e colonizar o país. Para os portugueses, a presença francesa nestas paragens tornava-se um estorvo.

A didática moral de José de Anchieta tinha, portanto, um desdobramento político. O seu desempenho nessas selvas e águas de sonho e fúria foi de agente duplo, a serviço da Igreja e da Coroa. E com muita competência, diga-se. Ele foi um missionário obstinado, incansável, que fez o melhor uso possível da comunicação para atingir os seus fins. Hoje, diríamos ter-se havido nessas terras ignotas como um comunicador imbatível. Usou o sermão, a poesia e o teatro como instrumentos de conquista de corações e mentes. Recorreu ao corpo-a-corpo em suas louváveis ações assistencialistas, facilitadas pelo seu conhecimento do tupi-guarani, chegando a escrever uma pequena gramática dessa língua, na qual poetou de forma participante, panfletária, maniqueísta. E com muita criatividade, como prova O Auto de São Lourenço.

E o que é esse seu auto?

A eterna peleja do Bem contra o Mal, santos x pecadores, anjos x demônios, canibais x cristãos, enfim, Deus e o Diabo na Terra do Sol.

O Bem – A fé cristã e/ou a moral e dogmas da Igreja Católica.

O Mal – Os costumes do Novo Mundo, incluindo-se nisso os rituais antropofágicos do velho povo que aqui já estava havia 15 ou 20 mil anos quando os europeus chegaram com sua santa fé, e dispostos a convertê-lo a ela, subjugá-lo e até mesmo eliminá-lo, em caso de disposição em contrário, pois assim estava escrito na bula Inter Coetera, assinada pelo Papa Alexandre VI, em 4 de maio de 1493, na qual outorgava aos descobridores de novas terras em todo o planeta “a salvação das almas, abatendo-se as nações bárbaras e reduzindo-as à fé católica”. Obedecida ao pé da letra pelos conquistadores espanhóis e portugueses, a bula de Alexandre VI significou, para os silvícolas das Américas, um passaporte para o inferno. O terror instalado nos territórios recém-conquistados levou o Papa Paulo III a emitir uma contraordem, em 28 de maio de 1537, quando, na sua bula Universibus Cristi fidelibus, reconheceu os índios como “homens iguais aos outros, com o direito à sua liberdade e a possuir e gozar os seus bens ainda que não estivessem convertidos”. Mas Paulo III estava longe demais dos campos de batalha. Sua mensagem não surtiu o menor efeito.

A prova disso foi a tese apresentada pelo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, na reunião do Concílio de Trento realizada em Valadolid, na Espanha, em 1550, defendendo a servidão natural dos selvagens e a justiça do extermínio deles. Se por um lado a crueza da tese era chocante, a ponto de dividir o mundo católico, por outro não era novidade, pois já vinha sendo aplicada em larga escala. Era a “guerra justa” contra os hereges, ou seja, os índios rebeldes à catequização. A mesma que Anchieta iria defender no Brasil. Sempre que encontrava resistência à sua missão evangelizadora, proclamava que a melhor catequese era a espada e a vara de ferro.

Soldado exemplar da Companhia de Jesus, o Exército de Deus que surgiu na linha de frente da Contra-Reforma para dar combate ao protestantismo “judaizante”, José de Anchieta fez da palavra a sua arma. Em O Auto de São Lourenço ele pôs no inferno os seus personagens indígenas, que em realidade foram guerreiros tupinambás do Rio de Janeiro, e que preferiram morrer de pé, lutando, até o último homem, a se deixar catequizar ou escravizar. A esse respeito, o auto de Anchieta não deixa de ser uma sublimação da ação pelo pensamento, ou, como nos sonhos, a realização inconsciente de um desejo: quem sabe ele teria desejado passar dos bastidores para o palco das batalhas, junto com os soldados que, efetivamente, mandaram para o inferno os rebeldes tupinambás aglutinados na Confederação dos Tamoios, da qual não sobrou um único índio para contar a história, 16 anos antes desse auto ser representado? Nesse dia, o dia do juízo final das tribos confederadas, Anchieta estava lá – por trás das barricadas.

Considerando-se os antecedentes dos personagens, pode-se até deduzir que O Auto de São Lourenço é também a representação simbólica de uma dupla vingança de José de Anchieta. Aqui ele colocou no mesmo saco, quer dizer, no mesmo inferno, os imperadores romanos algozes de São Lourenço e os líderes indígenas que não rezaram pelo catecismo dos jesuítas, numa associação metafórica entre os martírios dos cristãos nas grelhas e os rituais canibalísticos. Uns e outros mereceriam a condenação eterna, pelos seus pecados sem remissão. E que o terror imposto por Deus aos condenados viesse a servir de exemplo para uma platéia de índios escravizados e colonos broncos.

A ficha técnica do auto:

Personagens: Guaxará, rei dos diabos. Aimberê e Saravaia, criados de Guaxará. Taturama, Urubu e Jaguaruçu, companheiros dos diabos. Valeriano e Décio, imperadores romanos. São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. São Lourenço, padroeiro da aldeia de São Lourenço. E mais: uma velha, um anjo, o Temor de Deus, o Amor de Deus, cativos e acompanhantes.

Sinopse do auto:

Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaxará chama Aimberê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, são Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimberê se aproxima, o calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em são Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.

Quem foi cada personagem principal desta história:

São Lourenço, o mártir. Diácono da igreja de Roma pelos anos 250, quando o imperador romano passou a ver no crescimento do cristianismo uma ameaça ao seu trono, mandando fechar e confiscar todos os lugares de culto. Ao ser preso e conduzido ao martírio, o papa Sisto II encarregou Lourenço de distribuir tudo o que tinha aos pobres. Mas o imperador exigiu que ele lhe entregasse todos os tesouros da igreja, dos quais tinha ouvido falar. Lourenço, então, reuniu e apresentou-lhe toda a ralé romana, dizendo: “Eis aqui os nossos tesouros, que nunca diminuem e podem ser encontrados em toda parte”. Por causa disso, foi posto na grelha, no dia 10 de agosto de 258. Enquanto era queimado num braseiro, ainda teve ânimo de fazer uma piada para o carrasco: “Vira-me, que já estou bem assado deste lado”.

Roma dedicou-lhe 34 igrejas, uma honra maior do que as merecidas pelos seus padroeiros, São Pedro e São Paulo. São Lourenço era o padroeiro da aldeia onde o auto foi representado pela primeira vez.

São Sebastião (245 – 288). Natural da cidade de Narvonne, França, educou-se em Milão, terra natal da sua mãe, uma cristã fervorosa. Ao atingir a idade adulta, tornou-se militar, chegando a ser nomeado comandante da guarda pessoal do imperador Deocleciano. Quando descobriram que Sebastião era cristão, condenaram-no a morrer por flechadas. Os arqueiros deram-no por morto, mas seus ferimentos foram curados pela viúva de outro mártir, São Castulo. Ao saber disso, Diocleciano enfureceu-se e ordenou que Sebastião fosse surrado a pauladas até morrer. O seu dia é 20 de janeiro e o seu emblema, uma flecha, motivos que o levaram a tornar-se o padroeiro do Rio de Janeiro. Foi no dia 20 de janeiro de 1567 que os portugueses liquidaram a Confederação dos Tamoios, matando todos os confederados e apossando-se definitivamente da cidade.

Valeriano – Publius Vicinius Valerianus foi o imperador que mandou prender e martirizar São Lourenço.

Décio – Caio Méssius Quintus Valerianus Trajanus, imperador romano de 249 a 251. Foi quem desencadeou a primeira perseguição sistemática aos cristãos, em 250.

Guaxará – Como poderoso chefe indígena de Cabo Frio, participou das lutas da Confederação dos Tamoios. Em 1566, comandando 180 canoas de guerra, deu combate aos portugueses na baía de Guanabara, numa longa batalha naval. Foi assassinado pelos soldados lusitanos, a 13 de julho daquele ano.

Saravaia – Outro grande chefe, também integrante da Confederação dos Tamoios.

Aimberê – Cacique da aldeia de Uruçumirim, cujo território ia da Glória ao Flamengo, no Rio de Janeiro, foi o fundador da Confederação dos Tamoios, entre os anos de 1554 e 1557, unindo todas as tribos inimigas, de São Vicente, no litoral de São Paulo, a Cabo Frio, no litoral fluminense, na maior organização de resistência nativa que o país teve. Sua legenda de grande guerreiro só é superada pela de Cunhambebe, o maior líder indígena dos quinhentos, que foi cortejado por Villegagnon como chefe de Estado e rei do Brasil.

Na primeira grande assembléia dos indígenas confederados, realizada em Ubatuba, no litoral paulista – e que ainda se chamava Yperoig –, Aimberê propôs o nome de Cunhambebe para ser o chefe supremo da Confederação dos Tamoios e foi ovacionado estrondosamente. O grande morubixaba, que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses, emocionou-se com a aprovação unânime de seu nome. E assumiu o comando dando o seu grito de guerra: “PERÓS!” O que significava: ferozes! E foi aí que a terra tremeu, nas fazendas e engenhos de açúcar dos escravizadores de índios, entre os quais se destacavam Brás Cubas, em Santos e São Vicente, e João Ramalho, por todo o planalto de Piratininga, até onde é hoje a cidade de São Paulo.

Com a morte de Cunhambebe, em 1557, vitimado por uma estranha epidemia levada pelos europeus, Aimberê passou a comandar a Confederação dos Tamoios. E morreu lutando, na batalha final do Rio de Janeiro, em 1567. Essa batalha, aliás, foi insuflada por José de Anchieta, que foi de São Vicente à Bahia, para convencer Mem de Sá, então o governador-geral do Brasil, a liquidar de vez com “a brava e carniceira nação, cujas queixadas ainda estão cheias do sangue dos portugueses”. E foi uma carnificina. Os soldados de Mem de Sá e de seu sobrinho Estácio enlouqueceram com a vitória e avançaram sobre a praça da guerra, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas. Essa praça era uma enorme área, onde estão hoje dois famosos bairros do Rio de Janeiro, o Flamengo e a Glória, a glória das cabeças cortadas. Morreram todos, inclusive uns 30 franceses que haviam aderido ao sistema de vida tribal, entre eles o genro de Aimberê, marido de sua filha Potira, de nome Ernesto, que o sogro chamava de papagaio louro.

José de Anchieta tinha um verdadeiro pavor de Aimberê, que descreveu como “homem alto, seco, de catadura triste e carregada, e mui cruel”.

Encerramos este episódio com um esclarecimento: tamoio nunca foi nome de tribo. Tamoio quer dizer o mais velho da terra (“tamuya”), o mais antigo do lugar. Logo, a Confederação dos Tamoios significava a Confederação dos Nativos.

O Apóstolo do Novo Mundo:

Tido e havido como Apóstolo do Novo Mundo, Santo do Brasil e fundador da literatura brasileira, José de Anchieta nasceu em São Cristóvão de la Laguna, capital de Tenerife, nas ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Em 1551, entrou para o Colégio dos Jesuítas em Coimbra. Por motivos de saúde, mudou-se para o Brasil em 1553. Em 25 de janeiro de 1554, ajudou o padre Manuel da Nóbrega na fundação do Colégio de São Paulo, em São Vicente.

A bem dizer, Anchieta foi o maior embaixador que Portugal teve no Brasil, por todo o século XVI. Seus dotes diplomáticos eram insuperáveis. Tinha uma coragem pessoal e uma autoconfiança surpreendentes, ainda mais levando-se em conta o seu porte físico nada privilegiado. Era capaz de adentrar territórios indígenas sublevados e convencer os chefes mais exaltados de que não era um português igual aos outros, e que não aprovava as atrocidades cometidas pelos seus patrícios. Em 1563 foi incumbido por Mem de Sá de tentar a pacificação dos tamoios, que vinham impondo sucessivas derrotas aos fazendeiros e donos de engenhos numa vasta região conflagrada. Arrastando um Manuel da Nóbrega doente e com os pés em chagas, Anchieta empreendeu uma expedição arriscada a Ubatuba onde, depois de longas conversações, acabou ficando naquela aldeia como refém, enquanto Aimberê, o chefe supremo, negociava com os administradores portugueses de São Vicente e de Piratininga as suas condições para um acordo de paz, sendo a principal delas a libertação de todos os índios em cativeiro. Anchieta, durante a lenta e dramática espera pelo desenrolar das negociações, escreveu nas areias da praia de Ubatuba o seu célebre poema à Virgem (De Beata virgini Dei matre Maria). Quando, finalmente, a paz foi conseguida e ele mandado de volta para casa, garantiu que, se dependesse dos portugueses, o acordo não seria quebrado. Mas foi, um ano depois. Por eles mesmos, os que pediram a paz.

Em 1567, tomou parte ativa na conquista definitiva do Rio de Janeiro, por Mem de Sá, tendo exercido vários cargos administrativo em São Vicente, até 1577. Foi elevado a provincial, na Bahia, em 1578. Da Bahia foi a Pernambuco, voltou a São Vicente e passou a residir no Rio de Janeiro. Indo e vindo de um lado a outro, em 1585 ficou bem doente e deixou o cargo de provincial. Voltou ao Rio em 1586.

O Apóstolo do Novo Mundo viveu 44 anos no Brasil. Morreu no dia 9 de junho de 1597, aos 63 anos, no estado do Espírito Santo, e num lugar chamado Reritiba, que hoje é a cidade de Anchieta. E entrou para a nossa História como o José do Brasil, aquele que o país inteiro espera ver canonizado, para levantar a nossa auto-estima cristã, já que nunca tivemos um santo.

Vai ver, Anchieta jamais o será. Pela simples razão de também haver cometido os seus pecados, como todos nós.
Amém.





sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Por quê?

Dileto amigo me manda um “belo poema do Drummond”, com alguns comentários adicionais. Até aí, nada de extraordinário: em Teresina, até as pedras sabem que não respiro bem sem a minha cotidiana ração de poesia. Regularmente, leio, edito e divulgo poesia em todos os veículos de que disponho. Uma das maiores tristezas que experimentei na vida foi deixar de editar, mensalmente, o Calendário Poético que, por mais de dez anos, distribuí aos “viciados” em poesia. Com o acesso à internet, passei a enviar, semanalmente, poemas para um seleto punhado de amigo. Para mim, consumir poesia é um hábito salutar. Mas voltemos ao amigo: o “belo poema” que ele me mandou era tão verdadeiro quanto uma nota de três reais. Não me contive: Amigo, agradeço-lhe o carinho da lembrança, mas o Drummond que você me mandou é paraguaio e com prazo de validade vencido.

Um tanto contrafeito, o amigo me fez a seguinte pergunta: “Meu caro mestre, o que levaria alguém a servir-se do nome de um autor conhecido para divulgar o que escreve?”. Como não sou psicólogo nem vidente, não tenho a resposta. As razões poderiam ser as mais diversas. A primeira delas: a consciência da própria desimportância e, consequentemente, a certeza de que ninguém leria as baboseiras que escreve. A segunda: arrogância travestida de humildade. Explico: o impostor acredita que o seu texto é muito bom, primoroso, essencial, mas como o leitor é “burro” e só se interessa por “medalhões”, recorre a um bonde famoso para veicular sua “preciosidade”. Prefiro ficar com algo mais simples, direto: pura e simples falta de vergonha na cara.

Ora, já disse que a internet é a casa da mãe Joana; vou um pouco além: é a cloaca da civilização. Nela, cabe tudo e mais alguma coisa. Hoje, qualquer idiota pode difundir o que bem entender, protegido pelo manto do anonimato. As vítimas desses cretinos são sempre autores famosos: Borges, Drummond, Quintana, Millôr, Veríssimo. Agora, por exemplo, circula na internet, com enorme sucesso, uma crônica atribuída a Luís Fernando Veríssimo sobre o BBB. Entre outras baboseira, o “Veríssimo” afirma: “Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve o seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB 11 é a pura e suprema banalização do sexo”. Imaginem o L. F. Veríssimo, sempre elegante e inteligente, convertendo-se num pregador moralista. O texto é rebarbativo, medíocre e preconceituoso. É realmente digno do BBB. Em nota elegante e discreta, o verdadeiro Veríssimo explica: “Não poderia escrever nada sobre o ‘Big Brother Brasil’, a favor ou contra, porque sou um dos três ou quatro brasileiros que nunca o acompanharam. O pouco que vi do programa, de passagem, zapeando entre canais, só me deixou perplexo: o que afinal atraía tanto as pessoas – além do voyeurismo natural da espécie – numa jaula de gente em exibição?”.

Irmãos e irmãzinhas, sem querer ser pretensioso, deixo aqui uma advertência: quem só lê na internet acabará, mais cedo ou mais tarde, caindo na tentação de escrever bobagens para atribuí-la a um notável. Não digam que não avisei.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Luís Pimentel - Rosa-Macabéa-Clarice

Rosa de casa para o trabalho. Do trabalho para casa. Para o fogão, comida feita às pressas, o banho de pingos regrados, a camisola que só possui o seu cheiro, jamais se misturou com o cheiro de um homem. Rosa para o vaso sanitário e o papel higiênico áspero. Do banheiro para o quarto. Do vaso para o colchão irregular. E ao fundo da noite. Ao calor que o ventilador de hélice quebrada não dá conta.

Rosa veio do sertão. De qual? De tantos. De casa, no quarto alugado na Tijuca, para o trabalho na Rua do Carmo, no Centro. Rosa-Macabéa no ônibus. No metrô. Queimando o corpo no calor do corpo que se esfrega no seu; é assim, vagão lotado. Calor de labaredas que vão com ela, presas às costelas. Alívio só no chuveiro pingapingando na testa.

“Você me lembra uma personagem de Clarice. Da hora da estrela”. Cantada mais besta.
Depois é se estirar na cama, esfregando a camisola entre as pernas, até não suportar mais o cheiro. Do trabalho para casa. Da noite para o dia. Rosa não conheceu Macabéa, nem Clarice. Já perdeu a hora, não viu a estrela.

De manhã bem cedo, o café preto quentinho. Diz para si mesma que um dia ainda vai prová-lo na mistura com veneno de rato.



domingo, 6 de fevereiro de 2011

Antonio Torres - Convidada a continuar

Continuando a republicação do livro de crônicas Sobre Pessoas, de Antonio Torres.



Um dia uma beldade paulistana baixou no Rio com um único propósito: conhecer pessoalmente o célebre senhor Carlos Drummond de Andrade. A moça bonita não era nenhuma estudante universitária em busca de ajuda para uma tese. Já vinha sendo festejada como uma esplêndida ficcionista, dona de um estilo de toque sutil e fascinante. O poeta naturalmente conhecia-lhe os dotes artísticos, pois a recebeu em sua casa, cortesmente. Mas perturbou-se diante daquela beleza que só devia nascer a cada cem anos. Saudou-a com uma frase lapidar: "Com estas lindas pernas, você não precisa escrever."

Lygia Fagundes Telles nunca mais iria se esquecer disso. Anos e anos depois daquele encontro com Drummond, e já tendo atingido o grau máximo na literatura nacional, ela iria refletir sobre as condições do escritor brasileiro, chegando a uma conclusão desoladora: "Todos os dias somos convidados a nos retirar."

Agora Lygia adentra a sala Vip da Bienal do Livro iluminando-a com o brilho de seus olhos, de seu sorriso, de seu belo rosto. O francês Jean-Christophe Rufin, o angolano José Eduardo Agualusa e este velho índio das letras abrem a roda, para lhe dar passagem, sob aplausos. Logo atrás dela chegam a Lúcia e o Luís Fernando Veríssimo. A doce Lúcia a abraça, ternamente, fortemente, dizendo: "Você é a mais bonita, a mais... a mais... a mais tudo!"

Então voltei a olhar para a Lygia. E o que vi foi o rosto de uma mulher feliz. Não só por ter ganhado o Prêmio Camões, o de maior peso da língua portuguesa, em nome, e o mais expressivo em números (100 mil euros), mas pela repercussão que lhe foi extremamente favorável. Um convite definitivo para continuar. Já havia recebido outros, é verdade. As incontáveis reedições dos seus livros; traduções around the world; o seu ingresso na Academia Brasileira de Letras; premiações variadas, inclusive da Biblioteca Nacional; o carinho dos seus leitores em toda parte. Sim, querida, não se retire. Ainda existe justiça neste mundo, por mais que tudo leve a crer no contrário. Agora só falta a Academia Sueca me dar total razão. E com os tardios pedidos de desculpas por nunca ter se lembrado de Jorge Amado, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa e tantos outros brasileiros nobilizáveis que já se foram. Salve, rainha!



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Aula de Mestre

Com um pouquinho de atraso (antes tarde do que nunca) a Globo resolveu brindar os sem-humor inteligente com uma aula de bom humor ministrada por um experto : Chico Anísio. Como se sabe, além de bastante adoentado, o humorista vem sendo conservado em geladeira de luxo pela Vênus Platinada. A Globo já não precisa dele, mas não o libera por medo de vê-lo brilhar numa das concorrentes. O tipo de humor que o Chico faz já não se enquadra na nova “filosofia” da emissora, que fez sua opção preferencial por Zorra Total e assemelhados. Segundo um cronista irreverente, “A burrice vende fácil”. Falta-me autoridade para contestá-lo.

O certo é que, no domingo passado (dia 2), a molecada ,com menos de 20 anos, pôde conhecer parte da galeria de personagens criados e interpretados pelo maior humorista brasileiro de todos os tempos. A exemplo dos heterônimos de Fernando Pessoa, cada personagem do Chico (são mais de cem) tem história, conduta, personalidade reconhecíveis. Alguns, de tão patéticos e tão humanos, poderiam estar agora entre nós, ou melhor, poderiam ser um de nós. Como a Globo já está engatilhando o Big Brother Brasil 11, pôs os personagens do Chico numa espécie de reality show ao lado das ex-bbbs Priscila, Angélica, Cacau e caterva, tendo como apresentador Milton Gonçalves. Em pouco mais de trinta minutos, desfilaram pela telinha: Pantaleão, Popó, Salomé, Professor Raimundo, Painho, Bozó, Haroldo, Tavares, Azambuja, Silva, Quem-Quem, Nazareno, Tavares, Coalhada, Gastão, Justo Veríssimo, Santelmo e o histriônico e canastrão Alberto Roberto. O que se viu, a despeito do roteiro pobre, foi uma aula magistral de interpretação. De quebra, Chico Anísio, com voz cansada, ainda nos brindou com daqueles causos que só ele é capaz de contar com picardia e graça.

País curioso o Brasil: com tanta gente talentosa que sabe cantar, dançar, interpretar, os produtores de TV preferem apostar todas as fichas no que há de mais pobre, mais abjeto, mais vulgar em matéria de entretenimento. A tônica parece ser: “quanto pior, melhor”. Particularmente, acho que se trata de um processo galopante de emburrecimento do público jovem, notadamente daquela faixa – a maioria - que não tem acesso a outros meio de comunicação que não o rádio e a TV. Paradoxalmente, a imprensa graúda vive reclamando da “péssima qualidade” da educação brasileira como se os meios de comunicação de massa não tivessem nada a ver com o problema. Como os políticos se borram de medo de exigir o cumprimento do artigo 221 da Constituição Federal, o rádio e a TV correm de rédeas soltas sem prestar contas a ninguém. Só num cenário como este a ausência de um humorista da estatura de Chico Anísio nos programas de humor pode ser entendida. Como diria Gonzaguinha, “E a plateia ainda aplaude/ ainda pede bis”. A burrice, acreditem, é contagiosa.

Nota do blog: esta crônica era pra ser publicada no mês passado, mas, por motivo de viagem deste blogueiro, não foi possível levar ao ar, o que faço agora, pois o tema não perdeu a validade.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Edna Lopes - Viagem e viagens...

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... Esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
A Canção do Dia de Sempre - Mário Quintana


Há um tempo para tudo –verdade incontestável- e o tempo das férias de 2011 acabou. No mês de fevereiro recomeça mais um ano de trabalho, de desafios, de sonhos que esperam para serem realizados e, de minha parte, a disposição de sempre.

Todos os anos era hábito tirar uns dias para viajar e o restante ficar por aqui, recebendo parentes e amigos, aproveitando o que a cidade de Maceió e seu entorno nos oferecia. Visitar parentes e amigos, descansar, por a leitura em dia, sair sem compromisso, ver filmes, dormir até mais tarde sempre foi meu padrão de férias perfeitas. Este ano, família de comum acordo, resolvemos “ciganear” um pouco.

Somos o que somos e nenhum cenário muda isso ou ainda como me lembrou nosso cronista José Cláudio Cacá citando Vandré “A vida não muda só com a gente mudando de lugar”. Gente é o que me interessa mais e não as paisagens e monumentos por mais belos que sejam, então, mesmo de férias, meu olhar de educadora registrou como pode o que viu e ressignificou cada momento vivido e cada cenário visto.

Devo dizer que, embora tenha viajado cerca de 4.500 km, me encantado com paisagens paradisíacas, exóticas, inusitadas, lamentado por algumas cenas e cenários, revisto com prazer lugares e pessoas queridas, a viagem maior sempre foi a interior.

E, por óbvio, nem tudo funcionou como num roteiro de filme. Há que se registrar também as intempéries de qualquer travessia: pequenos aborrecimentos, contratempos, crise alérgica, insônia, pés inchados, dores lombares, calundus, TPM, saudades...

Não dirijo e agradeço a disposição do meu companheiro para cumprir o roteiro programado quase que na sua totalidade. Ao final, o cansaço e a vontade de voltar para casa falaram mais alto e deixamos um trecho para fazer qualquer dia desses.Garanto que me esforcei para ser uma “co-piloto” razoável: câmera na mão para não perder nenhum detalhe especial da paisagem, cantarolando as musicas que tocavam no mp3 do carro para espantar o sono, oferecendo água, lanche...

O mais importante e o registro principal é o da alegria: a Bahia é sempre um encanto e como foi bom rever e conhecer pessoas tão especiais e queridas, como foi bom rever e conhecer lugares eivados de história, encher os olhos com a beleza de cada paisagem, como foi bom constatar com nossos próprios olhos o quanto este país mudou para melhor, ao longo desses anos.

E, certamente, muito mais do que para os adultos, para os adolescentes (Vinícius, meu filho, e Marx, um amigo seu que nos acompanhou), essa será uma inesquecível viagem de férias. Quantos lugares, pessoas, curiosidades, namoricos, imagens não guardarão, para sempre, em suas lembranças de juventude?

Muito do que vi certamente será mencionado nas reflexões que fiz e farei, ao longo do ano que, de fato, agora se inicia, como por exemplo, minhas impressões sobre as cidades visitadas, as histórias que ouvi, os personagens que conheci...

Mas isso já será outra crônica...


domingo, 30 de janeiro de 2011

Leila Barros - Metro-o-quê?

Com essa história, que anda solta pela mídia, de Novo Homem que precisa soltar sua porção mulher para ser mais feliz eu me lembrei do Rodolfo Augusto (que inspiração a mãe dele teve para lhe dar esse nome, hein?!). E lembrei também, por tabela, da Jô, sua esposa.

A Jô se queixava de que o Rodolfo era muito machista, muito individualista e workaholic, só ficava lendo a Gazeta Mercantil. Eles só faziam amor nos finais de semana. Aliás, sexo apenas. E ela sentia nesses momentos como se ele estivesse guardando documentos em sua pasta executiva. Nada mais, um tédio! dizia ela.

Depois o teor da queixa mudou um pouco.

- O Rodolfo anda meio estranho, ultimamente – se queixava - Anda em salão de cabeleireiro, vive falando em limpeza de pele, em combinar os tons do sofá com as cortinas, falou até em fazer compras comigo no shopping... eu hein! Está lendo umas coisas esquisitas de um tal Mark Simpson, vive cantarolando a música do Pepeu Gomes: “Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino...”

- Outro dia eu o peguei dançando uma música do Abba na sala, enquanto nosso gato olhava para ele com uma cara muito esquisita! E, pior ainda, estava usando os meus cremes hidratantes e o meu quimono de seda! Fiquei uma fera! Imagine! Usar meus cremes importados naquela cara barbada, de homem! Deixar meu quimono com cheiro de homem!

Para meu "espasmo", ela continuou:

- Sabe, amiga, eu não gostava da fase anterior do Rodolfo, mas essa fase atual está me preocupando. Eu queria um homem mais sensível e atencioso realmente, mas essa versão Pepeu-cósmico-Gilberto-Gil, está me deixando maluca! Afinal eu casei com um homem, de peito cabeludo e tudo o mais!

E o Rodolfo Augusto prosseguia em seu aparente e iminente comportamento modificado. As colegas do banco multinacional em que ele trabalhava estavam prestando mais atenção nele e convidando-o para almoços e happy hours com mais frequência. Ele estava adorando.

E a coisa não parou por aí. Ele mudou seu guarda-roupa quase todo, trocando os ternos "politicamente corretos e em tons moderados" para ternos bem cortados, arrojados e até camisa cor-de-rosa passou a usar.

Sua mulher decidiu chamá-lo para uma conversa mais profunda.

- Então Rodolfo, o que é está acontecendo com você? Você anda tão diferente, modificado... Está estressado?

E ele calmamente respondeu:

- Jô, eu agora sou metrossexual! Mudei porque achei que precisava liberar meu lado feminino, para ser mais feliz. Você não se queixava que eu vivia mergulhado no meu mundo masculino?

E ela retrucou:

- "Metro" o quê, Rodolfo?

- Metrossexual, Jô! O homem da nova era, engajado com o estilo de vida moderno, um homem que se cuida e que não tem vergonha de explorar seu lado Ying! Um novo ser pleno e cósmico!

De olhos arregalados e boquiaberta, Jô deduziu que o marido estava ficando maluco ou virando gay.

Ele estava cada dia mais radiante, fazia novos amigos, saía para dançar, enquanto ela vivia cismada, inconformada e sempre muito estressada com o novo padrão de vida dele.

- Eu casei com um homem e agora vivo com um metrossexual, que até os pelos do peito resolveu depilar! - lamentava.

Um dia ela precisou chamar um pedreiro para trocar o chuveiro queimado, porque o Rodolfo Augusto não queria mais se submeter a esse tipo de trabalho rude. Fazia calor e o pedreiro estava com a camisa aberta, mostrando o peito cabeludo. Ela ficou maluca, ofereceu limonada, bolo e até um almoço no dia seguinte.

Entre um conserto e outro, ela virou para o tal pedreiro e perguntou se ele sabia o que era "metrossexual". Ele, com os olhos esbugalhados, respondeu:

- Olha Dona Jô, na minha casa meu pai disse que se tivesse filho com esse "pobrema" ele botava fora de casa!

Hoje ela vive com o tal pedreiro em uma casinha lá perto da estrada da Pedreira. O Rodolfo Augusto atualmente ministra palestras sobre esse tão famigerado tema do Homem Novo,  tendo como fundo a música do Pepeu: “Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino... “



sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Luís Pimentel - Mercadorias

Depois de trinta e dois dias de pé na estrada, desbravando a Bahia, eis-me aqui de volta a trazer a boa leitura para os leitores acauãzeiros. Apesar de preferir prosa, pois há uma infestação de poetas cibernéticos, recomeço com esse lindo poema de Luís Pimentel, que começou 2011 com o pé direito: foi o vencedor na categoria Conto do concurso do MEC "Literatura Para Todos". O livro premiado é inédito e se chama "Ainda é cedo, amor". Será impresso pelo MEC e distribuído nas bibliotecas e escolas públicas de todo o país, com o lançamento previsto para abril deste ano, juntamente com os dois dos concursos anteriores.


MERCADORIAS
Luís Pimentel

O menino carrega o cesto,
bem mais pesado que ele.
A mãe do menino,
mais pesada que o cesto,
senta-se na calçada e dá ordens.

O menino tem pernas finas,
sorriso triste e olhos fundos.
A mãe tem esporas nos dedos,
tem lacraias entre as unhas,
grita que o menino é molenga
e não sabe vender o produto
– para encher novamente o cesto.

O menino encosta o cesto no muro
e descansa as costas murchas.
A mãe pergunta o que está acontecendo,
entre urros e ranger de dentes.
Entre dor e soluços
o menino chora que está cansado.
E quando olha para a mulher, de relance,
traz consigo aqueles olhos do Menino Jesus
que a gente conhece dos calendários.

Penso em parar e ajudar o menino
a esvaziar o cesto, a vender suas pedras,
mas não posso;
eu também tenho que bater pernas,
oferecendo por aí as minhas palavras.




segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Cineas Santos - Insólita beleza



Mário Quintana, o inventor da simplicidade, tinha uma predileção especial pelos temas apoéticos. Grilos, rãs e até formigas transitam por seus poemas com a mais absoluta desenvoltura. Como um alquimista, o poeta era capaz de transformar qualquer coisa em poesia, ou melhor, era capaz de revelar aos olhos desatentos a poesia subjacente em todas as coisas. Um belo exemplo: “Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco./Mas ele, naquela noite, não escreveu nada./Para quê? Se por ali já haviam passado o frêmito e o mistério da vida...”

Imaginemos a cena: Quintana, solteirão, boêmio e notívago, no seu humilde quarto de hotel, prepara-se para escrever um poema. Sabe que a poesia, caprichosa como a mulher desejada, só se dá quando quer. Acende um cigarro e, pacientemente, espera... De repente, percebe a presença de uma formiguinha tresmalhada, errática, atravessando a folha de papel ainda imaculada. Cena comum, sem absolutamente nada de poético ou especial. O normal, para qualquer um de nós, seria simplesmente sacudir a folha e atirar o inseto à própria sorte. Alguém menos tolerante a esmagaria com o dedo, sem piedade antes ou sem remorso depois. Quintana, numa espécie de não-poema, imortaliza a cena banal com incontido lirismo. É como se nos dissesse: o frêmito e o mistério da vida pulsam nos seres mais simples. Basta saber ver.

A lembrança deste belo poema ocorreu-me quando recebi o e-mail de um amigo com uma foto insólita, para dizer o mínimo: um pequeno vira-lata dormindo, sossegadamente, no colo do menino Jesus. Aos fatos: em Criciúma (SC), como em qualquer cidade brasileira, existe o hábito de se armarem presépios no período das festas natalinas. Pois na Praça Santa Catarina, montou-se um presépio comum, com as três figuras da Sagrada Família, mais um anjo guardião. Numa manjedoura improvisada, forrada de palhas e estopa, puseram a réplica do menino Deus. De tão ordinário, o presépio não atraía a atenção dos transeuntes. Vai que, numa noite fria, um vira-lata solitário zanzava pela praça quando descobriu o presépio. O sossego e a sensação de calidez despertaram nele o desejo de acomodar-se no colo de Jesus. Com aquela sem-cerimônia típica dos bêbados, dos loucos e dos vira-latas, o cachorro enrodilhou-se na manjedoura e adormeceu.

Deve ter dormido por pouco tempo. Seguramente, algum “bom” cristão, ao vê-lo tão à vontade no colo do Salvador, enxotou-o dali aos berros. Diante daquela cena insólita, um passante qualquer, acometido de quintanismo, teria dito: E naquela noite fria,/ um cão sem dono/ imprimiu um sopro de vida/ no leito do menino Deus...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Cineas Santos - Pra você também

Por azar ou sorte, o tão decantado espírito de Natal não baixa em mim. Se por um lado, isso me faz um estranho no ninho; por outro, me livra da febre consumista que acomete a maioria dos cristãos do mundo. No sertão onde nasci, 25 de dezembro era um dia como outro qualquer, com direito a enxada, foice, suor, sol e, às vezes, chuva. Quando chovia (chuva mansa, fina, demorada), meu pai aproveitava o “bom tempo” para plantar gergelim nos aceiros das roças. Não nos consumia o desespero de ser felizes a qualquer preço ou fazer os outros felizes à custa da nossa generosidade. Quando vim tomar conhecimento da figura execrável do Papai Noel, a mais nefasta das criações do capitalismo, já tinha perdido a inocência. Não tenho comércio com esse velho ilusionista que alicia e desilude crianças indefesas.

Diferentemente do Natal, o primeiro do ano, era uma data memorável: rompíamos o ano novo num forró puxado a sanfona, zabumba e triângulo. Cultivávamos uma brincadeira inocente: no primeiro dia do ano, quem gritasse primeiro “meus anos”, fazia jus a uma prenda que o outro era obrigado a pagar. Uma melancia, uma espiga de milho, um taco de rapadura, coisas que não causavam maiores danos ao patrimônio do pagante. A vida era simples, e as aspirações, rasas. Viver não doía tanto...

Presentear os amigos é algo extremamente prazeroso, desde que não se faça por imposição de um calendário criado por mercadores e agiotas. Ao contrário do que apregoa, o capitalismo não quer a nossa saciedade; quer – isto sim - a ansiedade de todos nós. Consumir por indução ou compulsão é doença grave. Muito a contragosto, sou obrigado a concordar com o Pe.. Marcelo Rossi, o marqueteiro da fé: “Natal é ser presente e não dar ou receber presentes”. Perfeito.

De qualquer forma, acabamos todos envolvidos ou enredados nessa teia pegajosa que o Natal cria. Este ano, depois de receber todas as bordoadas que fiz por merecer e mais algumas, acabei recebendo dois presentes que me deixaram comovido. O primeiro, coisa de negro para negro: um pires minúsculo com o escudo do Flamengo. Como se sabe, sou flamenguista desde a época da invenção do urubu. Coloquei-o na mesa de trabalho ao alcance dos olhos. Agora, quando quiser chorar (eu também choro), já não precisarei de melhor pretexto. O segundo, confesso, não fiz por merecê-lo: uma chuva fina, mansa, “amorosa”.

Na noite de 25 de dezembro, fazia um calor infernal. No breu do céu, sem o menor pudor, a lua exibia-se completamente nua... De repente, sem aviso prévio, caiu uma chuvinha passageira, mas suficiente para lavar a cara da cidade. Depois, retirou-se para as brenhas do Maranhão, dormitório de todas as chuvas do Nordeste. Com a mesma sem-cerimônia de antes, a lua voltou a exibir-se no céu. Foi aí que uma amiga querida me ligou para me dizer que aquela chuva era “um presente” para mim. Encharcado de emoção, mal balbuciei um Deus lhe acrescente e fui dormir sossegado, certo de que não me mataria no dia seguinte. Aqui estou.




quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Edna Lopes - Canção da Esperança


Aos amigos e amigas, companheiros de jornada, afetos tão caros, tão especiais!


No amanhecer
ou no fim da tarde
agradeço pela possibilidade da partilha
de tantos sonhos e pela alegria
de sua solidária presença em minha vida.

Obrigada por entender quando o silêncio se faz
e por entender a ausência nem sempre voluntária.
Obrigada pela oferta da amizade, do carinho
revelado em tantas formas especiais.

Obrigada por cada sorriso
por cada lágrima de emoção derramada
pela alegria da vitória em cada luta, mas
também pelo aprendizado
que ficou no fracasso de algumas e nas perdas
que contabilizamos.

Alguns se foram para sempre,
outros encontraremos em novas jornadas.
Novos oferecerão os braços para a luta
e a vida se renovará em cada ciclo.

Desculpem se faltaram abraços
Desculpem se deixei soltar alguns laços
Não esqueçam que tal qual
o poeta Maiakovski
minha anatomia é toda coração
e sempre estarei por perto.

Queridos e queridas

Que a próxima jornada nos encontre juntos
ainda que a Geografia nos distancie.
O meu abraço terno e fraterno
e o meu desejo mais sincero:
“Que o caminho seja brando aos teus pés
Que o vento sopre leve em teus ombros
Que o sol brilhe cálido sobre tua face
Que as chuvas caiam serenas em teus campos
E até que eu de novo te veja
Que Deus te guarde na palma da mão."


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - Duas cenas de Natal

1.
Chegaram a casa com a informação de que o caminhão da Ação Social estava parado na praça, carroceria carregada de brinquedos, farta distribuição de presentes para os necessitados.

O menino largou o time de botão espalhado sobre a mesa, recolheu camiseta e sandálias e partiu na carreira. O moço da Prefeitura disse que bolas de futebol, de couro ou de plástico, não havia mais. Nem carrinhos de madeira ou controle remoto, nem livros ou velocípedes, bonés do Batman, insígnia de comandante, nada.

– Agora, só tem bonecas que choram e fazem xixi.
– Me dê. Vou levar para minha irmã.

O menino não tinha irmã para dar a boneca que chora e faz xixi. Mas não ia perder a viagem.


2.
Barbas e cabelos brancos ele já tinha. Também já andava meio barrigudo, e a rouquidão provocada pelo cigarro e a cachaça ajudavam a voz na hora do Ho, ho, ho! Era só botar a roupa de Papai Noel que ia dar tudo certo.

Vários coroas, muito gordos e meio roucos, já estavam na fila, pegando senhas para a entrevista. Uns dez ou doze seriam escolhidos para representar o bom velhinho nas portas das lojas, fazendo fotos com as crianças e chamando a freguesia.

– O que você acha do espírito natalino? – perguntou o homem da agência.
– Acho uma merda, mas preciso muito desse emprego.

Expulso da sala, foi fazer o seu Ho, ho, ho no botequim.


domingo, 19 de dezembro de 2010

Cineas Santos - A insólita poesia

Depois de uma tarde de chumbo, dessas que entorpecem a alma, a noite chegou acenando com a promessa de “chuvas amorosas”, como diria o Dobal. E a chuva veio: breve, mas intensa como costumam ser as boas coisas da vida. É incrível o poder que a chuva tem de mudar os ares de Teresina. Hoje (terça, dia 7), a cidade acordou de cara lavada; dir-se-ia uma mulher recém-saída do banho, com os cabelos gotejantes e cheirando a lavanda, uma mulher pedindo para ser amada...

Um dia propício para teresinar, no dizer de A.Tito Filho, de saudosa memória. Com o pretexto de ir ao centro, fiz o percurso mais longo. Por volta das dez horas, na Av. Duque de Caxias, parei um instante para ver mais uma cicatriz no ventre da cidade: um novo supermercado engoliu uma fatia significativa de área verde. Num ritmo alucinante, homens e máquinas trabalham para construir, no menor espaço de tempo, mais um templo destinado ao deus-consumo. Num gesto de “boa vontade”, preservaram um ipê amarelo, prova de que “o capitalismo tem alma”.

De repente, contrastando com a agitação do canteiro de obras, a insólita poesia: um adolescente negro, magro, não teria mais de 17 anos, com a camisa no ombro, percorria lentamente uma das ciclovias, puxando um prosaico carrinho de lata, desses que outrora fascinavam os meninos pobres da periferia. Um carrinho velho, amassado, amarelo. No para- choque do carro, um fiapo de linha, presa a um pedaço de madeira. Às vezes, as rodas do veículo prendiam-se num obstáculo qualquer. O rapaz parava e, pacientemente, contornava o obstáculo, com o cuidado de um manobrista experiente e responsável. Os raros ciclistas que usavam a ciclovia desviavam-se do moço sem importuná-lo. E ele, indiferente ao rugir dos automóveis, prosseguia, atento ao preceito zen: “Jornada longa, passos curtos”.

Aos olhos dos que só veem as coisas rentáveis, a presença daquele moço com seu brinquedo de lata não passava de uma cena patética. Aos olhos do velho cronista, a poesia em estado puro. Por um instante, transportei-me aos longes da minha aldeia onde, por falta de recursos, éramos obrigados a construir nossos brinquedos, usando como matéria- prima latas de sardinha, caixas de fósforos, carretéis de linha... Eram brinquedos pobres, simples, rústicos, mas que se enchiam de beleza e vida com o adubo da nossa imaginação. Era um tempo em que brincar não tinha nenhuma relação com o ato de consumir. Mais uma vez recorro ao Poeta: não nos ardia o desespero de ser donos de nada. Viver bastava.




quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - Lembrando o velho Graça

Conta a lenda que o jovem repórter procurou o velho revisor, no covil dos copidesques do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para pedir uma opinião sem compromisso sobre texto literário. O velho revisor chamava-se Graciliano Ramos, escritor já consagrado que ainda precisava suar a camisa em redações para pagar as contas. Chegando à sexta ou sétima linha do texto, levou o primeiro susto, sublinhou uma palavra mal-empregada e devolveu os papéis ao iniciante, com um comentário sucinto:

– “Outrossim” é a puta que o pariu!

Graciliano detestava conversa fiada. Quando a conversa era escrita, então, nem se fala. Economizava na fala e chegava a ser mesquinho no texto:

“Escrever é cortar palavra” era a sua máxima. E mais:

“Quem escreve deve ter todo cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Tenso como seus parágrafos e seco como o chão do seu sertão alagoano, onde nasceu em 1892 (Quebrangulo), o Velho Graça nos deixou no ano de 1953. Apreciador de aguardentes e fumante inveterado, não foi correspondido no amor devotado por mais de 40 anos aos cigarros Selma. Teve os pulmões bombardeados pelos bastões cancerígenos.

A fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes de escritores, sempre achando que tudo o que escrevem deveria estar no index das obras-primas da humanidade. Diante desses, vale sempre a pena a gente se lembrar de Graciliano Ramos, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

Ao ser comunicado da premiação pela Prefeitura do então Distrito Federal dos originais de sua ficção infanto-juvenil A terra dos meninos pelados (publicado em 1941), torceu o nariz para o júri, em carta à mulher, Heloísa Ramos: “Premiaram uma bobagem, sem qualquer valor literário”. Diante do contrato para edição, foi além: “O Zé Olympio quer editar Os meninos. Problema dele, se está querendo jogar dinheiro fora”.

Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934). O livro só não foi interrompido de vez (o que talvez interrompesse também a sua carreira literária) por conta da insistente cobrança de Rachel de Queiroz. O desconfiado queixou-se com Heloísa: “Julgo que terei que continuar o Angústia, já que a bandida da Rachel cobra e diz que é bom (...) Escrevi ontem duas folhas, tendo prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria”.

O livro que o projetou no cenário nacional foi São Bernardo (mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis. Vidas Secas também foi adaptado e filmado – com Átila Iório de protagonista –, pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do bruto homem da roça Paulo Honório:

“Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.
Não há uma palavra fora de lugar.

Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.